domingo, 22 de janeiro de 2012

No Jardim do Calvário, conheci o meu amor...




Ana Maria não era apenas uma bela mulher experiente, sábia e com pouco mais de setenta anos. Ela era mais do que isso. Ana Maria tinha um nome santo, bem da cor dos perfumes de maio. Se o seu nome era especial, a sua existência representava toda uma geração de fafenses de um outro tempo, que encontrou no coração da sua terra o amor da sua vida. Ana Maria era detentora de um olhar da cor dos pauis e uma vontade tão leve como o esvoaçar da passarada. Por acaso ou porque Deus assim quis, conheci esta mulher, ainda há pouco tempo, num dos passeios pelo meu bem amado Jardim do Calvário.
O Jardim do Calvário foi, e era bom que continuasse a sê-lo, um espaço detentor de muitos segredos, encontros e pontos de partida. A magia que o seu lago fornece, os embrulhados de luz que se escapam por entre a ramagem de frondosas árvores e a postura elevada que apresenta mostram ao céu os passos de muitas vidas.
As atuais formas que o Jardim do Calvário apresenta derivam de uma era em que nesse local, o Outeiro do Calvário, existiu uma pequena capela. A transformação deste outeiro remonta ao séc. XIX e a sua construção ficou a dever-se ao Presidente da Câmara daquela altura, José Florêncio Soares, que contou com o apoio importante do Comendador Albino de Oliveira Guimarães. A sua inauguração solene ocorreu em 26 de Dezembro de 1892.
A tarde de sábado estava banhada de uma frescura natural e o sol, meio envergonhado, lá ia puxando pelas mãos de quem gosta de passear-se pelas ruas e jardins, praças e becos de uma terra qualquer. No meu caso, senti-me agradado com a minha deambulação pelo centro de Fafe, e principalmente, com o meu encontro num dos jardins mais emblemáticos e carregados de história desta mui formosa terra.
Depois de subir a imponente escadaria e ultrapassar os portões, que sempre me receberam de braços abertos e sem a menor mácula, dou com os olhos no jardim do costume. No seu interior, e para além da natureza devidamente arrumada e perfeitamente distribuída nos seus sítios predeterminados, noto a presença de meia dúzia de pessoas que, de uma forma ou outra, por ali se deixavam estar. Como quem não quer a coisa, mas sempre atento aos momentos, contornei e tornei a contornar os acastanhados carreiros que serpenteavam os canteiros meios friorentos, afetados por um inverno pouco exigente. A dada altura, a minha atenção levou-me para um sítio bem localizado. O mais curioso é que já tinha passado por lá e nada me tinha feito parar. Se calhar ia distraído.
Sentada num banco, vejo uma mulher vestida de preto, com um cabelo arranjado à maneira antiga e com as mãos a segurar o peito. Ao seu lado uma pomba obediente ia depenicando um pedaço de pão que ela lhe trouxera. Depois, e sem eu contar, abriu o peito, estendeu a mão direita na minha direção e disse:
- Sabe, e desculpe se o estou a incomodar, este lugar é especial para mim. Foi aqui que tudo começou.
- Diga – acrescentei num tom de quem queria saber mais.
- No Jardim do Calvário, eu conheci o meu amor...
Sem imposturas, e sem pedir licença, sentei-me ao seu lado e escutei da sua boca manchada pela ausência uma linda história de amor.
A pomba não se importou com a minha presença e continuou a sua tarefa. A aragem ficou mais quente. A mulher chamava-se Ana Maria e a cor da sua roupa tinha os tons de uma morte ingrata e sem dó, que lhe roubou o que ela encontrara, numa tarde de janeiro, há mais de cinquenta anos, naquele mesmo lugar.
O seu calvário de mulher viúva só ainda agora começara.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O dia em que o rei voltou a Fafe








