sexta-feira, 28 de setembro de 2012

UMA FLOR PARA O MEU PAÍS



 

 

 
 
 
 
 
 
 
Se do castelo jaze quase arrancado o estandarte
Daquele guerreiro sem medo estampado,
Que no campo sofrido da batalha
Jurou com o sangue arrancado pela espada
As linhas definidas do seu condado…

 

 Se do céu parece cair o derradeiro brilho
Daquela estrela que guiou a caravela
Por mares nunca dantes navegados,
Alumiando no peito arrojado do gajeiro
O grito dos Longes encontrados…

 
Se do livro já não se escuta a sonância do poema
Com aquela estância heróica e acertada
Que um dia, com génio e arte assinalados,
 O poeta arrancou da grandeza do império
Para a cantar por toda a parte…

 
Amanhã, quando abril voltar a acordar,
Pegarei no que a vontade me diz
E, no meio de todo este entristecer,
Encontrarei uma flor que perfume o meu país.


                                                                                      Carlos Afonso

sábado, 22 de setembro de 2012

«Nunca nos roubarão o sol»


 

                                                                                                   

            Amigos leitores, nesta minha crónica gostava de partilhar com a vossa compreensão um instante especial que se me apegou à existência e me trouxe à memória a beleza refrescante das madrugadas. Tudo aconteceu neste mês de Setembro e em Fafe. Não sei como estas coisas acontecem, mas, às vezes, o que vale a esta vida transitória são aqueles momentos únicos que, e sem nós dêmos por isso, nos surgem pela frente e nos mostram que um sonho lindo vale mais do que muitas realidades que magoam.

            Era o meu segundo dia de aulas na Escola Secundária e o trabalho de preparação de aulas e demais afazeres de professor ainda não absorviam em demasia o meu tempo. No entanto, neste meu regresso à lida, nem tudo correra pelo melhor. Uma conversa de circunstância que havia tido nessa manhã na escola, tinha-me deixado incomodado e um pouco sem jeito. Eu sei que as coisas nem sempre correm como nós queremos e que a vida está pintada de múltiplas cores. Mas quando nos apercebemos de que um projecto que definimos como interessantíssimo e em que acreditamos, e que vemos na sua consecução uma mais-valia para as gentes da nossa terra, não ser verdadeiramente entendido por certas pessoas, isso chega a doer cá dentro! E qual a razão deste meu reagir quase instintivo? Apenas porque acho que as razões de todas as incompreensões são culpa minha. Se calhar não fui capaz de explicar o que se pretendia e as coisas não se construíram consoante o conveniente, ou então a minha ingenuidade e impreparação conduziram a um desfecho imperfeito. E foi imbuído neste estado de espírito algo acinzentado que peguei na minha vontade e fui caminhar pela cidade.

            O céu estava azul. Na aragem pressentia-se um cheiro longínquo de incêndio e as ruas insistiam num ruído chato e algo incomodativo. Sem hesitar, subi ao Jardim do Calvário e sentei-me num dos bancos que por ali se dispunha. Se o meu corpo encontrou de imediato algum repouso, o meu pensar e sentir ainda mantinham a inquietude. Nisto, uma voz conhecida dirigiu-se-me numa dimensão bem jovial:

            - Olá, professor, já uns tempos que o não via.

            Para surpresa minha, e que me deixou satisfeito, o meu olhar deu de caras um antigo aluno. Que surpresa! Ele, agora, já era um homem feito, já acabara um curso superior há uns anos e já era pai de uma menina de cinco anos, mas o seu sorriso e a sua boa disposição continuam intocáveis. A nossa conversa foi prolongada, onde o passado, o presente e o futuro se interligaram. A dada altura disse-me com uma certa naturalidade que me influenciou:

            - Sabe, professor, neste momento estou desempregado e a minha esposa trabalha num escritório em Guimarães, mas há dois meses que não lhe pagam.

            Muito preocupado, tentei saber da sua real situação e da sua disposição perante uma conjuntura tão adversa. A sua resposta foi curiosa:

            - Professor, lembra-se de uma vez eu ter feito uma composição de que o professor gostou muito e que até obrigou os outros alunos a escrevê-la no caderno? Ela tinha como título “Nunca nos roubarão o sol”, lembra-se?

