sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Mãe, podemos comprar uma coisa destas?


Mãe, podemos comprar uma coisa destas?

O Natal é sem sombra de dúvida uma época especial. Se os dias estão mais frios e o sol nem sempre é rei, o espírito que se apodera do coração e das fachadas dos simples mortais sempre consegue aquecer as vontades. Tudo parece mais acertado e harmonioso! Tudo parece refletir uma certa partilha de gestos e formas bem caracterizadores deste tempo em que se comemora o nascimento de Jesus.
É curioso, e às vezes dou por mim a pensar neste assunto, que o facto de um humilde menino, lá longe na Judeia, ter vindo ao mundo num curral emprestado, apenas ladeado pelo que a ocasião lhe proporcionou, tenha condicionado as mentalidades de muitos milhões de pessoas, no decorrer cadenciado dos séculos.
Eu sei que nem sempre os rostos dos homens mostram a sinceridade dos seus sentimentos, mas, às vezes, o que reluz é mesmo ouro, principalmente se os raios derivarem das palavras e dos olhos de um inocente com pouco mais de seis anos, que tal como a criança de Belém, tenha escolhido dezembro para esclarecer o precisar dos dias e o raciocínio dos que se julgam senhores da verdade.
A pastelaria estava mais ou menos composta de clientela. As vidraças estavam embaciadas, reflexo da friagem da tarde e do ambiente aquecido no interior. Lá fora, e do pouco que se podia enxergar, alguns transeuntes mostravam alguma pressa. Cá dentro, o pão acabado de sair do forno trazia um aroma especial à ocasião. Sentado numa mesa lateral, ia reparando no que me apetecia. Como era de esperar, prestei bastante atenção à mesa farta em bolos-reis, pães-de-ló e outras iguarias de época que enfeitavam um recanto da pastelaria. Reconheço que o artificie que engendrou esta mesa natalícia, cheiinha de coisas boas, sabia o que estava a fazer.
Para além do quadro adocicado e feliz, outros pontos de interesse ofereceram-se aos meus sentidos. Numa das mesas, uma senhora de idade tomava pausadamente a sua meia de leite, ao mesmo tempo que ia mastigando um bolo de arroz. Dava para ver que alguma coisa a preocupava. Mais encostadas a um dos pilares que se instalava no centro da pastelaria, duas raparigas risonhas e trigueiras iam bebendo o seu café, enquanto pareciam lembrar algo de agradável. Provavelmente os telemóveis que mantinham em cima da mesa eram conhecedores de toda a verdade. Perto da porta, um senhor engravatado lia o jornal. De certeza que os assuntos que se colavam às páginas centrais do diário eram do seu interesse, pois demorava-se bastante na sua leitura. Atrás do balcão, um rapaz de cabelos curtos atendia, finalmente, três clientes, que aguardaram algum tempo pelo pão quente. A televisão que se dispunha num dos lados estava desligada. Será que estava avariada? Talvez estivesse apenas desligada. Bem junto à porta, à direita de quem entra, uma árvore de Natal multiplicava-se em cor e significado. No seu topo uma estrela prateada, meia inclinada para a direita, mantinha-se impávida e serena.
Tudo estava de acordo com a ocasião, pensava eu, até que, e ainda não eram cinco horas da tarde, pois o meu relógio assim mo ditou, uma criança entrou na pastelaria agarrada à mão da mãe. Quase todos os meus colegas de espaço repararam nos recém-chegados. Não que eles tivessem feito muito alarido, mas mais pela atitude e palavras do menino.
Enquanto a mãe se dirigia ao balcão, o pequenote correu para a tal mesa repleta de doçuras e por ali se deixou ficar. A dada altura, e depois de se fartar de olhar, virou-se para a mãe e suplicou:
- Mãe, podemos comprar uma coisa destas?
Como a mãe não respondesse, ele falou mais alto. Sem querer criar caso, a jovem, digamos assim, pois a sua idade não devia ultrapassar os vinte e poucos anos, segredou-lhe alguma coisa ao ouvido. Mas a criança não se conformou e insistiu:
- Mãe, podemos comprar uma coisa destas?
Sem poder segurar mais os verdadeiros argumentos, a apoquentada mãe, sempre alegou em voz alta, ao mesmo tempo que lhe acenava com um pequeno saco onde se acomodavam dois pães.
- Filho, eu não posso comprar mais nada, pois não trouxe dinheiro. O pouco que trazia gastei-o a comprar pão para o teu lanche e do teu irmão.
Sem qualquer vontade em desistir do seu real desejo, a criança de pouco mais de seis anos de idade, e depois de uma pequena reflexão momentânea, virou-se para nós, os outros clientes da pastelaria, e fez um pedido muito convincente:
- Por favor, algum dos senhores pode emprestar dinheiro à minha mãe para que ela comprar um destes bolos? Sabem, ela só trouxe a conta certa para o pão, pois gastou o outro na farmácia para comprar o remédio do meu irmão mais novo.
Muito atrapalhada, a mãe tentou em vão calar o miúdo, mas a vontade e a determinação ingénuas deste eram maiores do que o mundo.
- Na verdade, eu acho que ela não tem mais dinheiro. O meu pai já não é nosso amigo e foi-se embora. A minha mãe, coitada, ganha muito pouco! Juro que se o menino Jesus me oferecer uma prenda no Natal, eu vendo-a a outro menino e com o dinheiro do meu negócio pago-vos.
Na pastelaria todos escutaram o pedido e não se fizeram rogados. Os olhos da criança faiscavam, a estrela da árvore de natal tornou-se mais bela e acertada. A televisão continuou em silêncio. O empregado pouco se importou com o peso que a balança lhe mostrava e o senhor engravatado sempre disse o que todos pensavam:
- Não te preocupes em vender o presente que o menino Jesus te trouxer. Fica com ele e recebe também o presente que nós te oferecemos agora. Quanto ao teu pai, nós achamos que muito em breve ele voltará para casa.
Como foi bem visível, a dita mãe não levou só os dois pães para casa. Foi preciso a ajuda das duas raparigas sorridentes, as que estavam encostadas a um dos pilares bem no centro da pastelaria, para que a consoada do Pedro, era assim que se chamava a criança, e da sua família chegasse direitinha a casa.

Carlos Afonso

sábado, 26 de novembro de 2011

UMA HISTÓRIA PARA MIGUEL MONTEIRO (Passado mais um aniversário da tua morte, Fafe nunca te esquecerá...)


UM ENCONTRO NA BRASILEIRA

Para quem consegue ler os pequenos indícios que os dias oferecem aos incautos humanos, por vezes, colhe surpresas que nem o destino conseguiria melhor. Não admira, por isso, que uma noite amena de Novembro consiga ser mais intensa do que as imensidades de Junho, ou uma mera flor outonal esparja mais aroma do que as rosas de Maio. É por estas e por outras que certos minutos têm imensuráveis encantos, e o velho Estêvão tenha razão, quando afirma: “O mais belo numa seara farta não é o trigo que nela se venha a colher, mas, sim, no cereal que gostaríamos que ela nos desse.”
Naquela noite, as ruas de Fafe não me foram indiferentes, bem pelo contrário. O sossego da hora e o recato adormecido dos poucos transeuntes convidaram-me a calcorrear a grandeza arquitectónica que define o centro da cidade. Reminiscências, vozes surdas, esculpidas nas vidraças, e uma humidade agarradiça, própria da época, conduziram-me a vontade. Como a iluminação pública não me mostrava a verdade toda, a dada altura, dei por mim a entrar na Brasileira.
Este simpático café, localizado bem no centro da cidade, não tinha mais de uma dúzia de pessoas. Para além do proprietário, um amigo que muito considero, pude enxergar que as demais iam dando duas de conversa, interrompida, de vez em quando, pelas chamadas de um televisor, que se encontrava encostado ao sítio do costume.
Depois de tomar o que a ocasião me pediu, deixei-me estar por ali. E porque me apeteceu, comecei a reparar no que os meus olhos me ofereciam. A cavaqueira amena dos companheiros de espaço continuava. A televisão pouco me dizia. Alguns bolos e outras guloseimas, próprias destes ambientes, pareciam dormitar nas suas calorias. Só a abrangência do momento e a minha apatia espontânea me atraíam. Quase sem querer, inquietei-me. De seguida, pareceu-me ver uma luz diferente, vinda do exterior, que parecia querer confundir-me o raciocínio. Ainda resisti, mas foi por pouco tempo.
Senti passos (e agora não sei se foi sonho se realidade). Uma voz algo ausente, mas minha conhecida, abordou-me. O detentor da mesma pediu licença para se sentar. Numa atitude cordial, como tento sempre ser nestas ocasiões, disse que sim, ao mesmo tempo que reparava na sua fisionomia. Que emoção!
Do que aconteceu logo a seguir, meus amigos, só vos conto alguns excertos, porque os demais pormenores ainda não os consegui entender. O que vos asseguro é que, a dada altura, dei por mim a escrevinhar, num papel que retirei do bolso, uma frase demasiado importante para o dono da voz que a inspirou «Fafe dos brasileiros». Também vos assevero que aquele homem de meã de figura, plenamente convencido do que dizia e dono de um olhar oceânico, me fartou, naqueles inesquecíveis instantes, de histórias e nomes de fafenses que escolheram o Brasil para emigrar. Claro que também me falou dos seus regressos, das riquezas que trouxeram, dos palacetes que construíram e das suas bem feitorias. Não se esqueceu, igualmente, de me esclarecer algumas dúvidas e de me acrescentar algumas curiosidades que só um homem sábio pode clarificar. Depois, retocou de leve os óculos, e enquanto se despedia, apontou para o que eu escrevera e pareceu estremecer. Depois, sorriu e recolheu-se à eternidade.
É evidente que eu entendi a mensagem.
E porque tinha de ser, acordei para a realidade, compus os óculos, pois pareceram-me desacertados, e respirei fundo…
Ora bem, do que temos estado a conversar, alguma coisa não bate certo ou, se calhar, tem todo o sentido.
Na Brasileira prosseguia a conversa. A televisão insistia no que estava programado. No meu relógio eram quase as onze.
Levantei-me, peguei no papel com os tais dizeres e apertei-o com convicção. Despedi-me e saí.
A noite continuava quase igual.

Carlos Afonso (2011)