Fernando Pessoa disse um dia que “O sonho é ver as coisas invisíveis”. De facto, o nosso poeta tinha toda a razão. Até parece que as suas palavras nasceram da fonte mais pura, para depois percorrerem os carreiros de tempo e fartarem de frescura e verde as almas que anseiam.
Naquela noite de Janeiro, um frio peganhoso apegou-se de tal forma à minha demanda pelas ruas de Fafe que foi preciso um sonho bem quente para que o meu descanso natural acordasse na manhã seguinte com uma disposição digna de registo. Na verdade, há instantes que nunca mais se esquecem.
O que eu vou escrevinhar nesta história não é um sonho qualquer. É muito para além disso. Imaginem que estão a olhar as estrelas e, de repente, uma delas desce do seu poiso, mistura-se com a nossa existência e, depois, pega-nos na mão e puxa-nos para o seu mundo. Creio que o mais fácil será eu começar a contar. Só um pormenor relevante para que a exatidão da história de Portugal não fique manchada: a ação do meu sonho não decorreu em 1906 ou 1907, altura em que o nosso rei Dom Carlos passou por Fafe, ela assenta bem no nosso século, no ano de 2012, num belo dia solarengo de um mês de primavera.
Alcina levantou-se eufórica. Cantarolou no banho e não esperou que os seus pais se levantassem. Tomou o almoço da manhã e foi vestir o seu traje. Ela queria ter a certeza de que tudo estava perfeito. Era a primeira vez que participava numa recriação histórica. Pelo que pude subtrair do meu sonho, Alcina morava numa linda terra do Minho, cujo nome se me varreu da memória por algum tempo. Só mais tarde é que constatei que só podia ser Fafe. O motivo desta certeza foi-me oferecido pelo fascínio das fachadas brasileiras que cobriam o casario que desenhava o espaço onde a ação se desenvolveu.
A jovial rapariga pertencia ao grupo de folclore lá da terra e, tal como muitos outros jovens da sua idade, ia ter um papel de destaque na recriação histórica da vinda do rei Dom Carlos à sua cidade. Os seus olhos eram castanhos, daquele castanho da cor da terra. O seu rosto era de um afável tão curado pelo sol que fazia com que os moços lá do sítio o desejassem para lhe pousar um outro beijo. Quanto ao seu cabelo, nada de especial a dizer, a não ser que foi muito bem penteado, para não destoar no contexto.
Devidamente preparada, lá se despediu dos pais, que entretanto se haviam levantado, e saiu. Uma chamada de atenção por parte da mãe por causa de tanta pressa já não foi escutada por Alcina. Lá fora, o sol matinal brilhava e um barulho de outro tempo já se escutava no ar. Aqui e ali eram bem visíveis os tons de festa que estava quase para começar. O toque de um realejo escapou-se de uma sacada e duas pombas esvoaçaram admiradas. Mais ao longe, escutaram-se as campainhas de uns bois. Que emoção cobria a nossa amiga, que tinha de chegar o mais rápido possível a casa da sua prima Luísa, para ambas se mirarem. Dois foguetes estalaram no ar e um ai de coração assustou a moça. Do outro lado da rua, um rapaz meio atrevido atirou-lhe um assobio fora de uso que a fez corar e que quase a atirou contra uma velha bicicleta que alguém deixara encostada a um poste. Pelos vistos, a vinda do rei começava a prometer.
Já recomposta, Alcina seguiu o seu destino e o tal rapaz, fino nos seus propósitos, gravou-lhe os traços do corpo e um pouco do rosto. O barulho da festa ecoou mais forte. Outros dois foguetes estalaram no ar.
Em plena tarde de domingo, as lojas tradicionais continuavam repletas de povo que comprava lembranças e curiosidades preparadas para o evento, pois o momento tinha de ficar devidamente assinalado. Os restaurantes ainda estavam bem compostos de comensais que, depois de uma boa vitela à moda da terra e um bom verde, saboreavam as cavacas e o pão-de-ló. Com todas estas vivências de outras eras que enchiam de fascínio todos os que percorriam as ruas mais centrais da cidade de Alcina, um pregão surgiu de súbito em cima de um cavalo a apregoar que o rei estava a chegar. Um reboliço embrulhou-se com os aromas da tarde e o azul do céu. Os miúdos que se entretinham com os jogos tradicionais colocaram-se em sentido. Nas barraquinhas e nos espaços onde se vendiam produtos regionais ouviram-se vozes apressadas, ao mesmo tempo que uns toques das concertinas se calaram. As duas bandas de música da terra puseram-se no sítio certo. As autoridades locais deram os últimos retoques nas suas posturas e disposições. Tudo estava nos conformes. Mas … e Alcina?
A nossa amiga, que estivera a ensaiar uns pés de dança com o seu grupa corria apressada para ver o acontecido. A pressa era tal que, e por azar, pisou numa bosta de vaca. Convém que se diga que as gentes de todas as aldeias e lugarejos em redor se associaram à festa e também elas trouxeram alguns pilares do seu regionalismo ligados aos trabalhos do campo para participarem num desfile etnográfico programado. Se assim era, a dita vaquinha também veio e esqueceu-se dos bons modos. Mas caros leitores, não se preocupem com este acontecido, pois no momento em que a rapariga se preparava para voltar a dar brilho ao sapatinho, um galante rapaz, o tal que de manhã lhe oferecera um assobiado galanteio, surgiu bem na sua frente com um lenço bordado. Que gesto simpático!...
Uma descarga de foguetes fez estremecer os ares. Sons de música ecoaram em uníssono. Alcina olhou de mansinho para o rapaz, sorriu e aceitou a oferta. Eu, que, sem mais nem menos surgi em cena, deixei escapar duas lágrimas satisfeitas. E…
Não querem os caros leitores saber que, e tal como acontece nos sonhos mais encantados, acordei no preciso momento em que Alcina e o rapaz, de mãos dadas, entravam na praça. O rei já lá estava.
Quanto a mim, fico-me por aqui. Quanto ao resto da história, acho que não é difícil saber o seu desfecho. Talvez a próxima primavera nos acrescente mais algum pormenor.
Carlos Afonso