            Claro que eu me lembrava. Numa de vida de professor de liceu, há certos instantes e determinados alunos que nunca se esquecem. A composição que ele fez na altura foi para mim uma agradável surpresa. Um menino de catorze anos a escrever com aquela ousadia e certeza fascinaram-me completamente.

            - Pois, professor, a vida, neste momento, não me está a correr muito bem, mas eu não sou homem de desanimar. Eu tenho um sonho lindo. É verdade, o professor falava muito em sonhos lindos. Ainda acredita neles?

            - Claro que acredito – respondi de imediato, ao mesmo tempo que um sorriso emocionado me tocou o rosto.

            -Pois, professor, eu também tenho um sonho lindo e que irá ter uma excelente serventia para a minha filha. E porque continuo a olhar para si com muita amizade, terei muito gosto em lho revelar. Eu tenho a certeza de que o vai entender e me vai dar toda a sua atenção.

            Era de facto um sonho lindo! E que forma acertada ele o apresentou! De certeza que no momento em que o currículo do meu antigo aluno chegar ao sítio certo, as portas do tão ansiado emprego se abrirão de par em par, para que a sua vida continue honrada e a sua filha venha também a acreditar em sonhos lindos.

            Antes da despedida, e isso só aconteceu quase no final da tarde, a nossa conversa também acabou por abordar o que nessa manhã me tinha acontecido na escola e que me havia incomodado tanto. E porque não podia ser doutra maneira, ele acrescentou num ar bem presenteiro:

- Ora, ora… não me preocupe tanto com o acontecido, pois se alguma coisa não correu bem só é preciso melhorar as circunstâncias, explicar novamente para quem ainda entendeu e continuar com o seu sonho lindo, pois a cultura de Fafe e as pessoas que habitam a nossa terra só têm a ganhar com isso. E sabe que mais, em Abril terei muito gosto em estar do seu lado no decorrer das Jornadas Literárias. Até lá, temos de nos encontrar mais vezes.

Depois de mais uns acrescentos de parte a parte, um forte abraço de despedida fez-nos sorrir em simultâneo. Quase de seguida, e enquanto começava a descer a escadaria do Jardim do Calvário, ele ainda teve tempo para me arremessar um punhado palavras que me acertaram em cheio no peito e me fizeram olhar o céu.

            - Adeus, professor, e não se preocupe, pois por muito que as circunstâncias nos queiram atrapalhar a vida, nunca nos roubarão o sol.

 

Carlos Afonso

 

           

             

sábado, 8 de setembro de 2012

O último barco


 

 



 

          Neste meu voltar de férias e neste novo regresso ao nosso Povo de Fafe, a quem desejo as melhores felicidades, quero partilhar com todos os leitores uma história quase totalmente real, onde uma das personagens sou eu próprio, ocorrida num final de tarde de Agosto, nas Caxinas, Vila do Conde, bem em frente à igreja do Senhor dos Navegantes. Eu sei que os acontecimentos, às vezes, são fruto do acaso, mas noutras vezes, provavelmente, são devidamente facultados por quem de direito e com poder para isso.

            O final de tarde estava ameno e sem qualquer vestígio daquela nortada tão usual por essas paragens. O mar estava esplêndido e oferecido para os que quisessem dar um derradeiro mergulho. Na marginal, pessoas de todas as idades passeavam-se e saboreavam os últimos raios de luz. No céu, algumas gaivotas mostravam a sua liberdade e desejos inquietos. No muro de granito pousado num amontoado de pedras, e que separa a praia do passeio, em frente à Igreja do Senhor dos Navegantes, estava uma velha senhora de olhar ausente, voltado para o horizonte que absorvia a grandeza do Atlântico. Parado, perante todo este quadro vespertino, a minha presença e curiosidade.

A senhora acima referida, e que mostrava uma atitude estranha perante o que estava ali a fazer, tinha ao seu lado uma pequena quantidade de conchas coloridas, algumas estrelas-do-mar secas, três búzios, variados objectos feitos a partir de materiais marítimos e um pequeno barco. A roupa que lhe cobria o corpo já carcomido pela muita idade era totalmente negra, à exceção de um finíssimo fio de ouro que se lhe pendurava do pescoço. O curioso disto tudo era o facto de esta vendedeira não mostrar qualquer interesse em vender a sua mercadoria. Na verdade, em vez de estar voltada para as pessoas e tentar aliciá-las e fazer negócio, mostrava uma postura oposta. Estava de costas voltadas, a sua atenção era o mar longínquo. Apenas um pormenor, a sua mão direita, onde se podiam ver as unhas algo descuidadas, estava a tocar o pequeno barco exposto, que, de vez em quando, estremecia, talvez movido por um sentimento mais profundo. Perante este cenário, não resisti e dirigi-lhe a palavra:

- Senhora, por favor, quanto custa o barco?