sábado, 12 de novembro de 2011

O sorriso do rei…




Neste mundo de Deus, e de todos os que o habitam, há muitos enredos de histórias que nos dão interessantes certezas. E esta asserção é tão exata que não é preciso pedir às pedras que falem, aos rios que voem ou às flores que ignorem a primavera. O elementar é saber descortinar as soluções acertadas, a partir de indícios ou sementes que nos lançam para as mãos. Não admira, por isso, que eu queira partilhar convosco o que se me desapegou da inspiração:
«Era uma vez um rei que morava numa terra já quase sem nome, onde os seus súbditos já quase não sonhavam e onde as estações do ano já não sabiam o momento exato para se darem ao desfrute. Não era de estranhar que o monarca, que já governara esta terra no tempo das vacas gordas, agora, nestes acinzentados momentos, não tivesse paciência para escutar os conselhos inconsequentes dos seus conselheiros ou esperar, em vão, que as suas vinhas voltassem a dar suculentos cachos e os seus trigais, muito cereal. Às vezes, quase que lhe apetecia despojar-se da sua realeza e afogar-se na desistência, mas, quando voltava a si, apertava a mão direita de encontro à espada, que já tinha sido do seu avô, e só pensava em queimar a praga peganhenta, que o apertava, e voltar a erguer o seu país.
Um dia, e depois de muito penar no meio de tanta apatia existencial, decidiu por pernas ao caminho e descobrir, por sua própria conta, um final feliz para os seus desígnios. Andou, andou, mas o naco de pão, que levava na algibeira, já não tinha sabor. Andou, andou, mas o cavalo, que o transportava rapidamente, já não tinha mais força. Andou, andou, mas a lua, que lhe emprestava a luz, cegara de vez. Andou, andou, mas o sentido dos caminhos, que lhe apontava a meta, esquecera o rumo. Pobre rei!
Já gasto pela desesperança, ordenou aos seus propósitos que, se não encontrasse um fim desejável para tão insustentável situação, deixaria, e agora sim, de ser o que era e não mais se importaria com o destino dos seus súbditos ou as insígnias do seu brasão. E ponto final.
Passada a noite, e depois a manhã, e no preciso instante em que passava entre um outeiro e um vale, o rei reparou num pequeno espaço, torneado por um insignificante muro de pedra, e que tinha, em todo o seu interior, um verdadeiro paraíso. Com os olhos, que a terra lhe há-de comer, enxergou, encostado a uma cerejeira florida, um velho homem a dormir, com um corroído livro no regaço. Em redor do ancião, mas dentro do dito quintal, viu ainda outras árvores repletas de cor e vida, pedaços de terreno com fartos legumes de época, um pequeno poço de água cintilante, algumas alfaias agrícolas, um gato estendido ao sol e muita passarada pousada nos ramos a chilrear. Era, de facto, um ambiente repousante e acolhedor, que contrastava, claramente, com a sua inquietude de monarca aflito.
Num ápice, sua senhoria bateu as palmas para ver se chamava a atenção do velho, mas nada. Repetiu, tornou a repetir o jeito, e só lá para quinta vez é que obteve resposta. Perseverante nas suas palavras quis logo ali saber a razão de tamanha acalmia, pureza e fartura. Calmoso, em toda a sua compostura, o velho homem, dirigiu-lhe a atenção, sorriu, abriu o livro, leu qualquer coisa, fechou-o e, sem se levantar, sempre adiantou:
- Desculpe-me a cortesia, mas estava a dormir e os meus ouvidos escutavam outras certezas.
Ainda pertinente, o rei logo contrapôs:
- Mas tu não sabes que os habitantes deste grande reino, de que eu sou o suserano, andam tristes e sem sonhos? E só tu, com essa atitude, pareces viver num mudo à parte? Qual é a razão do seu sorriso?
- Desculpe-me, real senhor, se vos ofendi. Eu moro aqui perto, este é o meu quintal, e o meu sorriso é verdadeiro. Ele vem da felicidade que me mora na alma, dos sentimentos que retiro dos livros que leio, da grandeza a que se apegam as minhas memórias, do perfume que se solta das flores, do canto que oiço das aves, da clareza que me oferece o sol, e de eu continuar a poder dormir as minhas sestas – esclareceu o velho.
O rei, agora com uma voz mais humilde, quase lhe implorou:
- Como já reparaste, eu ando preocupado com o mal que me cerca, e não encontro soluções para o meu reino. Gostaria que me explicasses melhor o que acabaste de dizer.
Perante a insistência do rei, o velho ergueu-se com agilidade, convidou-o a entrar no quintal e pediu-lhe que o acompanhasse até ao poço. Depois, pediu à passarada que chilreasse mais baixo, encheu uma pequena vasilha de água fresca e ofereceu-lha. De seguida, acrescentou:
- Sua majestade, farei o que me pedis, mas antes quero proveis desta água e depois gostaria que sentísseis a realidade que vos cerca.
Durante algum tempo, o velho e o rei foram conversando, ao mesmo tempo que a tarde ia avançando. Já bem perto da noite, um silêncio especial começou a aproximar-se dos dois, facto que facilitou escutar o que há muito tempo não se ouvia: o sorriso do rei.»
Caros leitores, pelos vistos o nosso rei sempre encontrou a cura para os seus males. Afinal, e como foi bem perceptível na pequena história, as soluções, às vezes, estão bem perto de nós. Basta, apenas, entender a verdade que nos cerca: as raízes de um povo; a naturalidade das paisagens; os ensinamentos de um livro; a espontaneidade das aves; a frescura das nascentes; a história das fachadas; o silêncio de um pôr-do-sol; a fragrância das tílias ou o saber de um velho. É aí, aí que a felicidade existe e o amor sorri…
Carlos Afonso

sábado, 5 de novembro de 2011

O sorriso que venceu a morte…



O dia 31 de outubro, deste ano de 2011, não foi, para mim, um dia comum. Se alguns momentos, do seu todo, me pareceram usuais, mais ou menos programados, outros foram tecidos de cores que me conduziram a outros espaços, em tempos diversos.
Como faço quase todos os dias, por volta das oito da manhã, peguei na pasta, saí de casa, subi a rua José Cardoso Vieira de Castro, esperei que os semáforos me dessem autorização para passar, continuei na direção da Escola Secundária, e antes de chegar à Padaria Silva, reparei que no chão, bem à minha frente, estava um ramo de flores ainda viçosas. Num instinto natural, olhei à minha volta e, só bem mais à frente, vislumbrei um senhor de alguma idade, que caminhava apressado. Sem quaisquer dúvidas em relação ao sucedido, pensei logo que foi o tal senhor que deixara cair o dito ramo. Pequei no mesmo, apressei o meu andar, e levado pela curiosidade, sempre acabei por ler um simples dizer que se encontrava gravado num papel acinzentado, preso à base do arranjo: «Com muito amor. José».
Meio emocionado, aligeirei ainda mais o passo e sempre apanhei o tal senhor de alguma idade que ia à minha frente. Claro que o ramo era dele. Claro que o ramo era para o seu amor. Como ele ficou feliz!
- Agradeço a sua simpatia. Veja como está a minha cabeça. As flores são para oferecer à minha esposa – disse-me a sorrir.
- Gesto bonito o seu, oferecer flores à sua esposa – adiantei eu.
- Sabe uma coisa? Sempre gostei de lhe oferecer flores em dias especiais. Agora que ela já morreu há mais de dez anos, continuo a fazê-lo, porque sei que ela gosta. Muito obrigado e que Deus lhe pague.
Sem me dizer mais nada, e com um sorriso do tamanho do mundo estampado no rosto, continuou a sua caminhada.
Reparem bem, meus amigos, este senhor de alguma idade ia oferecer as suas flores ao seu amor, que ansioso as esperava no cemitério. Afinal, a morte não impediu que um lindo gesto se continuasse a cumprir.
Como eram quase 8h30, fui para a escola trabalhar, mas este episódio matinal não caiu no esquecimento. Durante a manhã, uma ou duas vezes, e sem que o determinasse, dei por mim a olhar pela janela da sala de aula a reparar não sei bem onde, mas com um só pensamento na cabeça. Será que o tal senhor já ofereceu as flores à sua esposa?
O dia foi decorrendo com alguma normalidade, mas ao fim da tarde, um cansaço incomum fez com que me deitasse bem cedo. Algo de estranho se passava comigo. E o mais curioso é que a cena matinal ainda me era familiar.
Já na cama, e ainda sem adormecer, lembrei-me que era véspera do dia de todos os Santos, e a memória de meu pai tomou conta da minha existência. A partir desse momento, um sonho diferente pegou-me nas mãos e levou-me para a aldeia onde eu nasci, ao encontro de uma pessoa muito especial.
O cemitério estava todo enfeitado! A aragem matinal atirava-me ao rosto uma estranha doçura, que parecia derivar do ramo de flores que segurava nas mãos.
Meu Deus! É igual ao que encontrara no passeio, bem perto da Padaria Silva!
Sem me importar com tal coincidência, dei alguns passos no interior do cemitério e uma voz bem minha conhecida chamou por mim. Olhei, e vi que o dono dessa voz, o meu pai, estava sentado numa pedra robusta que ali jaz há mais de dez anos. Ofereci-lhe o ramo com carinho, e ele recebeu-o com um sorriso. Depois, meus amigos, colocamos a conversa em dia. Falamos disto e daquilo, e até trouxemos à memória aquele jogo de futebol entre o Fafe e o Sporting, na altura em que o Fafe esteve na I divisão, e em que o meu pai se molhou todo, pois o raio da chuva não dera tréguas durante toda a partida. O diálogo entre os dois foi alegre e reconfortante, só que não foi eterno. A despedida foi indefinida, pois o sonho não ma esclareceu. Só sei que eu saía do cemitério com uma cara de muitos amigos, quando, e para meu espanto, encontrei, logo ali, o tal senhor a quem, nesse dia de manhã, havia dado o tal ramo que ele deixara cair. Claro que as suas palavras só podiam ser estas:
- É tão bom podermos oferecer flores às pessoas que amamos! Quer companhia até casa?
Claro que eu aceitei.
O dia 1 de Novembro acordou lindo! E o meu coração também!
(Para o meu querido pai, que Deus levou para si há mais de 10 anos, aqui deixo esta pequena história para lhe dizer o que ele já sabe há muito tempo: A morte apenas nos torna levemente invisíveis)

Carlos Afonso (carlosehistorias.blogspot.com)

domingo, 30 de outubro de 2011

No dia em que os cegos começaram a ver…




Neste mundo de Deus, há vários tipos de cegos: os que não veem, porque os seus olhos se cerraram para a luz; os que não enxergam, porque o seu entendimento não os autoriza; os que não contemplam, porque não lhes interessa ver; os que não descortinam, porque lhes esconderam o sol; os que não avistam, porque lhes arrancaram os destinos; e por aí fora. O que vale é que o mundo também se contempla com a alma, os gestos e o coração. Os olhos são apenas uma simples circunstância, no meio da farta paisagem, que é o mundo.
Francisco, já farto de tanta insensibilidade, e até algum desprezo insano, por parte dos colegas de administração, deu um murro na mesa, fechou o livro e disse:
- Até amanhã.
Saiu apressado da sala de reunião. Ignorou o elevador. Desceu as escadas. Atravessou o átrio. Não cumprimentou o porteiro. Virou à direita. Contornou o gradeamento da empresa. Entrou no café. Sentou-se na mesa mais afastada do balcão. Pediu um café. Esperou um pouco. Tomou o café de um só sorvo. Esperou mais um pouco. Cerrou os olhos. Ignorou o espaço que o sustinha. Olhou no escuro e, após breves instantes, sorriu.
O que será que ele via? Como se pode justificar tão estranha atitude? Será que uma demência qualquer se apoderou do seu comportamento?
Deixemo-nos de deduções e mergulhemos no seu sorriso.
Bem no fundo da sua fúria, causada pela insensibilidade dos seus colegas que não perceberam as suas reais intenções, um sol esverdeado ergueu-se no horizonte e a empresa onde trabalhava o Francisco deu sinal de si. A quase certa falência da mesma levara a que algumas hipotéticas e necessárias soluções fossem apresentadas na reunião da administração. Claro que Francisco trouxe a sua.
Ora se os brinquedos que a sua empresa produzia não estavam a ter a aceitação desejável no mercado, havia que redefinir as estratégias e promover a criatividade. Talvez assim as coisas mudassem de sentido. Foi a pensar nesta possibilidade que o nosso trabalhador da Brincogal orientou as suas disposições.
E por que não associar aos brinquedos excertos de textos de vertente literária? Por exemplo, inserir, numa face dos pequenos, comboios um excerto do poema de Fernando Pessoa que fala do comboio “E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão/Esse comboio de corda/Que se chama coração”. Ou gravar um excerto do poema “ Trova do vento que passa” de Manuel Alegre num brinquedo que sugerisse vento. Ou nos brinquedos de praia, excertos, que falassem de ambientes marítimos, de textos de Sophia de Mello Breyner, e por adiante. Assim sendo, poder-se-ia dizer que se estaria perante textos-objecto, com carácter lúdico, pedagógico, literário, carregados de pedaços de vidas. Um dia, quando o brinquedo perdesse a sua utilidade de brinquedo, poderia transformar-se em recordação de estante ou na alma de um poeta. Um dia, quando a criança já não visse no brinquedo a serventia de brinquedo, olharia para ele como a página de um livro ou um suspiro de coração.
Era este sonho todo que morava nos propósitos de Francisco, e que nesse seu cerrar de olhos conseguiu ver, numa outra realidade. Não é preciso acrescentar que nesse dia, e depois de tomar aquele café, e depois da incompreensão dos seus colegas, que o imaginativo trabalhador salvou a sua empresa. Sem sombra de dúvida que o que ele viu e constatou, bem dentro de si, cheirava a um futuro de verde pintado. E porque podia vir a ser útil, e porque eu, narrador de serviço, lho facultei, o nosso amigo roubou do seu produtivo devaneio uma pequena recordação. Era apenas um velho brinquedo, um pequeno carrinho de mão, já rachado, mas que trazia gravado bem no seu interior uma quadra de António Aleixo: “Porque a vida me empurrou/caí na lama, e então/tomei-lhe a cor, mas não sou/a lama que muitos são.” Era, sem sombra de dúvida, um excelente antigo brinquedo, carregadinho de moralidade e estilo.
Quando Francisco reabriu os olhos, a existência, a que nós lhe chamamos realidade, mostrou-se-lhe benignamente airosa. Mais convicto do que nunca, voltou para a empresa. Cumprimentou o porteiro. Subiu as escadas e foi ao encontro dos colegas de administração, que ainda se encontravam, à procura não sei do quê, no mesmo sítio onde os havia deixado.
Admirados, estranharam este voltar de hoje, e não amanhã, sorridente e, estranhamente, persuasor. Sem mais, Francisco colocou o tal carrinho de mão em cima da mesa, sentou-se e entregou-se ao silêncio.
Cada vez mais atarantados, e sem palavras para dizerem, os companheiros de sala entreolharam-se e repararam que as cadeiras se começaram a tornar incómodas. A dada altura, o colega que estava sentado à sua direita, aquele que mais o gozara na primeira reunião, prestou atenção ao objecto que Francisco trouxera, e sempre disse:
- Que interessante! Onde arranjaste isto?
Certo do que ia dizer, o nosso amigo pegou no que restava do brinquedo, e que agora acolhia a quadra de António Aleixo, e declarou para todos os cantos da sala, assim como para os presentes:
- Como não entendestes a minha proposta para salvar a empresa, e porque o vosso discernimento não vos deixou ver a real natureza do meu projecto, fui buscar a maquete a casa.
Nesse mesmíssimo momento, e tal qual o campo ressequido bebe as prenhes gotas de água, e mata a sede, os companheiros de administração do Francisco abriram os olhos e deixaram se ser cegos.