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A minha terra é formosa…



A terra de cada um não tem de ser, obrigatoriamente, aquela onde se nasce. Essa foi, é e será sempre aquela que nos mostrou os fios virginais com que se tecem o brilho dos dias e os primeiros passos de uma jornada.
A terra de cada um pode ser, também, aquela que nos acolhe ou aquela que nos deseja. A terra de cada um pode ser, também, aquela que nos mata a sede ou aquela que nos empresta os seus frutos. Quer isto dizer que qualquer um de nós pode usufruir de um punhado de terras, o que nos torna maiores e senhores de vários reinos.
Desde o primeiro dia em que abri os olhos para o mundo, e já lá vão cinquenta anos, numa pequena aldeia transmontana, plantada entre eternos olivais e perfumados campos de amendoeiras, que o destino, sempre comandado por Deus, nunca se desviou um milímetro que fosse das suas obrigações. Fui menino e às vezes a minha mãe teve de me chamar à razão. Caí de uma cerejeira só porque queria saber quantos ovos tinha o ninho de pintassilgo. Nunca me esqueci da alegria que senti quando reparei que a minha irmã parecia uma bonequinha, quando a parteira ma mostrou pela primeira vez. Fartei-me de nadar nas águas amenas do rio Sabor e apanhei muitos peixes com as mãos. As primeiras letras foram-me ensinadas pela Dona Estela, mas foi o Cónego Baltazar que me ensinou o Pai Nosso em francês.
Sem qualquer impostura, quero deixar bem claro que cresci dentro dos parâmetros normais que regem todas as famílias humildes e, quando reparo no que fui, não sinto mágoas nem vontade de apagar datas ou ocasiões. Valeu a pena chegar aos dias de hoje, ter percorrido quase mil terras numa demanda natural, e poder dizer aos meus filhos que a vida é bela e que a esperança é da cor dos nossos olhos.
Amanhã, quando o meu coração deixar de bater, as flores continuarão a desabrochar na primavera.
Quando nos anos oitenta do século passado bati às portas de Fafe, com o argumento de que queria assentar residência bem dentro da sua abrangência, esta nobre urbe abriu-me as portas de par em par. Eu sei que os argumentos por mim utilizados para que tamanha honra me fosse concedida foram muito fortes, (queria aqui trabalhar e amava verdadeiramente uma filha da terra). Mas o fundamento mais preponderante para um sim tão inequívoco teve a ver de certeza com o espírito hospitaleiro que define as raízes e os contornos desta terra de muitos séculos, a quem chamam, e muito bem, a Sala de Visitas do Minho e que Camilo Castelo Branco conheceu em 1860.
O povo diz e com razão que não se sente não é filho de boa gente. Não admira por isso que me sinta eternamente grato a uma cidade que não se importou de me ofertar um pedaço da sua real existência. Assim sendo, e sempre que me é possível, gosto de lhe agradecer, adjectivando-a, alindando-a com versos sentidos e realçando-lhe a sua história e gentes.
Muitas são as porções da riqueza histórica de Fafe em que podemos pegar e mostrar a quem as queira viver em pleno. «Fafe dos Brasileiros», e tudo o que este epiteto abarca, e sem querer menosprezar outras vivências epocais, é um motivo mais que válido para agraciar Fafe. Claro que este propósito não foi ideia minha. Deus não me concedeu tamanha capacidade. Miguel Monteiro já há muito que começou a preparar o campo para tão especial sementeira. Artur Coimbra, Luís Gonzaga, Daniel Bastos e outros investigadores fafenses com memória têm vindo, também, a trabalhar no sentido de o tempo não apagar as nascentes de todo um povo.
A caminhada em busca do que lhe quisermos chamar já começou há muito. Mas hoje, no ano da graça de 2012, e porque a conjuntura está de feição e as aves ainda sabem escolher o melhor poiso para construírem o ninho, chegou o momento de dar continuidade à safra. Eu estou disposto a tal. E pelo que sei e tenho escutado, há muitas almas com a mesma vontade.
Ora se «Óbidos Medieval» ou «Guimarães Afonsina», entre muitos outros exemplos que pululam por este país fora, são caminhos a seguir, «Fafe dos Brasileiros» pode ser uma mais que justificável efeméride. Acredito que uma das melhores formas de construir um futuro é pegar no passado, semeá-lo no presente e esperar por um desabrochar esplendoroso. Claro que todos os cuidados são poucos. Mas Deus é grande e o casario que derivou das riquezas vindas do Brasil ainda é quase o mesmo!
«Fafe dos Brasileiros» tem o rosto nas fachadas que decoram as ruas do centro histórico de Fafe e o seu sangue ainda corre à farta nos muitos escritos que se definiram em seu redor. Vamos então construir um grande evento cultural e dar-lhe consistência. E para que a seara nasça farta e bem verde há que lhe juntar as vertentes turística e económica. Para que isto aconteça é preciso que muitas mãos se unam e empurrem com vigor o que importa. Para o grande rio chegar à foz é preciso que o incauto ribeiro lhe dê de beber.
Nos tempos que correm, uma nobre terra que tem nas suas raízes uma ligação tão forte ao Brasil deve ter orgulho nesse passado que tanto a engrandeceu e que continua, ainda hoje, a abrilhantar as suas memórias. Não devemos em nenhum momento esconder os focos de luz que insistem em iluminar os bons propósitos. Bem pelo contrário. Há que os limpar de algumas impurezas e acreditar.
Para os que me conhecem, provavelmente, não se admirarão com este meu texto quase da cor das miragens. Digo isto, porque de há uns anos para cá que, às vezes, desvio-me do óbvio e tropeço intencionalmente em ideias que podem não mostrar os fios todos. Parece faltar-lhes alguma clareza e um ou outro verbo no indicativo. Desta vez o raciocínio é diferente e a primavera já anda no ar: o terreno está a preceito; uma fome esquisita percorre os desígnios; a friagem não esconde a clareza dos gestos; a passarada está pelos ajustes e o determinado lavrador está atento.
Caros leitores, ontem tivemos um passado de partidas e regressos. Hoje temos uma marca, uma cronologia e um anseio. Amanhã teremos, se a nossa força continuar presa ao leme, uma farta seara e um momento a comemorar.
Fafe dos Brasileiros é um sonho a concretizar.