Como não obtive resposta, repeti novamente a pergunta e só à segunda tentativa é que obtive uma desinteressada atenção.

-Desculpe, está a falar comigo?

- Sim. Estou a perguntar-lhe o preço do barco.

Apressadamente, agarrou com força o pequeno barco, ergueu-o e encostou-o ao peito. Depois, olhou-me com determinação e disse-me num tom zangado.

- O preço do barco? Nem pensar. Ele não está à venda. Leve o que quiser que não lhe levo nada por isso, mas o barco é meu.

Meio incrédulo com o que acabara de ouvir, e porque queria perceber o que se estava a passar, teimei mais um pouco.

- Desculpe se a ofendi, eu apenas gostava de saber o preço do barco, pois acho-o muito bonito e pensei que era para vender.

Com alguma dificuldade, a dita vendedeira alterou a sua postura. Virou-se para mim, pousou o barco com cuidado, limpou o rosto com um lenço meio engelhado, levantou-se e confidenciou-me algumas palavras.

- Senhor, perdoe-me, eu às vezes não sei o que digo. Sabe, faz hoje anos que o meu marido morreu e não me sinto de acordo com o seu entendimento.

- Não se preocupe, por favor, volte a sentar-se que eu também me sento.

Já sentados, e depois de dois sorrisos partilhados, a nossa conversa começou de mansinho e, como era de prever, foi logo de encontro ao assunto do barco. Sem qualquer senão, percebi logo o porquê do comportamento da velha senhora. Coitada! A vida, por vezes, é bem madrasta. Mas o que é que havemos de fazer?

Há precisamente vinte e cinco anos o barco do seu marido, num fim de tarde tempestuoso de Agosto, altura em que o mar e o céu se haviam unido na tormenta, naufragou, facto que causou uma grande desgraça nas gentes das Caxinas. E, ao contrário dos outros cinco pescadores que iam na embarcação, e cujos corpos haviam dado à costa já sem vida, o do seu marido perdera-se para todo o sempre nas profundezas do oceano. O barco naufragado tinha o nome «Nas mãos de Deus» e por incrível que pareça a pobre vendedeira ainda esperava que o seu homem regressasse, de uma forma ou outra, pois ele continuava nas mãos de Deus, e o que faltava, e segundo o seu acreditar, era apenas um barco que o trouxesse.

E o que é que o pequeno barco, aquele que estava ali pousado no muro ao lado das conchas e demais material tinham a ver com o que aconteceu com o verdadeiro que conduziu o marido ao naufrágio?

Caro leitor, o pequeno barco era uma imperfeita réplica da embarcação do marido. Ela tinha mandado fazer várias, e aquela era a última. Era o último barco que lhe podia trazer o marido. Na verdade, em todos os aniversários do naufrágio da embarcação do marido, ela tinha por hábito lançar a pequena réplica ao mar para que ela lhe resgatasse o que tanto esperava. Segundo ela me acrescentou, provavelmente porque reparou na minha incredibilidade, só iria fazer mais uma tentativa. Caso o seu homem não voltasse, então iria ela ter com ele.

- Sabe, o Senhor dos Navegantes esta a par de tudo e eu sei que tenho a sua aprovação. Este barco que aqui tenho é o último e se ele não me trouxer o meu marido, então vou eu ter com ele. Compreende? Agora se não se importa, siga o seu caminho, que eu tenho uma sina para cumprir.

Sem que eu quisesse, e ao mesmo tempo em que o relógio da igreja batia compassadamente as horas, percebi que estava na hora de ir. Ao longe, o sol já mergulhara de vez no seu repouso anunciado. Ao perto, senti que a roupa da senhora já não era negra. Meio confuso, aceitei uma pequena concha pintada das cores do mar que a velha vendedeira me colocou nas mãos e segui o meu caminho, sem olhar para trás.

Nos dias que se seguiram, ainda procurei a velha senhora, mas nunca mais a encontrei. De certeza que embarcou no último barco e foi ao encontro do seu homem.

 

                                                                       Carlos Afonso