Carlos Afonso (carlosehistorias.blogspot.com)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A gaivota a quem quiseram roubar o mar…



«Era uma vez uma gaivota que morava num velho rochedo, encostado a um mar sem fim. Todas as manhãs, a ave levantava voo e seguia, irrequieta, numa e noutra direcção, mas sempre a roçar a cor do oceano. A sua ligeireza advinha-lhe da amizade que tinha com os ventos norte e leste. A sua beleza foi-lhe oferecida pela maresia. A sua determinação era arrancada, todas as noites, da força das ondas e o seu fado foi-lhe desenhado pelas estrelas. Nunca em toda a sua vida de gaivota deixara de cumprir as suas rotas e desejos, mesmo que se lhe deparassem pela frente tempestades ou sois abrasadores. Mas, numa noite medonha de Setembro, o seu destino quase mudou.
Das profundezas do nada, um nevoeiro muito cerrado ergueu-se, aterrorizador, e envolveu o pobre animal, prendendo o seu fascinante voar. Durante longas horas, a gaivota se debateu com o seu terrível inimigo de cinzento vestido, mais insensível do que as pedras, e nada. A luz dos seus olhos quase se apagou. O seu coração já não sabia o ritmo acertado e as suas penas já estavam cansadas e mortas de sede.
Preocupado, o mar sem fim, que logo sentiu a falta da sua habitual companheira, convocou a força dos ventos, a luz das estrelas e o cheiro da maresia, que, de imediato, se apresentaram, e decidiram por cobro a esta situação.
Como a união faz a força e a verdade dos gestos e do querer é mais vigorosa e bela do que a apatia dos destruidores de sonhos, a ave foi solta e o seu voo foi devolvido ao mar.»
Linda história, não acham? Como é bom colher um final feliz nas histórias que nos contam, principalmente quando elas têm uma moralidade para oferecer.
E porque Deus assim o quer, a nossa vida também tem vários finais felizes, basta, para isso, saber reconhecê-los, quando eles nos aparecem bem à nossa frente, ainda que meio sufocados por nevoeiros tingidos de várias cores. No que a mim diz respeito, sempre vou enxergando alguns finais felizes, nesta minha vida repleta de pontos de partida, e brumas opressores.
A apresentação do romance A que cheiram as Giestas de Conceição Antunes, no dia 16 de Outubro, permitiu-me abrir a alma de uma personagem magnífica, a Laura, para quem os nevoeiros que lhe molhavam os dias não impediram que ela fosse em frente e descobrisse o verdadeiro cheiro das giestas. Um excelente livro, repleto de resistência, determinação, linguagem adequada, ousadias, amor e telas com história. Um autêntico hino à força da mulher. Fafe literário está mais rico.
Desde sempre, o teatro foi uma das minhas predileções. Gosto de vestir a roupagem de uma personagem e tornar-me outro, ainda que com o mesmo coração. Abre-me os horizontes e torna-me maior.
Agradeço ao Grupo de Teatro de Travassós essa oportunidade. A participação em As Mulheres de Atenas, que esta companhia amadora de teatro levou a cena, no dia 16 de Março, no Teatro/Cinema, levou-me a tocar numa história intemporal, numa luta contra os preconceitos, numa experiência única. Ao meu lado estava um grupo de excelentes atores, todos eles mais capazes do que eu. Ao Albino, à Vera, à Isabel, à Natália, ao Orlando, ao Leonel, assim como aos restantes companheiros de função, apenas digo que continuem a amar o teatro e a mostrarem, aos que só vêem nevoeiro no horizonte, que o sol também brilha ao anoitecer. Obrigado pelo vosso apoio e simpatia.
O povo diz, e com razão, que não há duas sem três. Como ele está certo. Ora vejam.
Um dos maiores orgulhos que me alimentam a alma é poder contar com a amizade e o carinho de muita gente de boa vontade. Sem o empenho de muitos braços e o sentir de muitas circunstâncias, as cidades morreriam, os rios morreriam nas nascentes e eu não passaria de uma erva seca, sem vontade de crescer. Participar activamente na visita que o bispo de Bragança/Miranda, meu grande amigo, fez à sua terra natal, que por sinal também é a minha, foi um acontecimento digno de registo.
A tarde de domingo estava amena. A aldeia estava genuinamente engalanada. O povo entoava cânticos de alegria. A passarada estava feliz. Os olivais pareciam mais verdes e as amendoeiras ignoraram as certezas do outono. Tudo estava perfeito. Até os sinos tocaram de maneira diferente…
Com passos emocionados e um sorriso que o define, D. José Cordeiro caminhava pelas velhas ruas, acenando e agradecendo. Beijos, abraços, vozes chorosas, pétalas de flores irromperam instintivamente, e Deus desceu à terra. Foi coisa linda de ver, sentir, tocar e amar. Para o meu amigo de longa data desejo todas as felicidades do mundo. Espero que a sua alma de pastor, o seu peito de amor e o seu farto engenho sejam capazes de ajudar o nordeste transmontano a encontrar as verdades de Jesus. Boa caminhada…
Caros leitores, como devem compreender, o meu texto tem de ficar por aqui, pois o Povo de Fafe tem muito mais para mostrar. Apenas quero terminar com uma frase que me ocorreu um dia, e que me surpreendeu:
O verdadeiro amigo é aquele que pega numa palavra e constrói uma ponte.

Carlos Afonso

sábado, 15 de outubro de 2011

Meu povo, minha alma…


«Era uma vez um grande rio que desaguava todas as horas num mar imenso. Das muitas belezas de que esse rio se gabava sempre que alguém ou alguma coisa o questionava acerca do seu papel como alimentador de mares, ele respondia numa voz húmida e clara:
- Tenho um grande caudal. As minhas margens são acertadas. Os navios que navegam nas minhas margens são belos e luxuosos. Nas minhas entranhas passeiam-se saborosos peixes de prata. E por aí fora… Nunca, e em nenhuma ocasião, esse rio se orgulhou da singela e pura nascente que lhe dava a vida ou dos seus pequenos e anónimos afluentes.
Um dia, Deus, já farto de tanta gabarrice e orgulhos egoístas, decidiu secar-lhe a nascente e desviar-lhe os afluentes para outros sítios.
Coitado do grande rio! Morreu à sede e caiu no esquecimento.»
Amigos leitores, a mensagem que esta pequena história nos oferece, enquadra-se perfeitamente na vivência dos homens, caso estes se esqueçam de olhar na direcção de onde vieram.
O que será de um país dito desenvolvido, quase todo online, rodeado de muito alcatrão, repleto de mentes praticamente brilhantes, frangos congelados e outros enfeites importados directamente da China, se ignora as suas raízes? De certeza que agoniza e apodrece, enrodilhado em cheiros de plástico, pois até o esterco perderá o seu perfume.
O verdadeiro país é aquele que trepa as escadas do futuro sem se desprender das nascentes que o trouxeram ao mundo. O verdadeiro país é aquele que ainda sabe que a broa autêntica não prescinde da farinha milha e o arroz de feijão combina, na perfeição, com um bom naco de carne de porco cozida, daquela entremeada e previamente salgada.
Para quem como eu gosta de se intrometer com o que as nossas memórias ainda guardam, de vez em quando consegue surpreender-se com momentos que nos fartam a existência. Não admira, por isso, caro leitor, que o meu fim-de-semana de 8 e 9 de outubro tenha sido de excelência. Eu explico…
No dia 8, foi um regalo enquadrar-me com os “Leões do Ferro” e participar na sua tradicional “Feira de Outono”. Que bela recriação dos tempos idos! Muito negócio se fez por aqui. Confesso que gostei de olhar, tocar e saborear todo este evento. Ainda bem que esta gente tem memória e engenho!
Se o sábado foi de se lhe tirar o chapéu, meus amigos, o dia 9 também foi impar. Antes de mais, quero agradecer às minhas amigas Etelvina e Fátima pela bela ideia de me convencerem a participar na “Rota da Desfolhada” , lá para os lados de Várzea Cova e Bastelo.
O dia esteve magnífico! O percurso pedestre emprestou-me o cheiro dos pauis, a frescura dos carvalhais, os murmúrios dos ribeiros, as conversas repletas de conteúdo, a música das concertinas, a cor das últimas flores e a fachada rústica do casario! O merendeiro do pessoal de Estorãos encheu-me a curiosidade e não só! A desfolhada foi autêntica e intensa! Os cantares estiveram afinados! As encenações e as decorações estiveram um miminho! A organização a cargo dos Restauradores da Granja, do Grupo de Folclore da Fafe e da Associação Cultural de Várzea Cova não falhou em nada! As vacas vieram engalanadas! Os participantes sorriram a sério! Um dos malhos partiu-se, quando uma senhora fina não lhe deu o melhor uso, mas não aleijou ninguém! A nogueira que estava bem por cima da minha cabeça estava carregadinha de nozes! O baile esteve animado! Mas, o fim da tarde chegou a horas, e o que era bom acabou-se…
Antes de fechar esta minha crónica, pois a minha noite de recordações já vai longa, só vos quero contar mais ma coisinha. Juro que vale a pena. Não querem vocês saber que, a dada altura, uma bela rapariga, que por sinal já fora minha aluna à noite, abeirou-se do meu entusiasmo e disse:
- Professor, quero apresentar-lhe a minha prima. Ela aprecia muito a poesia e gostaria de lhe declamar um poema.
Uma forte emoção fez-me engolir a última gota de um verde branco que ainda se agarrava à minha garganta. Bem ao meu lado, um imponente espigueiro apercebeu-se da minha admiração e estendeu-me um pouco mais da sua sombra. Sem mais, escutei…
A menina tinha apenas cinco anos, ainda não andava na escola primária, chamava-se Inês Alves e declamou um e depois outro poema de uma maneira tão acertada e ingénua, como eu nunca tinha escutado! Os seus olhos eram vivos como a aragem que costuma varrer aqueles sítios! Os seus cabelos eram da cor do sol! O seu sorriso era lindo! A sua atitude era traquina e florida, e um dos poemas era de Fernando Pessoa!
Meu povo, minha alma, como é maravilhoso saborear, de vez em quando, a rudeza das fragas, a pureza das nascentes e a verdade de uma criança!
Desculpem, mas as lágrimas não me deixam continuar…