Carlos Afonso

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Mãe, podemos comprar uma coisa destas?


Mãe, podemos comprar uma coisa destas?

O Natal é sem sombra de dúvida uma época especial. Se os dias estão mais frios e o sol nem sempre é rei, o espírito que se apodera do coração e das fachadas dos simples mortais sempre consegue aquecer as vontades. Tudo parece mais acertado e harmonioso! Tudo parece refletir uma certa partilha de gestos e formas bem caracterizadores deste tempo em que se comemora o nascimento de Jesus.
É curioso, e às vezes dou por mim a pensar neste assunto, que o facto de um humilde menino, lá longe na Judeia, ter vindo ao mundo num curral emprestado, apenas ladeado pelo que a ocasião lhe proporcionou, tenha condicionado as mentalidades de muitos milhões de pessoas, no decorrer cadenciado dos séculos.
Eu sei que nem sempre os rostos dos homens mostram a sinceridade dos seus sentimentos, mas, às vezes, o que reluz é mesmo ouro, principalmente se os raios derivarem das palavras e dos olhos de um inocente com pouco mais de seis anos, que tal como a criança de Belém, tenha escolhido dezembro para esclarecer o precisar dos dias e o raciocínio dos que se julgam senhores da verdade.
A pastelaria estava mais ou menos composta de clientela. As vidraças estavam embaciadas, reflexo da friagem da tarde e do ambiente aquecido no interior. Lá fora, e do pouco que se podia enxergar, alguns transeuntes mostravam alguma pressa. Cá dentro, o pão acabado de sair do forno trazia um aroma especial à ocasião. Sentado numa mesa lateral, ia reparando no que me apetecia. Como era de esperar, prestei bastante atenção à mesa farta em bolos-reis, pães-de-ló e outras iguarias de época que enfeitavam um recanto da pastelaria. Reconheço que o artificie que engendrou esta mesa natalícia, cheiinha de coisas boas, sabia o que estava a fazer.
Para além do quadro adocicado e feliz, outros pontos de interesse ofereceram-se aos meus sentidos. Numa das mesas, uma senhora de idade tomava pausadamente a sua meia de leite, ao mesmo tempo que ia mastigando um bolo de arroz. Dava para ver que alguma coisa a preocupava. Mais encostadas a um dos pilares que se instalava no centro da pastelaria, duas raparigas risonhas e trigueiras iam bebendo o seu café, enquanto pareciam lembrar algo de agradável. Provavelmente os telemóveis que mantinham em cima da mesa eram conhecedores de toda a verdade. Perto da porta, um senhor engravatado lia o jornal. De certeza que os assuntos que se colavam às páginas centrais do diário eram do seu interesse, pois demorava-se bastante na sua leitura. Atrás do balcão, um rapaz de cabelos curtos atendia, finalmente, três clientes, que aguardaram algum tempo pelo pão quente. A televisão que se dispunha num dos lados estava desligada. Será que estava avariada? Talvez estivesse apenas desligada. Bem junto à porta, à direita de quem entra, uma árvore de Natal multiplicava-se em cor e significado. No seu topo uma estrela prateada, meia inclinada para a direita, mantinha-se impávida e serena.
