Neste meu voltar de férias e neste novo regresso ao nosso Povo de Fafe, a
quem desejo as melhores felicidades, quero partilhar com todos os leitores uma
história quase totalmente real, onde uma das personagens sou eu próprio, ocorrida
num final de tarde de Agosto, nas Caxinas, Vila do Conde, bem em frente à
igreja do Senhor dos Navegantes. Eu sei que os acontecimentos, às vezes, são
fruto do acaso, mas noutras vezes, provavelmente, são devidamente facultados
por quem de direito e com poder para isso.
O final de
tarde estava ameno e sem qualquer vestígio daquela nortada tão usual por essas
paragens. O mar estava esplêndido e oferecido para os que quisessem dar um
derradeiro mergulho. Na marginal, pessoas de todas as idades passeavam-se e
saboreavam os últimos raios de luz. No céu, algumas gaivotas mostravam a sua
liberdade e desejos inquietos. No muro de granito pousado num amontoado de
pedras, e que separa a praia do passeio, em frente à Igreja do Senhor dos
Navegantes, estava uma velha senhora de olhar ausente, voltado para o horizonte
que absorvia a grandeza do Atlântico. Parado, perante todo este quadro
vespertino, a minha presença e curiosidade.
A senhora acima referida, e que
mostrava uma atitude estranha perante o que estava ali a fazer, tinha ao seu
lado uma pequena quantidade de conchas coloridas, algumas estrelas-do-mar
secas, três búzios, variados objectos feitos a partir de materiais marítimos e
um pequeno barco. A roupa que lhe cobria o corpo já carcomido pela muita idade
era totalmente negra, à exceção de um finíssimo fio de ouro que se lhe
pendurava do pescoço. O curioso disto tudo era o facto de esta vendedeira não
mostrar qualquer interesse em vender a sua mercadoria. Na verdade, em vez de
estar voltada para as pessoas e tentar aliciá-las e fazer negócio, mostrava uma
postura oposta. Estava de costas voltadas, a sua atenção era o mar longínquo.
Apenas um pormenor, a sua mão direita, onde se podiam ver as unhas algo
descuidadas, estava a tocar o pequeno barco exposto, que, de vez em quando,
estremecia, talvez movido por um sentimento mais profundo. Perante este
cenário, não resisti e dirigi-lhe a palavra:
- Senhora, por favor, quanto custa o
barco?
Como não obtive resposta, repeti
novamente a pergunta e só à segunda tentativa é que obtive uma desinteressada
atenção.
-Desculpe, está a falar comigo?
- Sim. Estou a perguntar-lhe o preço
do barco.
Apressadamente, agarrou com força o
pequeno barco, ergueu-o e encostou-o ao peito. Depois, olhou-me com
determinação e disse-me num tom zangado.
- O preço do barco? Nem pensar. Ele
não está à venda. Leve o que quiser que não lhe levo nada por isso, mas o barco
é meu.
Meio incrédulo com o que acabara de
ouvir, e porque queria perceber o que se estava a passar, teimei mais um pouco.
- Desculpe se a ofendi, eu apenas
gostava de saber o preço do barco, pois acho-o muito bonito e pensei que era
para vender.
Com alguma dificuldade, a dita vendedeira
alterou a sua postura. Virou-se para mim, pousou o barco com cuidado, limpou o
rosto com um lenço meio engelhado, levantou-se e confidenciou-me algumas
palavras.
- Senhor, perdoe-me, eu às vezes não
sei o que digo. Sabe, faz hoje anos que o meu marido morreu e não me sinto de
acordo com o seu entendimento.
- Não se preocupe, por favor, volte a
sentar-se que eu também me sento.
Já sentados, e depois de dois
sorrisos partilhados, a nossa conversa começou de mansinho e, como era de
prever, foi logo de encontro ao assunto do barco. Sem qualquer senão, percebi logo
o porquê do comportamento da velha senhora. Coitada! A vida, por vezes, é bem
madrasta. Mas o que é que havemos de fazer?
Há precisamente vinte e cinco anos o
barco do seu marido, num fim de tarde tempestuoso de Agosto, altura em que o
mar e o céu se haviam unido na tormenta, naufragou, facto que causou uma grande
desgraça nas gentes das Caxinas. E, ao contrário dos outros cinco pescadores
que iam na embarcação, e cujos corpos haviam dado à costa já sem vida, o do seu
marido perdera-se para todo o sempre nas profundezas do oceano. O barco
naufragado tinha o nome «Nas mãos de Deus» e por incrível que pareça a pobre
vendedeira ainda esperava que o seu homem regressasse, de uma forma ou outra, pois
ele continuava nas mãos de Deus, e o que faltava, e segundo o seu acreditar,
era apenas um barco que o trouxesse.
E o que é que o pequeno barco, aquele
que estava ali pousado no muro ao lado das conchas e demais material tinham a
ver com o que aconteceu com o verdadeiro que conduziu o marido ao naufrágio?
Caro leitor, o pequeno barco era uma
imperfeita réplica da embarcação do marido. Ela tinha mandado fazer várias, e
aquela era a última. Era o último barco que lhe podia trazer o marido. Na
verdade, em todos os aniversários do naufrágio da embarcação do marido, ela
tinha por hábito lançar a pequena réplica ao mar para que ela lhe resgatasse o
que tanto esperava. Segundo ela me acrescentou, provavelmente porque reparou na
minha incredibilidade, só iria fazer mais uma tentativa. Caso o seu homem não
voltasse, então iria ela ter com ele.
- Sabe, o Senhor dos Navegantes esta
a par de tudo e eu sei que tenho a sua aprovação. Este barco que aqui tenho é o
último e se ele não me trouxer o meu marido, então vou eu ter com ele. Compreende?
Agora se não se importa, siga o seu caminho, que eu tenho uma sina para cumprir.
Sem que eu quisesse, e ao mesmo tempo
em que o relógio da igreja batia compassadamente as horas, percebi que estava
na hora de ir. Ao longe, o sol já mergulhara de vez no seu repouso anunciado.
Ao perto, senti que a roupa da senhora já não era negra. Meio confuso, aceitei
uma pequena concha pintada das cores do mar que a velha vendedeira me colocou
nas mãos e segui o meu caminho, sem olhar para trás.
Nos dias que se seguiram, ainda
procurei a velha senhora, mas nunca mais a encontrei. De certeza que embarcou
no último barco e foi ao encontro do seu homem.
Carlos
Afonso