Carlos Afonso

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Pedaços de um Minho florido


Por muito que as invernias e as noites mais escuras assolem os espaços e as vidas, há sempre um dia primaveril, um luar repleto de afeição ou uma manhã mais doce que ajudam os incautos humanos a percorrer os caminhos ou a olhar mais longe. Se assim não fosse, as estações do ano já teriam perdido o seu sentido e a esperança já se teria afogado nas nascentes.
Para quem vê televisão, lê um jornal, escuta conversas do dia-a-dia, rege a casa, ouve os senãos dos filhos, vai ao mercado ou repara nos lojistas encostados às soleiras das portas, imediatamente sente as arestas afiadas de uma crise repleta de buracos sem fundo, olhos cobiçosos, justificações mal fundadas e desmandos fora de controlo. O que vale é o que se consegue enxergar no outro lado da moeda. O que vale é que ainda há muitas vivências preciosas e gestos do tamanho dos sonhos. E porque o que estou a dizer é verdade pura e com evidências, peguem nas minhas palavras, disponham-nas como quiserem e sigam-me.
Setembro é, por natureza, um mês de contrastes que, só por si, ajudam os homens a vestir roupagens especiais e colher experiências e momentos diferenciados. As vindimas enfeitam os nossos campos, as folhas mostram os seus queixumes, os alunos voltam à escola, as cidades exibem as suas grandezas, os contadores de histórias concluem os seus enredos, as gentes de bem oferecem os seus gestos e as palavras nem todas sabem a ranço e a vazio. Para esta circunstância só nos interessa o que eu vou contar, e que, por sinal, prova que o Minho também se enche de flores nesta época do ano. Ora vejam.
Em maneira de introdução, e antes de vos ofertar alguns pedaços do meu mês de Setembro, peço apenas um copo de água e um olhar mais atento. Obrigado
Para quem não conhece o meu amigo Albano e a sua simpática família, quero dizer-vos que não sabem o que perdem. Claro que eu poderia apresentar aqui mil e uma razões para justificar a minha asserção, mas não o vou fazer. Apenas vos quero expor um simples motivo exemplificativo, e que para mim já prova muito. Participar na sua inigualável vindima, lá para ao lados de Armil, repleta de suculentos cachos de uvas, uma paisagem serena, lautos merendeiros, dizeres castiços, um vinho de excelência produzido lá na quinta, uma organização a enaltecer e gente muito querida, é mergulhar na beleza do nosso Minho Florido. Espero viver muitos fins de verão, descer todos os anos a encosta que me leva aos terrenos do meu amigo e colher muitas graças e sentimentos a cheirar a mosto nas suas vindimas.
Outra ocorrência que fez, de igual modo, florir os meus dias foi visitar a mui antiga e famosa cidade de Guimarães por alturas da sua feira medieval afonsina. Que riqueza de iniciativa! Que evento tão cuidado! Que saborosas castanhas, ainda que algumas já parecessem da época a que reporta a iniciativa! Meus amigos, por alguma razão, esta cidade, a que chamam o berço da nacionalidade, foi escolhida como capital europeia da cultura. Como é maravilhoso um povo nunca perder a sua memória e fazer questão de a utilizar para cimentar o seu futuro!
É curioso! No momento em que olhava todo aquele contexto medieval, repleto de cor e perfumes de outros tempos, lembrei-me de algo que quero partilhar neste espaço com vocês. Quando chegará o momento de Fafe pegar na sua herança brasileira e fazer algo do género? Penso que fomentar na Sala de Visitas do Minho uma iniciativa cultural com esta amplitude só viria a enriquecer o que nos foi legado pelos antepassados. De certeza que o meu amigo Miguel Monteiro, lá do lugar etéreo onde se encontra, não levará a mal esta ousadia da minha parte. Talvez um dia, e se calhar não faltará muito tempo, todo o país ficará a saber que em Portugal há uma terra no norte, encaixilhada entre dois rios, o Ferro e o Vizela, que ama as suas origens e que tem todo o gosto em recriá-las, para que o passado não fique apenas preso às paredes dos edifícios ou colado nas páginas dos livros. Fafe dos Brasileiros poderá ser uma realidade se os responsáveis económicos e políticos deste amor de cidade assim o entenderem. Quanto ao povo que por aqui habita, alma e vontade não lhe faltarão para aderir a este grande projecto, e, finalmente, poder ressuscitar-se toda uma existência que alimenta as memórias e tinge as correntezas do tempo de cores verdes graníticas, temperadas com amor e futuro. Pensem nisto, e depois digam alguma coisa.
Todos sabemos que quantas mais flores adornarem um jardim mais pomposo e esbelto ele se torna.
Por exemplo, se prestarmos alguma atenção aos acontecimentos culturais que têm iluminado a nossa terra, uma grande satisfação percorre a aragem que nos mantém vivos. O meu amigo Artur Coimbra, um grande investigador, um fazedor de versos como poucos e um homem a quem Fafe cultural muito deve, reeditou mais uma das suas publicações centrada no Major Miguel Ferreira. A Junta de Freguesia de Antime recebeu tão importante acontecimento e eu estive lá. Também o meu estimado amigo Acácio Almeida editou mais um livro, Esvoaços 2. E tal como aconteceu nos anteriores, mas agora de uma forma mais depurada e madura, um misto de coração, natureza desenhada, versos perfumados, alma nostálgica, palavras convictas e um engenho natural enredaram-se numa teia de talento que me satisfazem completamente. Parabéns.
Para terminar, e por muita pena minha, pois ainda havia muita coisa bonita para mostrar, apenas quero evidenciar o gesto simpático dos meus antigos alunos de 12ºR que me convidaram para jantar e me deram a beber a sua forte amizade e as suas palavras, que jamais esquecerei. Para eles, o meu peito estará sempre aberto. Para eles, as minhas mãos nunca se cerrarão. (Até sempre e que as aves vos ensinem a nunca perder o rumo.)
Agora um pequeno parêntesis, mesmo sabendo que o que vos vou contar merecia mais de dez páginas, o tempo quase que suficiente para gastar todos os adjectivos que compõem a estante das palavras mais belas. A Kairos, produções culturais, dos meus amigos Celina e José Rui, promoveram uma iniciativa que começou nas salas do Museu das Migrações e das Comunidades, passou pelo auditório da Casa da Cultura e chegou até ao céu. Viagens - memórias da emigração, convidou-nos a embarcar numa viagem com destinos marcados, tendo ao nosso lado o som do acordeão de Cristiano Martins e as notas sentidas do guitarrista José Duarte. Celina Tavares emprestou-nos a sua voz e nós partimos. Que viagem maravilhosa! Para quem perdeu uma iniciativa tão original e linda como esta, apenas digo que os anjos existem, pois estiveram bem à minha frente.
Fico-me por aqui. Até breve e que o Minho continue florido.
Carlos Afonso

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Um milagre ao amanhecer





Eu conheci a Alice há uns anos atrás, numa altura em que a sua mãe, minha aluna à noite, a trouxera à escola para que todos conhecessem a sua princesinha. Nessa época, e ainda com poucos meses de vida, os seus traços definidores já davam a entender que estávamos perante um ser humano adorável e detentor de uma beleza muito própria. Ao longo dos anos, os meus caminhos foram-se cruzando com os de Alice e restante família, ocorrência que muito estimei. O grande problema foi o destino que lhe estava traçado.
Uma das coisas que me custam a entender, e que nos magoam profundamente, é olhar para a beleza de uma rosa e verificar que todo o seu encanto é precedido de uma quantidade de espinhos desnecessários e até inconvenientes. Bem, neste caso, o problema resolve-se com o simples arrancar dos mesmos. Mais grave foi o caso da filha da minha aluna que acabou por sucumbir ao peso dos desmandos da condição humana. Talvez Miguel Torga tenha razão quando afirma que Deus nem sempre é justo.
Nestes últimos meses, Alice já não era a menina de outros tempos. Os seus olhos tingiam-se agora de um azul cansado e os seus cabelos faziam lembrar aquelas manhãs indefinidas, sem se saber ao certo se o sol continuaria a brilhar ou se a chuva estaria para chegar. O rosto esbatido pela má sorte já não tinha a cor de outrora. As suas mãos pareciam ter-se esquecido do tempo em que colhiam as flores silvestres no quintal da sua avó e apanhavam amoras bem maduras nas bordas dos pauis. As suas pernas estavam demasiado distantes da altura em que corriam alegremente no largo da aldeia, e aquela alegria natural que escorria das suas brincadeiras naturais com os colegas deixaram de colorir os dias da velha Alcina. Saliente-se que a relação de Alice com esta idosa quase da idade de um século foi-se cimentando de há uns cinco anos para cá graças aos muitos lanches que esta abençoada senhora gostava de oferecer às crianças lá da rua. Era uma forma de ela esconder a sua acinzentada solidão.
Do tempo em que ainda não lhe tinha sido detectada a doença e o seu sorriso era do tamanho da Primavera pouco restava. Agora só queria saber se a sua cadelinha Rosi já voltara a ter filhotes e se a sua amiga Filipa ainda tirava as melhores notas da escola. Tudo o resto já fora varrido do seu entendimento de menina de nove anos, devorado por uma injusta e atroz doença. Só de vez em quando, e se alguma esperança escorria do seu entendimento sob o efeito da medicação, é que pedia à sua irmã mais velha, quando esta a visitava ao domingo, que lhe lesse uma história do livro de capas cor-de-rosa, com uma borboleta de muitas cores bem ao centro. Por incrível que pareça, as outras histórias não lhe interessavam, nem as desse livro nem as dos outros que se arrumavam na mesinha de cabeceira. Queria sempre a mesma. O seu fascínio só se virava para o livro de capas cor-de-rosa e para aquela história em especial. Quando a irmã acabava, e sem se importar com mais nada, Alice tinha por hábito deixar escapar um obrigado. Depois, apertava o seu urso de peluche contra o peito e deixava que o sono lhe apagasse o sofrimento. E era nestes momentos, depois da leitura que todos os que a rodeavam se apercebiam que no seu sono havia qualquer coisa de especial. Talvez um sonho quase feliz, quem sabe!
Sentada numa cadeira, bem encostado à cama, a mãe de Alice não conseguia esconder a emoção que lhe varria o coração sempre que um ai ou uma lágrima atrapalhavam as palavras e os parcos gestos da filha. Muitas vezes, e sempre movida pela força do momento, apertava nas suas mãos de mulher do campo, crestadas pelo sol e pelos ventos, a um rosário de contas pretas que compara em tempos em Fátima. O que ela pedia a Deus todos nós sabemos.
Infelizmente os minutos e as horas da pobre criança da nossa história, e que eu conheci muito bem, limitavam-se a um quarto de hospital, aos custosos tratamentos e ao carinho insistente de seus familiares, amigos e pessoal médico. Mas um belo dia algo muito incomum aconteceu.
Ainda bem que os lírios do campo são possuidores de um perfume sem rival, caso contrário, o mês de Maio não teria tanto encanto.
Era domingo e tal como era habitual, Alice pediu mais uma vez à irmã que lhe lesse a tal história que englobava o livro de capas cor-de-rosa, e com uma grande borboleta ao centro. Sem demoras, a irmã começava:
«Era uma vez uma linda menina muito pobre que morava numa terra distante, e que já não tinha mãe. Esta menina tinha poucos brinquedos, mas tinha muitos sonhos lindos. Um dos que mais a fazia sorrir e lhe ocupava a imaginação era de um dia ser uma princesa. (…) Uma bela tarde viu pousada numa velha macieira uma grande borboleta pintada de mil cores, (…). Devagarinho subiu para as costas fofinhas da borboleta e deixou-se levar por entre montes e vales, sempre acompanhada pelas brisas mais meigas e o cantar acertado das andorinhas. (…). A borboleta transformou-se numa bela fada e a menina pode finalmente realizar o seu sonho. (…). A pobre menina, a partir desse momento, passou a ser chamada por todos a Princesa das Flores.»
Mal a irmã acabou de ler a história que tinha por título a Princesa das Flores, Alice, e ao contrário do que costumava fazer, sorriu alegremente, chamou pela mãe, que a olhava ansiosa, e disse.
- Mãe, só agora percebi a história que a mana me leu tantas vezes. Eu também vou ser muito feliz, tal qual a pobre menina que se transformou numa princesa. Sabes que mais, amanhã bem cedo podes vir-me buscar, pois eu já vou estar boa. Não te esqueças de me trazer a pasta, pois antes de ir para casa eu tenho de passar na escola para explicar à senhora professora o que se passou comigo. Só mais uma coisa, traz também a minha cadelinha, pois tenho muitas saudades dela, e aquela fita amarela para pôr no cabelo.
Alice, nessa tarde, não parecia a mesma. Falou, falou e o seu quarto de hospital parecia uma sala de convívio. Até sumo de laranja a enfermeira Maria trouxe para animar mais o momento. Terminada a hora da visita, ninguém se lembrou de chorar e uma esperança divina pareceu enfeitar o coração de todos.
Nessa noite Alice adormeceu mais tarde e foi apanhada num sonho encantado. No preciso instante em que colhia um punhado de amoras, viu pousada no cimo de um velho carvalho uma grande borboleta. Alegremente, Alice correu na sua direcção, ofereceu-lhe as amoras que havia colhido e pediu-lhe que a levasse a um sítio onde houvesse muitas flores. Sem demoras, a borboleta mandou-a pular para as suas costas e atendeu ao pedido da menina. Passado pouco tempo, a borboleta desapareceu e Alice viu à sua frente um campo imenso cheio de flores e a um canto, encostado a uma macieira florida, viu um senhor ainda jovem que a chamava. É evidente de Alice logo reconheceu aquele rosto. Convém que se diga, e antes de avançar, que ela tinha uma excelente memória visual. Não admira, por isso, que de Imediato identificou quem estava à sua frente. Era a mesma pessoa que estava pintada naquele santinho que o Senhor padre havia dado num Domingo depois da missa. Era Jesus. Como ela ficou feliz!
Nessa madrugada de segunda-feira, Alice encontrou a paz que precisava, e naquela cama de hospital apenas ficou o que o céu não quis.
Carlos Afonso