Tudo estava de acordo com a ocasião, pensava eu, até que, e ainda não eram cinco horas da tarde, pois o meu relógio assim mo ditou, uma criança entrou na pastelaria agarrada à mão da mãe. Quase todos os meus colegas de espaço repararam nos recém-chegados. Não que eles tivessem feito muito alarido, mas mais pela atitude e palavras do menino.
Enquanto a mãe se dirigia ao balcão, o pequenote correu para a tal mesa repleta de doçuras e por ali se deixou ficar. A dada altura, e depois de se fartar de olhar, virou-se para a mãe e suplicou:
- Mãe, podemos comprar uma coisa destas?
Como a mãe não respondesse, ele falou mais alto. Sem querer criar caso, a jovem, digamos assim, pois a sua idade não devia ultrapassar os vinte e poucos anos, segredou-lhe alguma coisa ao ouvido. Mas a criança não se conformou e insistiu:
- Mãe, podemos comprar uma coisa destas?
Sem poder segurar mais os verdadeiros argumentos, a apoquentada mãe, sempre alegou em voz alta, ao mesmo tempo que lhe acenava com um pequeno saco onde se acomodavam dois pães.
- Filho, eu não posso comprar mais nada, pois não trouxe dinheiro. O pouco que trazia gastei-o a comprar pão para o teu lanche e do teu irmão.
Sem qualquer vontade em desistir do seu real desejo, a criança de pouco mais de seis anos de idade, e depois de uma pequena reflexão momentânea, virou-se para nós, os outros clientes da pastelaria, e fez um pedido muito convincente:
- Por favor, algum dos senhores pode emprestar dinheiro à minha mãe para que ela comprar um destes bolos? Sabem, ela só trouxe a conta certa para o pão, pois gastou o outro na farmácia para comprar o remédio do meu irmão mais novo.
Muito atrapalhada, a mãe tentou em vão calar o miúdo, mas a vontade e a determinação ingénuas deste eram maiores do que o mundo.
- Na verdade, eu acho que ela não tem mais dinheiro. O meu pai já não é nosso amigo e foi-se embora. A minha mãe, coitada, ganha muito pouco! Juro que se o menino Jesus me oferecer uma prenda no Natal, eu vendo-a a outro menino e com o dinheiro do meu negócio pago-vos.
Na pastelaria todos escutaram o pedido e não se fizeram rogados. Os olhos da criança faiscavam, a estrela da árvore de natal tornou-se mais bela e acertada. A televisão continuou em silêncio. O empregado pouco se importou com o peso que a balança lhe mostrava e o senhor engravatado sempre disse o que todos pensavam:
- Não te preocupes em vender o presente que o menino Jesus te trouxer. Fica com ele e recebe também o presente que nós te oferecemos agora. Quanto ao teu pai, nós achamos que muito em breve ele voltará para casa.
Como foi bem visível, a dita mãe não levou só os dois pães para casa. Foi preciso a ajuda das duas raparigas sorridentes, as que estavam encostadas a um dos pilares bem no centro da pastelaria, para que a consoada do Pedro, era assim que se chamava a criança, e da sua família chegasse direitinha a casa.

Carlos Afonso

sábado, 26 de novembro de 2011

UMA HISTÓRIA PARA MIGUEL MONTEIRO (Passado mais um aniversário da tua morte, Fafe nunca te esquecerá...)