sábado, 10 de setembro de 2011

Viagens na Minha Terra



Uma das muitas maravilhas que a vida terrena ainda nos pode oferecer, sem que os empecilhos dos homens a afoguem nas canseiras dos dias, é o encanto de regressar a espaços que nos querem bem e aí, aquecidos pela seiva das manhãs, partilhar momentos com amigos e conhecidos.
Após umas necessárias férias de Verão, que me ajudaram a revitalizar o corpo e alma, aqui estou mais uma vez nas folhas do nosso querido Povo de Fafe para um novo ano de convívio, confidências e encontros. Ao seu director dirijo o meu apreço e gratidão por esta oportunidade. Espero estar à altura de tão destinta publicação e contribuir positivamente para o bom nome de Fafe e das coisas que alindam os destinos.
Depois de uma semana em Paris, nos finais de Julho, o norte de Portugal foi o destino dos meus dias de Agosto. Fafe, Aboim, Vila do Conde, Viana do Castelo, Vila Nova de Cerveira, Póvoa de Varzim, Ponte de Lima, Alfândega da Fé e Parada, o doce lugar onde eu nasci, foram os espaços que me seguraram à vida e me emprestaram os encantos do oitavo mês do ano. Foi uma espécie de périplo encantado por entre montes e vales, mares e rios, aldeias e cidades, olivais e pinheirais, fragas e jardins, igrejas e capelas, arraiais e praças, corações e sonhos, sabores e afectos, foguetes e beijos, entre outras dicotomias pintadas de cores meigas.
Se Almeida Garrett viajou de Lisboa a Santarém e daí escreveu uma das novelas mais bonitas que compõem a esplendorosa estante literária Portuguesa, as Viagens na minha terra, reflexo do que os seus olhos viram, sentiram e pressentiram, eu limitar-me-ei apenas a soltar alguns arrufos repletos de paladar e perfume das minhas viagens.
Sem a obrigatoriedade e rotina das aulas, as férias fizeram com que o meu singelo quintal de bairro usufruísse mais do meu tempo. É deveras interessante mexer na terra, regar o que é preciso regar, subir à figueira e tentar vislumbrar um figo em condições, colher os legumes e sentir o resultado da nossa atenção. Jamais ignorarei o prazer de colher um simples tomate já maduro e a fresca alface, cheirar a hortelã mourisca e reparar no atrevimento dos melros. Sentir o perfume das rosas também é um dos meus deleites, faz-me lembrar outros tempos e outros encontros.
Fafe, para mim, é um daqueles lugares que nos enchem o peito sempre que os finais de tarde e princípios de noite de Agosto se mostram. Não admira por isso que um passeio pela cidade por essas alturas do dia é divinal. Podemos usufruir da calmaria das ruas, escutar aqui e ali os nossos emigrantes, tocar na frescura que se levanta e encontrar amigos. Gosto imenso de ser levado pela leviandade dos passos e não marcar as horas do regresso.
A pouco mais de quinze quilómetros de Fafe desponta uma das aldeias mais típicas do Minho. Aboim, a terra da minha esposa, é um dos espaços que nos enchem de pasmo e afeição. As pessoas são especiais. Os campos cheiram a paz e eternidade. Os carvalhos orgulham-se da sua originalidade e não se importam com a minha presença. O arroz de frango da minha sogra é único. As águas dos ribeiros são cristalinas. O Moinho de Vento tem por hábito emprestar-me o seu carácter ao passo que a Poça de Mesio gosta de me contar histórias. Um dia, e tal como fez Garrett na sua novela quando nos narrou os amores impossíveis de Joaninha e Carlos, também vos darei a conhecer uma ocorrência que teve o seu início nesta Poça tão especial. É engraçado, a pedra que esteve na origem de tudo ainda lá está impávida e serena.
Claro que uma passagem por Vila do Conde já se tornou um hábito para mim e para a minha família. Digo mesmo que um verdadeiro mês de Agosto tem de cheirar a mar. Nesta cidade onde o rio Ave se entrega ao Atlântico e o vento norte gosta de se enrodilhar, encontro, também, algum sossego e inspiração. Gosto de me passear pelas avenidas à beira mar. Aprecio os momentos em que vou comprar sardinhas na lota e converso com as peixeiras. É um costume meu usufruir dos eventos que por esta altura florescem em Vila do Conde, olhar o rumo incerto das gaivotas, e tentar entender como no Séc. XV e XVI conseguimos ser os senhores dos mares, quando reparo na imponente nau atracada no porto da cidade. É evidente que não prescindo de uma visita à Casa Museu de José Régio e um encontro sentido com o Senhor dos Navegantes nas Caxinas. Mergulhar no frio mar que por aqui se espraia é o único problema que ainda não consegui resolver. Já que estou por estas bandas, uma ida à Póvoa de Varzim em busca de algumas memórias de Eça de Queirós, e não só, é muito importante para mim.
Uma vez que as horas não estão rigidamente marcadas e os caminhos gostam de ser percorridos, o finado mês de Agosto teve o mérito de me ter agraciado com outros mimos: mais uma exposição em Vila Nova de Cerveira; um encontro encantado com os jardins de Ponto de Lima; a participação nas festas de Viana do Castelo, levando-me a mergulhar a atenção nos usos e costumes desta antiquíssima terra, banhada pelas águas plenas de memória do rio Lima.
Como bom transmontano que sou, não prescindi de visitar as terras que me viram nascer e beber na rudeza das fragas a força necessária para um novo ano de muito trabalho. Na minha querida Parada, uma singela aldeia de Alfândega da Fé, tive o prazer de encher o meu coração de coisas boas e necessárias para a minha sobrevivência: colhi os afectos da minha madrinha e mãe; comi uvas bem madurinhas; escutei os queixumes do rio Sabor, aprisionado na sua revolta contra uma barragem que lhe quer roubar as margens; saboreei um óptimo queijo de cabra; fui à festa do Santo; apanhei a minha amêndoa; revi vários amigos; cumprimentei os velhos zimbros da minha alada infância e abracei tudo o que me abriu o peito.
Uma vez que no preciso momento em que estou a escrever esta crónica já é Setembro, e tenho uma reunião na escola daqui a uma hora, vou terminar e entregar-me à rotina dos dias.
Por muito que os momentos nos queiram sujar o rosto, não caiamos no vazio. Peguemos nos encantos que se escondem nas nossas certezas e caminhemos repletos de alegria.

Carlos Afonso

sábado, 20 de agosto de 2011

Do outro lado do espelho




Às vezes, os lugares tornam-se especiais devido a pormenores que quase passam despercebidos, e não pelas grandezas em que todos reparam. Não admira, por isso, que, para algumas pessoas, a imensidade do mar se torne irrelevante perante a limpidez duma pequena nascente.
Em pleno coração do Vale do Lima, a beleza genuína e peculiar da vila mais antiga de Portugal esconde raízes profundas e lendas ancestrais. Foi a rainha D. Teresa quem, na longínqua data de 4 de Março de 1125, outorgou carta de foral à vila, e foi numa tarde de Agosto que Francisco descobriu nesta vila, uma terra afável e orgulhosa do seu passado, como um espelho pode conseguir mudar uma vida.
Antes de avançar, apenas duas explicações que, provavelmente, seriam desnecessárias, se tivermos em conta as evidências que vão sendo apresentadas. A vila de que estou a falar é Ponte de Lima, a quem chamam também a princesa do Lima. A personagem principal desta história, o Francisco, é apenas uma personagem, e pronto.
A tarde estava solarenga, mas, e apesar de estarmos em Agosto, o calor costumeiro desta época do ano não se fazia sentir. Assim, e porque o momento se propiciava, Francisco e mais um grupo de amigos decidiram visitar uma exposição diferente, e ao mesmo tempo especial, que decorria por essa altura em Ponte de Lima. Era uma exposição de jardins. Sem sombra de dúvida que, e eu posso ter toda esta certeza porque já tive o prazer de a visitar, o que aqueles amigos viram e sentiram jamais sairá das suas memórias, principalmente para Francisco.
As flores com as suas mais variadas formas, cores e perfumes, assim como diversos tipos de arbustos, árvores e demais materiais decorativos espalhavam-se por toda uma área restrita, subdividida em pequenas parcelas ajardinadas bem ao gosto dos seus criadores. Cada um destes fragmentos ornamentais tinha algo de ímpar e até peculiar, mas todos eles estavam bem contextualizados num espaço maior, onde também se podiam ver típicas ramadas de videiras, carregadas de uvas quase maduras, avenidas de limoeiros com os seus frutos tingidos de um amarelo esverdeado, espaços relvados, alguns pontos de água plenos de frescura e outros detalhes a condizer. Em redor deste sítio sazonal, construída pelas mãos de homens com gosto, e sem que o ciúme os tenha afectado, desenhavam-se, no seu tom altivo, as nativas cores desta zona minhota e a calmaria esplêndida do rio Lima. Tudo parecia perfeito. Até o azul do céu tinha mais cor, e a passarada mal se fazia ouvir, para não dividir atenções.
Eu sei que esta vila do Minho é detentora de uma rara beleza, derivada de raízes romanas e medievais, esculpida em rostos com memória e amassada em sabores de qualidade, para além de muitos outros pormenores contemporâneos. Mas nessa tarde, o que mais se evidenciou aos olhos de Francisco, a personagem evidenciada nesta história, foi esta exposição, e mais concretamente um dos pequenos jardins que compunha esta combinação de arte e cor. Um jardim que, e para além do que é habitual encontrar em sítios como este, tinha plantado nas suas bermas espelhos. Não eram espelhos normais, daqueles que mostram as certezas dos homens ou ajudam a reparar as imperfeições das formas. Eram espelhos que alteravam as aparências, tornando-as mais disformes ou menos disformes. Tornando os mirones, e dependendo da sua posição, mais gordos ou mais magros, mais altos ou mais arrochados, e por aí fora. Quer isto dizer que este jardim, de que não memorizei o nome do seu autor, mostrava o contexto conforme o ponto de auscultação. Quer isto dizer que este jardim, de que não memorizei a nacionalidade do seu autor, mostrava a conjuntura consoante o sítio de observância. Francisco também reparou nesta leviandade criativa tão fora de propósito e gostou do que viu.
Antes de continuar, e porque me sinto na obrigação de o fazer, quero evidenciar que nem todos somos iguais, e que os gostos se podem ou não discutir. O que para um de nós pode ser natural e vir a propósito, para outro pode ser fútil e sem qualquer sentido. Voltemos à história.
Tanto Francisco como os amigos acharam interessante aquela maneira diferente de esboçar um jardim, envolto na singularidade dos seus espelhos E divertiram-se imenso com o que eles reflectiam. Muitas posturas se lhes ofereceram e o resultado roçava sempre o sorriso e até a gargalhada. E curioso como a intelectualidade humana se reduz, por vezes, ao caricato dos instantes!
A primeira imagem do Francisco foi assustadora e ao mesmo tempo engraçada. A sua estatura de um metro e sessenta e cinco, acompanhada de um peso de noventa e tal quilos, o que nos parece demasiado, tendo em conta a sua altura e idade, mostrava-se, agora, ainda mais descomunal e até aterradora. Algum tempo foi passando e muitas outras posturas se experimentaram. O pasmo e a alegria iam sendo gerais e, por momentos, as flores iam perdendo o seu perfume.
A certa altura, e porque já estava escrito no destino da tarde, do outro lado do espelho surgiu um reflexo encantado que imobilizou Francisco. Bem do outro lado do espelho assomou uma figura esbelta e de porte quase atlético, mas com um rosto de traços conhecidos, mas demasiado sério para a ocasião. A nossa personagem principal ficou algo atarantada com o que os seus olhos lhe estavam a evidenciar. Instintivamente, escondeu-se no adormecimento que escorreu do seu íntimo, e nem reparou no chilreio espontâneo de um pardal, pousado num ramo qualquer, que não interessa determinar. Passados um ou dois minutos, pegou no seu olhar e atirou-o para a realidade quase obesa do seu corpo, e não disse nada. Depois, voltou a reparar na irrealidade que o espelho lhe ofertava e, numa atitude envergonhada, espetou com o seu silêncio na face do espelho, e disse:
- Eu podia ser igual a ti, mas …
No preciso instante em que estas palavras iam ter continuidade, a voz de um dos amigos que acompanhavam Francisco nesta visita à exposição dos jardins de Ponte de Lima, alertou-o para a necessidade de continuar, pois já se fazia tarde. Como era de esperar, do outro lado do espelho tudo se apagou.
Será que esta história acaba aqui?

Carlos Afonso


quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Amanhã




Amanhã, quando eu morrer,
Não chorem sobre o meu peito
Nem colham memórias de mim!

Peço apenas uma flor
Colhida ao nascer do dia
E pousada na apatia do meu corpo
Antes de um novo caminho me levar.

Amanhã, quando eu morrer,
Não falem daquilo que fui
Nem usem sinais de dor!


Peço apenas uma história
Escrita com um final feliz
E contada ao silêncio do meu rosto
Antes de um novo gesto me encontrar.

Amanhã, quando eu morrer
As aves voltarão ao lugar onde eu nasci…

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Um Português em Paris…



Viajar, na verdadeira percepção da palavra, permite-nos tocar espaços e gentes, tão diferentes e tão iguais!
Sim. A cor da pele ou a forma de vestir, já para não falar dos gostos, entendimentos, língua e práticas de cada região, devidamente localizada, não são factores de plena distanciação entre o ser humano. Há sempre algo que nos torna unos e filhos da mesma condição. Alberto, o português desta história, percebeu perfeitamente essa realidade, quando abriu os olhos e reparou que os encantos e desencantos de Paris que, e apesar da sua especificidade, tinham a mesma cor de outras vezes e de outras histórias.
Ainda o avião da Aigle Azur não tinha aterrado em Orly, um dos aeroportos internacionais de Paris e já Alberto matutava na melhor maneira de se deslocar para o centro da capital francesa, pois era aí que se localizava o Hotel onde iria ficar hospedado. É evidente que os receios evidenciados não se fizeram esperar. O tomar o autocarro errado fez com que o português fosse ter a um destino não programado. O que lhe valeu foi a atenção e o cuidado de quem não se importa de oferecer o seu tempo aos que dele precisam. Assim, a ajuda de um senhor com alguma idade, que se esforçou bastante em perceber o sentido das palavras, proferidas num francês muito atrapalhado por parte deste viajante vindo do norte de Portugal, que, em simultâneo, não se cansava de apontar o seu objectivo final, num mapa ainda novo, tornou-se crucial.
Alberto teve de apanhar um outro transporte, neste caso o metro. “Mas que grande confusão, meu Deus” - pensou ele sem dizer nada a ninguém, (se é que isso iria ajudar em alguma coisa). Depois foi só ter de palmilhar uma rua bem comprida com a mala às costas e pronto. Bem, e sem me demorar mais, depois destas aparentes dificuldades tão próprias de quem não sabe todos os caminhos do mundo, a porta do Hotel Axel Opera, restringido à rua Montyon, com a sua fachada carregada de passados, abriu-se de par em par.
É maravilhoso encontrar um sítio que nos espera, principalmente quando o caminho nos faz ansiar a chegada.
Paris, que até a esta altura não se dera a conhecer, e por motivos mais que óbvios, fez questão agora, no momento em que o português saiu do hotel para conhecer esta grande capital, de se vestir em tons de um Verão ameno e prenhe de novidades para oferecer. O facto de o hotel se situar bem no coração deste burgo com mais de mil anos de existência e a quem chamam a Cidade Luz, muito por culpa da sua efervescência durante o Iluminismo, ajudou a que as várias distâncias e direcções não parecessem demasiado longe. Tudo tinha o seu espaço, beleza e funcionalidade. No ar, o cheiro a crepes abriam-lhe os desejos, e um barulho que não incomodava levavam Alberto a caminhar com vontade e com gosto.
As fachadas das casas comprovavam-lhe um museu ao ar livre. Os rostos fascinavam-no pelo seu multiculturalismo. As surpresas apresentavam-se-lhe em cada esquina e as longas avenidas pediam-lhe para continuar. De repente, e bem à sua frente, a Opéra National de Paris Garnier, com a sua associação de estilos que vai do Clássico ao Barroco, datado de 1875, indiciou-lhe a opulência de uma cidade repleta de monumentos e pinceladas de história e impérios. E quase sem dar por isso A partir daqui, e dia após dia, tudo o tingia de momentos inesquecíveis.
Ao longe, e para onde quer que fosse, a Tour Eiffel mostrava-lhe, de uma forma bem clara, que a sua imponência fazia dela o verdadeiro ex-libris de Paris, e que a sua fama a levava a ser a obra de arte mais fotografada do mundo. Ao perto, e por muita pena sua, não a pode visitar, porque a polícia lhe tolheu a intensão. Tanto a torre como o espaço envolvente estavam vedados ao público, uma vez que era véspera do 14 de Julho, dia da França, e o fogo-de-artifício ia ser lançado do seu interior, às 23 horas em ponto.
Sempre com uma vontade que criava espanto, os quatro dias de visita foram um autêntico redopio. A noite e o quarto do hotel só o retinham para umas breves horas de sono, e pouco mais. O corpo já não acolhia outras ousadias, mesmo que se estivesse em Paris.
O Museu do Louvre, com a sua sumptuosidade e a sua jóia da coroa, a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, não o decepcionaram, assim como aconteceu com outros locais de renome: Les Invalides; a Place de Montmartre; a Notre-Dame; a Sorbonne; os Jardins do Luxemburgo; o Centre Pompidou; o Moulin Rouge e a Place Pigalli, repletos de folia e decotes a condizer; o Arco de Triunfo, com as suas magníficas vistas; as galerias Lafayette, com os seus luxos; o Sacré Coeur, com a sua postura imponente, tendo Paris ajoelhada a seus pés; a lace de Montmarte, repleta de pintores; e muito mais…
Perante tamanhas maravilhas que só uma cidade como Paris pode oferecer, os olhos de quem as focaliza tornam-se pequenos. O que vale são os registos fotográficos que ajudam a cimentar as ideias.
Alberto deu o seu tempo por bem empregue, mas algumas experiências ficaram por cumprir. Não admira, por isso, que este português, morador na Sala de Visitas do Minho, tenha feito o juramento em pleno rio Sena, na altura em que usufruía de um passeio de barco, de que iria de voltar. Eu penso que ele vai cumprir o juramento. Querem apostar?
Bem, no meio de tanta descrição, quase não arranjava espaço para um caso de ocasião, de entre outros, que marcou esta viajem de Verão. Ora prestem atenção, e depois digam-me da sua justiça.
Subindo apressadamente a Avenue des Champs-Élysées, uma prestigiada avenida de Paris, com os seus cinemas, cafés, lojas de especialidades luxuosas e árvores de eleição, os castanheiros-da-índia, um sem-abrigo mostrou-se numa postura algo agressiva, não contra Alberto, mas contra um rapaz ainda novo que lhe pontapeara uma pequena caixa de lata que lhe servia para guardar algumas moedas que lhe pudessem dar. O mais curioso foi o que o mendigo, um homem com umas barbas de respeito, e vestido todo de negro, disse e tornou a dizer:
- Filho da puta, se fosse na minha terra eu dizia-te como era.
Sem qualquer impostura, Alberto aproximou-se do seu conterrâneo, para quem Paris de nada lhe serviu, deu-lhe dez euros e segredou-lhe aos ouvidos.
-Tenha calma, que tudo se há-de arranjar.
A fúria do mendigo perdeu o ímpeto e um suor envergonhado arranhou-lhe a cara. Meio atordoado, colou a atenção em Alberto, e, sem mais, sorriu e disse obrigado. Depois escondeu-se no meio da multidão e saiu de cena.
É pena que a luz nem sempre brilhe ao cair da tarde.
Desculpem, mas acho que vou terminar, pois a crónica já vai longa. Prometo que em breve retomarei o tema.
Só um aparte importante. Este português não viajava sozinho. Ele fazia-se acompanhar pela esposa, uma mulher determinada, nascida numa terra abençoada pelos deuses, no mês em que as camélias mostram a sua cor aveludada, e detentora de um olhar intenso e claro. Provavelmente, se Alberto não tivesse trazido companhia de Portugal, e conhecendo eu a forma fácil como seus sentidos se apegam às realidades e à volúpia dos instantes, outra água teria corrido por debaixo das pontes do Sena. Creio que estou a exagerar.

Carlos Afonso

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A Fafe, com fé e amor

Fafe é uma terra airosa

Como poucas em Portugal,

A sua história é famosa

E a sua alma sem igual.


As suas ruas mostram os destinos

E as vidas de muitas gentes,

As igrejas com os seus sinos

Garantem a fé dos seus crentes.


A Senhora de Antime, Mãe de Deus,

Rogamos muitos favores,

Pois nós somos filhos seus

E entregamos-lhe os nossos temores.


De todas as festas do Minho

Não há outra como a nossa,

Não falta vitela nem vinho,

E a sua procissão é grandiosa.


Eu gosto de morar neste ninho,

A quem chamam um amor de cidade,

Aqui recebi muito carinho

E encontrei a felicidade.