UM ENCONTRO NA BRASILEIRA

Para quem consegue ler os pequenos indícios que os dias oferecem aos incautos humanos, por vezes, colhe surpresas que nem o destino conseguiria melhor. Não admira, por isso, que uma noite amena de Novembro consiga ser mais intensa do que as imensidades de Junho, ou uma mera flor outonal esparja mais aroma do que as rosas de Maio. É por estas e por outras que certos minutos têm imensuráveis encantos, e o velho Estêvão tenha razão, quando afirma: “O mais belo numa seara farta não é o trigo que nela se venha a colher, mas, sim, no cereal que gostaríamos que ela nos desse.”
Naquela noite, as ruas de Fafe não me foram indiferentes, bem pelo contrário. O sossego da hora e o recato adormecido dos poucos transeuntes convidaram-me a calcorrear a grandeza arquitectónica que define o centro da cidade. Reminiscências, vozes surdas, esculpidas nas vidraças, e uma humidade agarradiça, própria da época, conduziram-me a vontade. Como a iluminação pública não me mostrava a verdade toda, a dada altura, dei por mim a entrar na Brasileira.
Este simpático café, localizado bem no centro da cidade, não tinha mais de uma dúzia de pessoas. Para além do proprietário, um amigo que muito considero, pude enxergar que as demais iam dando duas de conversa, interrompida, de vez em quando, pelas chamadas de um televisor, que se encontrava encostado ao sítio do costume.
Depois de tomar o que a ocasião me pediu, deixei-me estar por ali. E porque me apeteceu, comecei a reparar no que os meus olhos me ofereciam. A cavaqueira amena dos companheiros de espaço continuava. A televisão pouco me dizia. Alguns bolos e outras guloseimas, próprias destes ambientes, pareciam dormitar nas suas calorias. Só a abrangência do momento e a minha apatia espontânea me atraíam. Quase sem querer, inquietei-me. De seguida, pareceu-me ver uma luz diferente, vinda do exterior, que parecia querer confundir-me o raciocínio. Ainda resisti, mas foi por pouco tempo.
Senti passos (e agora não sei se foi sonho se realidade). Uma voz algo ausente, mas minha conhecida, abordou-me. O detentor da mesma pediu licença para se sentar. Numa atitude cordial, como tento sempre ser nestas ocasiões, disse que sim, ao mesmo tempo que reparava na sua fisionomia. Que emoção!
Do que aconteceu logo a seguir, meus amigos, só vos conto alguns excertos, porque os demais pormenores ainda não os consegui entender. O que vos asseguro é que, a dada altura, dei por mim a escrevinhar, num papel que retirei do bolso, uma frase demasiado importante para o dono da voz que a inspirou «Fafe dos brasileiros». Também vos assevero que aquele homem de meã de figura, plenamente convencido do que dizia e dono de um olhar oceânico, me fartou, naqueles inesquecíveis instantes, de histórias e nomes de fafenses que escolheram o Brasil para emigrar. Claro que também me falou dos seus regressos, das riquezas que trouxeram, dos palacetes que construíram e das suas bem feitorias. Não se esqueceu, igualmente, de me esclarecer algumas dúvidas e de me acrescentar algumas curiosidades que só um homem sábio pode clarificar. Depois, retocou de leve os óculos, e enquanto se despedia, apontou para o que eu escrevera e pareceu estremecer. Depois, sorriu e recolheu-se à eternidade.
É evidente que eu entendi a mensagem.
E porque tinha de ser, acordei para a realidade, compus os óculos, pois pareceram-me desacertados, e respirei fundo…
Ora bem, do que temos estado a conversar, alguma coisa não bate certo ou, se calhar, tem todo o sentido.
Na Brasileira prosseguia a conversa. A televisão insistia no que estava programado. No meu relógio eram quase as onze.
Levantei-me, peguei no papel com os tais dizeres e apertei-o com convicção. Despedi-me e saí.
A noite continuava quase igual.

Carlos Afonso (2011)

sábado, 12 de novembro de 2011

O sorriso do rei…




Neste mundo de Deus, e de todos os que o habitam, há muitos enredos de histórias que nos dão interessantes certezas. E esta asserção é tão exata que não é preciso pedir às pedras que falem, aos rios que voem ou às flores que ignorem a primavera. O elementar é saber descortinar as soluções acertadas, a partir de indícios ou sementes que nos lançam para as mãos. Não admira, por isso, que eu queira partilhar convosco o que se me desapegou da inspiração:
«Era uma vez um rei que morava numa terra já quase sem nome, onde os seus súbditos já quase não sonhavam e onde as estações do ano já não sabiam o momento exato para se darem ao desfrute. Não era de estranhar que o monarca, que já governara esta terra no tempo das vacas gordas, agora, nestes acinzentados momentos, não tivesse paciência para escutar os conselhos inconsequentes dos seus conselheiros ou esperar, em vão, que as suas vinhas voltassem a dar suculentos cachos e os seus trigais, muito cereal. Às vezes, quase que lhe apetecia despojar-se da sua realeza e afogar-se na desistência, mas, quando voltava a si, apertava a mão direita de encontro à espada, que já tinha sido do seu avô, e só pensava em queimar a praga peganhenta, que o apertava, e voltar a erguer o seu país.
Um dia, e depois de muito penar no meio de tanta apatia existencial, decidiu por pernas ao caminho e descobrir, por sua própria conta, um final feliz para os seus desígnios. Andou, andou, mas o naco de pão, que levava na algibeira, já não tinha sabor. Andou, andou, mas o cavalo, que o transportava rapidamente, já não tinha mais força. Andou, andou, mas a lua, que lhe emprestava a luz, cegara de vez. Andou, andou, mas o sentido dos caminhos, que lhe apontava a meta, esquecera o rumo. Pobre rei!
Já gasto pela desesperança, ordenou aos seus propósitos que, se não encontrasse um fim desejável para tão insustentável situação, deixaria, e agora sim, de ser o que era e não mais se importaria com o destino dos seus súbditos ou as insígnias do seu brasão. E ponto final.
Passada a noite, e depois a manhã, e no preciso instante em que passava entre um outeiro e um vale, o rei reparou num pequeno espaço, torneado por um insignificante muro de pedra, e que tinha, em todo o seu interior, um verdadeiro paraíso. Com os olhos, que a terra lhe há-de comer, enxergou, encostado a uma cerejeira florida, um velho homem a dormir, com um corroído livro no regaço. Em redor do ancião, mas dentro do dito quintal, viu ainda outras árvores repletas de cor e vida, pedaços de terreno com fartos legumes de época, um pequeno poço de água cintilante, algumas alfaias agrícolas, um gato estendido ao sol e muita passarada pousada nos ramos a chilrear. Era, de facto, um ambiente repousante e acolhedor, que contrastava, claramente, com a sua inquietude de monarca aflito.
Num ápice, sua senhoria bateu as palmas para ver se chamava a atenção do velho, mas nada. Repetiu, tornou a repetir o jeito, e só lá para quinta vez é que obteve resposta. Perseverante nas suas palavras quis logo ali saber a razão de tamanha acalmia, pureza e fartura. Calmoso, em toda a sua compostura, o velho homem, dirigiu-lhe a atenção, sorriu, abriu o livro, leu qualquer coisa, fechou-o e, sem se levantar, sempre adiantou:
- Desculpe-me a cortesia, mas estava a dormir e os meus ouvidos escutavam outras certezas.
Ainda pertinente, o rei logo contrapôs:
- Mas tu não sabes que os habitantes deste grande reino, de que eu sou o suserano, andam tristes e sem sonhos? E só tu, com essa atitude, pareces viver num mudo à parte? Qual é a razão do seu sorriso?
- Desculpe-me, real senhor, se vos ofendi. Eu moro aqui perto, este é o meu quintal, e o meu sorriso é verdadeiro. Ele vem da felicidade que me mora na alma, dos sentimentos que retiro dos livros que leio, da grandeza a que se apegam as minhas memórias, do perfume que se solta das flores, do canto que oiço das aves, da clareza que me oferece o sol, e de eu continuar a poder dormir as minhas sestas – esclareceu o velho.
O rei, agora com uma voz mais humilde, quase lhe implorou:
- Como já reparaste, eu ando preocupado com o mal que me cerca, e não encontro soluções para o meu reino. Gostaria que me explicasses melhor o que acabaste de dizer.
Perante a insistência do rei, o velho ergueu-se com agilidade, convidou-o a entrar no quintal e pediu-lhe que o acompanhasse até ao poço. Depois, pediu à passarada que chilreasse mais baixo, encheu uma pequena vasilha de água fresca e ofereceu-lha. De seguida, acrescentou:
- Sua majestade, farei o que me pedis, mas antes quero proveis desta água e depois gostaria que sentísseis a realidade que vos cerca.
Durante algum tempo, o velho e o rei foram conversando, ao mesmo tempo que a tarde ia avançando. Já bem perto da noite, um silêncio especial começou a aproximar-se dos dois, facto que facilitou escutar o que há muito tempo não se ouvia: o sorriso do rei.»
Caros leitores, pelos vistos o nosso rei sempre encontrou a cura para os seus males. Afinal, e como foi bem perceptível na pequena história, as soluções, às vezes, estão bem perto de nós. Basta, apenas, entender a verdade que nos cerca: as raízes de um povo; a naturalidade das paisagens; os ensinamentos de um livro; a espontaneidade das aves; a frescura das nascentes; a história das fachadas; o silêncio de um pôr-do-sol; a fragrância das tílias ou o saber de um velho. É aí, aí que a felicidade existe e o amor sorri…
Carlos Afonso