terça-feira, 5 de julho de 2011

O menino das fragas






Eu sei muito bem que a vontade dos homens nem sempre cumpre os rituais e, de vez em quando, conduz-nos para reinos que moram bem perto das estrelas, reinos onde as flores mudam de cor, conforme os anseios de quem as olha, e os meninos são do tamanho de homens a sério. Não admira, por isso, que o dia 21 de Maio de 2011 possa vir a ficar para a minha história de vida, como um dos dias mais mágicos que percorri.
Para quem gosta de Miguel Torga, o grande escritor transmontano, e se desloque à sua terra natal, São Martinho de Anta, todo o seu entendimento é acariciada por uma imensidade de curiosidades, lugares e paisagem sem igual. E, porque não podia deixar de ser, a Serra da Senhora da Azinheira enquadra-se, na perfeição, nesta ampla abrangência, não só por causa das magníficas vistas que de lá se usufruem, como dos segredos que por lá ainda se podem escutar. Claro que Deus também tem neste lugar um poiso de destaque. E mesmo detentor da omnipotência que se lhe conhece, fez questão de se fazer representar ali pela mãe de Jesus, a Senhora da Azinheira. A Senhora mora numa solitária capela no fresco ar da montanha, onde o magnífico panorama, enche a vista dos que lá se refugiam em meditação ou dos passantes que poisam naquele mirante natural, e donde se podem abarcar treze concelhos. É pois uma dádiva ímpar da Natureza podermos observar as tonalidades de verde agarrados a fachas de espaços esbatidos de cinzentos e azuis, assim como escutarmos o chilrear cadenciado da passarada.
Foi aqui que pelo século XVIII se construiu ”…fora deste povo em distância de três tiros de mosquete para a parte do Norte huma formoza capella com a imagem de Nossa Senhora da Azinheira, que dizem se chama assim por haver no dito sítio antiguamente huma arvore chamada Azinheira…”; “… tem a capella aparências de Matriz…”; “…finalmente não se encontra nesta Província capella de serra com mais custo e galhardia…”.
Na capela - mor a tribuna tem ao cima a representação da Santíssima Trindade, com Nossa Senhora ao meio e duas imagens ladeando-a que são Deus Pai e Deus Filho, Jesus. Por cima, uma pomba branca representando o Espírito Santo, que teve em tempos no bico uma coroa para pousar na cabeça da Senhora coroando-a como Rainha do Céu e da Terra.
Neste retábulo, estão inseridos à direita e à esquerda de quem entra, as imagens dos Santos já referidos em pequenos mísulas e não propriamente na tribuna.
Entre o altar de S. José e o arco divisório da capela - mor há uma coluna cilíndrica de granito, alta, onde, em cima de uma peanha, se encontra a imagem de Nossa Senhora da Azinheira, de pequenas dimensões, policromada, que sai na procissão no seu andor de cetins, no dia 15 de Agosto, o dia da festa anual.
A capela de Nossa Senhora da Azinheira está implantada numa colina a 750m de altitude. Em seu redor a natureza exulta e pasma qualquer visitante, principalmente se vier à procura de indícios de Miguel Torga.
Um dos contos mais belos do grande escritor transmontano, Natal, teve por assento este ambiente paradisíaco, o que só vem engrandecer ainda mais a abrangência deste espaço tão pertinho do céu. De certeza que Garrinchas, personagem principal do conto, foi instigado por Deus a acolher-se na capelinha da Senhora da Serra, para fugir do imenso nevão que parecia querer engolir tudo em redor. Depois, Torga só teve de dar azo ao seu amor à terra mãe, à sua rica imaginação e à sua criatividade.
Quando o grupo de professores de Fafe chegaram às terras de Torga, a Senhora da Serra foi um lugar obrigatório a visitar. Quero apenas referir que fomos muito bem recebidos pelo Sr. Vereador da Cultura de Sabrosa e pelo Sr. Presidente da Junta de São Martinho de Anta, neste roteiro cultural. E porque não podia deixar de ser, ambos nos acompanharam na nossa demanda.
Do muito que vimos e tocamos, um pormenor evidenciou-se no meu entendimento, e que gostaria de partilhar com os leitores. Garanto-vos que é quase tudo verdade.
Chegados ao alto da serra, e depois do pasmo inicial, o Presidente da Junta, num tom rústico e apaixonado, começou a interligar a capela com o espaço literário de Torga. O raio do homem fazia-o de uma forma exuberante e autêntica. Até parecia a própria encarnação do escritor. A dada altura, o coração e a alma tiraram-me do local onde estávamos a escutar a guia de ocasião e remessaram-me para o meio das fragas, que se escondiam por detrás de umas torgas e pinheiros.
Sem que o esperasse, o impensável aconteceu.
Miguel era apenas uma criança como todas as outras da sua idade, embora o seu rosto tisnado e levemente crestado pelas têmperas do sol transmontano indiciasse o contrário. Quanto à idade, de certeza que não tinha mais de 12 anos, apesar de as mãos mostrarem uma cor calosa e habituada aos afazeres do campo. As suas roupas estavam sujas e demasiado encardidas para os tempos que correm e o cabelo parecia um pedaço de terra acabada de lavrar. O seu olhar era intenso, quase do tamanho dos espaços que o cercavam, facto que me causou espanto e fascínio.
Mas… o que fazia ali, bem no cume da serra esta alma irrequieta?
Cumprimentei-o e perguntei-lhe o nome. Sem muita pressa, respondeu-me. Não se alongou mais. Limitou-se a entregar-me o pedaço de uma fraga e um leve sorriso. E mais nada… Depois, numa pressa sem igual, começou a correr monte abaixo e desapareceu do meu alcance.
Claro que eu percebi todo este enquadramento.
Regressei ao lugar a que a minha imaginação me havia roubado e entrei na capela.
Que maravilha!

A grandeza do homem não está, apenas, nas metas que alcança, ela desenha-se, principalmente, nos sonhos determinados que o movem.

Carlos Afonso

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Perguntai por mim!


(Poema dedicado aos meus alunos de 12ºR)

Os dias de cada vida
Não são todos iguais.
Às vezes, atiram-me lama ao rosto
E cobrem-me de imundices vazias.
Outras vezes, obrigam-me a caminhar,
Na direcção que desejo alcançar,
Mas não quero que acabe as sim.

Eu sei que os destinos têm de andar…
Eu sei que tenho de soltar do peito
Os sentimentos dos que vão,
Sem saber se tornarão,
Sem saber se me dirão
O que ainda não senti!

Tempo, não roubes o sonho dos que têm de sair
Nem me oprimas com esse fim
Que ainda não acabou,
Mas que tem de subir à morada das estrelas
E à foz onde começa o mar
E cessa o meu tocar.

Ai, como as estações estão certas!
Mesmo que os ventos destruam a calma dos prados
E as flores percam a cor,
E se afastem das certezas primaveris…

Basta.
Os meus choros não podem apagar os risos dos que querem ir adiante.
Os caminhos têm de seguir o seu rumo
E as vozes não podem calar-se antes de Deus as escutar.

Ide, amigos do peito, aves da esperança, corações de mel!
Segui o rumo das aves,
Bebei a clareza das nascentes,
Colhei os frutos das vontades,
E amai o nascer do luar.

Um dia, mais tarde,
No momento em que os vossos olhos
Já beberem a seiva de outros peitos,
E os vossos corpos roçarem outros prazeres,
Iguais à plenitude dos anjos,
Voltai a esta escola
E perguntai por mim!

Com muito carinho, Carlos Afonso…

domingo, 22 de maio de 2011

O vendedor de mentiras




Às vezes, a clareza dos dias nem sempre nos mostra toda a verdade, principalmente se os homens esconderem o que lhes mora na alma.
A tarde estava solarenga e uma frize de limão ajudaria, de certeza, a acalmar a sede que me percorria as entranhas. Não admira, por isso, que a minha determinação me tenha conduzido à padaria Silva e aí tenha procurado a necessário refresco. Nas mesas apenas se dispunham meia dúzia de pessoas. Atrás do balcão, uma funcionária da casa, aí pelos seus vinte e poucos anos, mexia e remexia no que lhe convinha. A frize não demorou a chegar e uma leve sensação de prazer varreu a minha postura, facto que levou a que continuasse naquele espaço simpático mais de uma hora.
Reconheço que o meu tempo anda demasiado preenchido para passar tanto tempo sentado numa mesa colocada no seu assento habitual à espera de ser ocupada. Mas, é importante que as rotinas se quebrem e se pare um pouco para reparar no que nos rodeia. E foi o que eu fiz. No exterior da pastelaria três operários trabalhavam no arranjo do pavimento da rua, enquanto um outro jazia na sua ociosidade, sentado numa máquina escavadora, à espera que alguém o solicitasse. Por entre estes azafamados trabalhadores, muito entulho, barras e cimento e demais dependências, duas raparigas, num passo que mostrava alguma pressa, tentavam arranjar carreiro para poderem seguir em frente. Se calhar iam para escola. Será que iriam chegar a tempo à aula? Levemente, o trabalhador que estava em cima da máquina fez um intencional esforço e seguiu o deambular cauteloso das alunas. O que será que lhe passou pela mente?
No interior da pastelaria cavaqueava-se livremente, ao mesmo tempo que um televisor, colado perto do teto ia dando um ar da sua graça. Por um instante, prestei-lhe a minha atenção. A dada altura, e no momento em que estava a passar no ecrã uma resenha informativa, escutei com toda a clareza do mundo uma voz convicta, que se despegou de uma mesa ali ao lado.
- Lá está o vendedor de mentiras. Mentiroso…
Sem olhar para o lugar donde advinha a voz, mas só podia ser de uma mesa encostada à parede, pois as outras pessoas estavam mais perto do balcão, reparei mais afincadamente no que a televisão transmitia. Na imagem apenas se via um nosso governante a jurar a pé junto que a culpa da crise em Portugal não era dele.

Bem! Perante tamanha convicção fiquei sem perceber as palavras que o meu colega de espaço lhe arrojara. Será que ele tinha informações de que eu não dispunha? E mais a mais, em quem é que devemos acreditar. Num determinado governante português, elegante na sua postura, de formação superior, com um olhar aguerrido e demasiado convencido e convincente, ou num comum popular que, se calhar, já estava a apanhar com a crise pela cara, e o único bem de que ainda dispunha era a liberdade de falar?
Como, no momento, não arranjei resposta para tamanha incerteza, (desculpem, mas estou a ser irónico), levantei-me da mesa, paguei o que devia, olhei de soslaio para o lugar onde estava sentado o descontente eleitor e... Coitado! Pareceu-me bastante abatido. De certeza que ele tem todos os motivos para presentear o nosso douto governante com tão lisonjeiro epíteto.
Só para terminar, e para que ninguém fique com dúvidas em relação às causas que mergulharam Portugal nesta crise avassaladora, se é que existe alguma, quero contar-vos um pormenor. No meu quintal, este ano, não há muita fartura. Esqueci-me de semear o alho francês, as ervilhas e as favas. Para além disso a erva daninha tomou conta de tão pacato espaço e é rainha e senhora daquelas paragens. Será que a culpa é dos vizinhos que não tiveram o arrojo para invadir o terreno alheio e colocar tudo nos eixos?
É evidente que a culpa é toda minha, que não estive à altura da minha obrigação.
Se calhar o meu quintal está a precisar de outro hortelão. E já que estou com as mãos na massa, penso que o meu país também.
Carlos Afonso