sábado, 5 de novembro de 2011

O sorriso que venceu a morte…



O dia 31 de outubro, deste ano de 2011, não foi, para mim, um dia comum. Se alguns momentos, do seu todo, me pareceram usuais, mais ou menos programados, outros foram tecidos de cores que me conduziram a outros espaços, em tempos diversos.
Como faço quase todos os dias, por volta das oito da manhã, peguei na pasta, saí de casa, subi a rua José Cardoso Vieira de Castro, esperei que os semáforos me dessem autorização para passar, continuei na direção da Escola Secundária, e antes de chegar à Padaria Silva, reparei que no chão, bem à minha frente, estava um ramo de flores ainda viçosas. Num instinto natural, olhei à minha volta e, só bem mais à frente, vislumbrei um senhor de alguma idade, que caminhava apressado. Sem quaisquer dúvidas em relação ao sucedido, pensei logo que foi o tal senhor que deixara cair o dito ramo. Pequei no mesmo, apressei o meu andar, e levado pela curiosidade, sempre acabei por ler um simples dizer que se encontrava gravado num papel acinzentado, preso à base do arranjo: «Com muito amor. José».
Meio emocionado, aligeirei ainda mais o passo e sempre apanhei o tal senhor de alguma idade que ia à minha frente. Claro que o ramo era dele. Claro que o ramo era para o seu amor. Como ele ficou feliz!
- Agradeço a sua simpatia. Veja como está a minha cabeça. As flores são para oferecer à minha esposa – disse-me a sorrir.
- Gesto bonito o seu, oferecer flores à sua esposa – adiantei eu.
- Sabe uma coisa? Sempre gostei de lhe oferecer flores em dias especiais. Agora que ela já morreu há mais de dez anos, continuo a fazê-lo, porque sei que ela gosta. Muito obrigado e que Deus lhe pague.
Sem me dizer mais nada, e com um sorriso do tamanho do mundo estampado no rosto, continuou a sua caminhada.
Reparem bem, meus amigos, este senhor de alguma idade ia oferecer as suas flores ao seu amor, que ansioso as esperava no cemitério. Afinal, a morte não impediu que um lindo gesto se continuasse a cumprir.
Como eram quase 8h30, fui para a escola trabalhar, mas este episódio matinal não caiu no esquecimento. Durante a manhã, uma ou duas vezes, e sem que o determinasse, dei por mim a olhar pela janela da sala de aula a reparar não sei bem onde, mas com um só pensamento na cabeça. Será que o tal senhor já ofereceu as flores à sua esposa?
O dia foi decorrendo com alguma normalidade, mas ao fim da tarde, um cansaço incomum fez com que me deitasse bem cedo. Algo de estranho se passava comigo. E o mais curioso é que a cena matinal ainda me era familiar.
Já na cama, e ainda sem adormecer, lembrei-me que era véspera do dia de todos os Santos, e a memória de meu pai tomou conta da minha existência. A partir desse momento, um sonho diferente pegou-me nas mãos e levou-me para a aldeia onde eu nasci, ao encontro de uma pessoa muito especial.
O cemitério estava todo enfeitado! A aragem matinal atirava-me ao rosto uma estranha doçura, que parecia derivar do ramo de flores que segurava nas mãos.
Meu Deus! É igual ao que encontrara no passeio, bem perto da Padaria Silva!
Sem me importar com tal coincidência, dei alguns passos no interior do cemitério e uma voz bem minha conhecida chamou por mim. Olhei, e vi que o dono dessa voz, o meu pai, estava sentado numa pedra robusta que ali jaz há mais de dez anos. Ofereci-lhe o ramo com carinho, e ele recebeu-o com um sorriso. Depois, meus amigos, colocamos a conversa em dia. Falamos disto e daquilo, e até trouxemos à memória aquele jogo de futebol entre o Fafe e o Sporting, na altura em que o Fafe esteve na I divisão, e em que o meu pai se molhou todo, pois o raio da chuva não dera tréguas durante toda a partida. O diálogo entre os dois foi alegre e reconfortante, só que não foi eterno. A despedida foi indefinida, pois o sonho não ma esclareceu. Só sei que eu saía do cemitério com uma cara de muitos amigos, quando, e para meu espanto, encontrei, logo ali, o tal senhor a quem, nesse dia de manhã, havia dado o tal ramo que ele deixara cair. Claro que as suas palavras só podiam ser estas:
- É tão bom podermos oferecer flores às pessoas que amamos! Quer companhia até casa?
Claro que eu aceitei.
O dia 1 de Novembro acordou lindo! E o meu coração também!
(Para o meu querido pai, que Deus levou para si há mais de 10 anos, aqui deixo esta pequena história para lhe dizer o que ele já sabe há muito tempo: A morte apenas nos torna levemente invisíveis)

Carlos Afonso (carlosehistorias.blogspot.com)