sábado, 7 de maio de 2011

Rosa

Ela chamava-se Rosa.
Era aluna do 11º Ano e gostava de estudar. A mãe dizia, muitas vezes, não sei se por vaidade ou por vontade de meter conversa com a vizinha Ana, que a sua filha estava no quadro de excelência da escola onde estudava, o que criava, na avantajada senhora, um fio de inveja.
Antes de se deitar, Rosa gostava sempre de ler algumas páginas de um livro. Não importava o autor, tinha apenas de falar de amor. Este, que agora andava a ler, tinha como título «Uma História de Amor», o que, só por si, lhe agradava. Comprara-o na Póvoa de Varzim e falava de dois jovens namorados que viveram uma linda história de amor, durante umas férias de Verão.
Rosa tinha os cabelos da cor da terra e um sorriso imenso que permanecia agarrado ao seu rosto, o que fazia com que fosse uma rapariga alegre e muito querida por todos. Por vezes, o pai, um homem dos seus quarenta anos, pegava nas mãos níveas da filha e pousava-lhe um simples beijo no rosto, segredando-lhe algumas palavras silenciosas que faziam brilhar, ainda mais, os seus olhos lindos!
Na escola, ela sentia-se feliz, principalmente quando tinha História. Diziam, até, algumas colegas, talvez com alguma malícia, que a sua amiga sentia uma especial simpatia pelo professor Alberto, o que a fazia sorrir.
O professor Alberto já estava naquela escola do interior, rodeada de oliveiras, olmos e fragas cobertas de um musgo amarelado, há mais de cinco anos. Conhecia, como ninguém, a arte de ensinar e a melhor forma de lidar com os seus alunos. Não tinha mais de trinta anos, e, para além de ensinar a exactidão da História, gostava de ler um bom romance e de aconselhar aos alunos, dizendo-lhes que ler um livro era entrar na alma de um criador.
Não morava na vila, sentia-se mais livre na sua casa térrea, batida pelo vento de leste e acariciada pela imensidão do sol, numa pequena aldeia, tendo por companhia as andorinhas, que residiam sob os beirais. Geralmente, ia a pé para a escola, a não ser que o tempo o não permitisse. Gostava de caminhar por vinhedos, silvados e olivais, atravessando caminhos de terra batida e já gastos pelo passar do tempo, mas conhecedores de muitos segredos, que costumavam partilhar com os lírios, na Primavera.
Nesse dia, o professor perdeu as horas e chegou atrasado à aula. Os alunos esperaram, o que lhe agradou. Cumprimentou-os, amigavelmente, e, para espanto seu, reparou que trouxera a pasta vazia. E agora? Não convinha que os alunos se apercebessem do sucedido, pois, e sempre que algum deles se esquecesse do material escolar, costumava censurá-los, ternamente.
Na verdade, a experiência é uma óptima amiga. Escreveu o sumário, olhou os alunos e, numa curiosa abordagem, disse-lhes que aquela aula ia ser diferente. Um leve murmúrio espalhou-se pela sala. Mas, a cumplicidade e uma satisfação partilhada, devolveram ao professor a sua calma habitual.
- O que vamos fazer? - Perguntou a Lígia, num tom algo provocador e espampanante, como costumava fazer, quando queria dar nas vistas. – Vamos dar um passeio?
- Melhor, vamos falar de livros especiais, romances, novelas, contos, poetas, escritores e sonhar…
Após uma breve resistência, todos concordaram e, um a um, foram discorrendo ao sabor das suas leituras. Elas variavam conforme os seus gostos, umas mais intensas, outras mais reflexivas, outras cingiam-se apenas a uns meros jornais especializados em desporto, ou a revistas, interessadas apenas pelo alheio. Quando chegou a vez do Rodrigo, a sala de aula assumiu uma tonalidade mais brejeira, uma vez que o seu inconveniente humor se espalhou pelo ar, levando mesmo o professor a soltar um auspicioso reparo:
- Não é a hora de brincar com a alma de um livro. Fica sabendo que um livro, seja ele qualquer for, reproduz desabafos, sonhos, vivências, reflexões, ou meras opiniões. Humilhá-lo é desrespeitar quem o escreveu, é ofender o seu autor – e franzindo o olhar, sentou-se.
O aluno anuiu as suas extravagâncias e, após pedir desculpa, remeteu-se a um envergonhado silêncio. Convenhamos que comparar um livro a um aglomerado de folhas inúteis, que só se limitam a reproduzir meras incongruências sentimentais, para afogar os outros com discorridas tagarelices, era demais. Claro que este desfraldado comentário iria importunar o carinho que o professor nutre pelos livros. Mas a desajustada situação foi ultrapassada, no momento em que Rosa começou a falar. As palavras soltavam-se daqueles lábios cor de cereja, e todos a escutavam. A forma como falava do seu livro, que comprara na Póvoa de Varzim, e o tom carinhoso que incutia nos seus comentários, despertou a atenção do professor que, e para seu espanto, bebia todas as palavras da aluna, deliciando-se com os seus argumentos sentidos.
Quando Roaa acabou, Alberto perguntou-lhe:
- Nota-se que gostas muito desse livro. Podias emprestar-mo?
- Claro, Sr. professor. Acho que vai adorar. Fala de amor!
- Só por isso? – Perguntou Alberto.
- Haverá argumento mais belo, Sr. Professor?
- Não, Helena, o amor é linda. É ele que nos faz correr pelas estrelas.
- E abraçar o céu - respondeu Rita, num tom carinhoso e enlevado.
O professor sentiu estremecer-lhe a alma, e um fio de sangue tocou o seu rosto assustado. Olhou para ela como quem beija uma fantasia e Rita fitou-o com um olhar seguro e, ao mesmo tempo, carente.
Fez-se silêncio na sala, apenas se ouvia o respirar rouco do vento na vidraça que foi, de repente, quebrado pelo barulho estridente e apressado da campainha.
Todos se levantaram, apenas Rosa se manteve sentada. O Professor deu licença para sair, mas ela permanecia agarrada à sua determinação, o que o levou a dizer-lhe, timidamente;
- Já tocou, podes sair.
- Eu sei, apenas lhe quero emprestar o meu livro.
- Obrigado. Até amanhã - respondeu o professor, contrariando um pedido silencioso do seu coração que lhe pedia para que ela ficasse.
Ela levantou-se, deu-lhe o livro e caminhou para a porta. Num movimento instintivo, mas consentido, virou-se para Alberto e balbuciou:
- Eu gostava de caminhar consigo pelas estrelas - e, sem mais, saiu.
Rosa bateu a porta de levezinho e Alberto sentou-se. Lá fora, o sol frio de Novembro ficou indiferente aos anseios do professor, apenas o vento pareceu reagir.
No regresso a casa, não seguiu o trajecto habitual, embrenhou-se no meio dos campos e deixou-se levar pela leveza da brisa. Passou por pombais, desceu outeiros e refugiou-se debaixo de uma oliveira eterna. Colheu uma mão cheia de azeitonas, que, meigamente, se deixaram acariciar. Escutou os gracejos ingénuos de um regato que incomodava umas fragas pachorrentas e continuou a pensar nas ternas palavras de Rosa, que, confusamente, fervilhavam dentro de si «Eu gostava de caminhar consigo pelas estrelas…»
Acordado pelo voo de um bando de tordos, reparou que a noite descera e que uma névoa fina se espreguiçava no horizonte. Num esforço, arrumou os pensamentos e, num passo apressado e decidido, regressou a casa.
Nessa noite, ao embarcar rumo às estrelas, o professor Alberto sonhou com Rosa…
Carlos Afonso

domingo, 1 de maio de 2011

Essa nova Índia por achar.

Nasci num país repleto de sonhos de mar,
Gerados em almas da cor das manhãs
E presos à imensidade exacta dos séculos…

Ai… se as aves me emprestassem o seu esvoaçar sem fim
E a cor verde da esperança me cobrisse com o seu manto,
Tecido por mãos que fizeram os muros inquebráveis da história!

Escutem! ... Parece que ouvi gritos ávidos de risos e estrelas…
Será a voz do vento a bater nas velas claras das caravelas?

Não. Os caminhos percorridos por espíritos destruidores de medos
E de névoas sem rosto
Não rompem os portais do tempo…
Só a teimosia dos quereres, iguais aos de Vieira, Pessoa e Camões,
Podem acordar os fazedores da história
E apunhalarem a mesquinhez deste agora sem luz,
Estampado nos nossos olhos parados,
Avivando, de novo, a chama que jaz fria dentro dos corações.

Basta. A noite não pode continuar a crestar o brilho das madrugadas,
Indiferente a um passado repleto de heróis…

Ó Infante sem medo, ó Gama imortal, ó Pedro Álvares Cabral,
Não deixeis roubar as raízes pátrias que engrandecestes.
Firmes como a vontade que vos ata ao leme,
Erguei de novo a espada do império
E abatei, de novo, as máscaras do Adamastor


Carlos Afonso

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Encontros incomuns


O que seria do homem se os caminhos apenas o conduzissem ao descolorido do óbvio ou ao enfadonho do predeterminado? Provavelmente, os dias perderiam a frescura da novidade e os sonhos negar-se-iam a surpreender.
A Páscoa estava para breve e os alunos já não precisavam de se levantar tão cedo. Na verdade, as férias escolares haviam chegado, e com elas todo aquele encanto que as define: dormir até mais tarde; algumas passeatas pelas ruas e praças; no café, as conversas prolongam-se até mais tarde; visionam-se filmes; descobrem-se novos jogos; incrementam-se alguns namoros; e por aí fora…
No que a mim diz respeito, e creio que acontece com todos os trabalhadores, também aprecio uma pausa no trabalho. Serve para retemperar as forças e para fazer certas coisas, que no comum dos dias dificilmente se efectuariam: por exemplo, passear à tarde pelas ruas da cidade na companhia da minha esposa.
Sabe bem lançar os pés ao caminho e deixarmo-nos levar pela despreocupação dos instantes, olhando para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, sempre na ânsia de colher algo de novo, ou então, encontrar um amigo que nos afague a memória e nos empreste um sorriso.
A tarde estava solarenga e quase sem dar por isso, a nossa caminhada já roçava a escadaria do Jardim do Calvário, que, lá em cima, mantinha aquela soberba postura que todos admiramos. Ainda bem que as cidades não se esquecem de preservar certos lugares emblemáticos, enfeitados de flores, lagos calmos, árvores centenárias e mil memórias. Claro que não levámos muito a ponderar. Arregáçamos as vontades e, com uma naturalidade a condizer, que causou alguma admiração em três colegas nossos que cavaqueavam numa esplanada ali em frente, fomos revisitar este velho coração de Fafe. Que sensação maravilhosa quando transpusemos os portões e reparámos no empenho de boas vindas que nos era lançado. Há um bom para de anos que não mergulhava neste protectorado na companhia da minha esposa.
Como é bom regressarmos aos sítios que nos querem bem!
Em nosso redor, os canteiros mostravam a custo as suas flores, no lago, um cisne pavoneava-se para os que reparavam nele, as árvores estavam esplendorosas, a passarada chilreava sem fim e um misto de pessoas povoava as clareiras. Nos bancos, alguns pares de namorados trocavam uns mimos não muito ousados, uma mãe tentava adormecer o seu filhinho, alguns senhores de idade relembravam o passado, dois rapazes dos seus trinta anos estavam para ali a fazer não sei o quê e duas mulheres de meia-idade jaziam quietas encostadas a um saco de compras, talvez à espera duma oportunidade de verem algo que as enchesse de pasmo, e que pudesse ser contado às amigas do bairro.
E porque a circunstância o exigia, de mãos dadas e um pouco comprometidos, a minha esposa e eu percorremos em silêncio e de uma forma pausada o carreiro de saibro que circundava o jardim. Talvez estivéssemos à espera de um segredo qualquer ou até, quem sabe de um motivo para um singelo beijo. Claro que a nossa atenção se colocou em riste, quando passamos junto do parque infantil. Ali se demorou a olhar para as crianças que, numa organização ingénua, se engalfinhavam no escorrega e nos baloiços.
Como o tempo passa! O nosso filho mais velho já tem mais de vinte anos, e era ali que o trazíamos quando era pequenino. Uma lágrima inquieta colou-se-me ao rosto e uma brisa minha conhecida disse-me para continuar.
A dada altura, e por sugestão minha, sentámo-nos no único banco de madeira disponível, e deixámo-nos por ali ficar. Do longe, sentimos chegar o som abafado do sino da Igreja nova que bateu pachorrentamente as dezassete horas. Do perto, vimos claramente o riso de uma criança de pouca mais de dois anos que corria atabalhoadamente à frente da mãe, que num esforço extra empurrava um triciclo de plástico. Nessa altura, lembrei-me do meu pai e do triciclo que ele me trouxe da feira de Alfândega da Fé. Como eu pedalava rua a baixo, sem um qualquer medo que me tirasse o jeito de criança!
Regressado ao tempo presente, deixámo-nos ficar por ali algum tempo. Conversámos sobre várias coisas, algumas banais, outras nem por isso. Comentámos certas posturas que se dispunham a nossos olhos e achámos curioso o facto de um velhote em boas condições físicas optar pelo elevador para sair do jardim, em vez de escolher o percurso normal, ocorrência pouco usual em muitos jardins de países desenvolvidos. Também não deixámos passar em claro um quadro deveras interessante que se desenhou de uma forma esplendorosa à nossa frente. Num ramo de uma árvore, estavam duas rolas pousadas numa atitude de confidência. O que diriam elas? Só Deus sabe porque as criou.
A dada altura, e num momento em que o silêncio havia tomado a minha atitude, aconteceu algo tão estranho, e ao mesmo tempo tanto especial, que nem a minha esposa deu por isso. Pelos vistos só eu é que estava destinado a ouvir as palavras que uma mulher dos seus setenta anos me atirou contra a minha estupefacção. E por quê? Deus sabe porque me criou.
- Desculpe, posso sentar-me? – Arremessou-me uma mulher vestida de escuro e com um lenço na cabeça. - Sabe, Senhor, estou um pouco cansada e os bancos estão todos ocupados.
- Por quem é, faça o favor de se sentar – respondi-lhe num tom atencioso.
Por algum tempo, a dita mulher dos seus setenta anos, pareceu fechar os olhos e dormir, mas a dada altura, virou-se para mim, e num tom tingido de ânsia e preocupação, disse-me.
- Tem filhos?
- Tenho três.
- Eu também tenho três filhos e…
Durante algum tempo fomos conversando dos filhos e não deixei de reparar em muitas coincidências nas nossas vidas, principalmente quando me mostrou o seu desespero pelo que podia estar acontecer com dois deles. Os olhos da senhora começaram a parecer-me familiares e um leve perfume a rosmaninho, misturado com outras flores do campo parecia enredar as suas palavras.
- Sabe, o meu filho mais velho, aqui há uns anos, teve um problema grave de saúde. Graças a Deus melhorou, e durante algum tempo tudo parecia correr pelo melhor. Só que agora parece que se esqueceu da sorte que teve e segue os seus dias como se nada tivesse acontecido. Assim que tal, volta-lhe a dar qualquer coisa e vai ser uma desgraça – insistia a mulher, como que querendo que eu entendesse as suas palavras.
Não sei porquê, mas o que eu estava a ouvir não me era estranho, e, muito menos, longe do percurso dos meus dias. E dado que ainda tinha mais para contar, a sua voz fez-se novamente ouvir.
- Sabe, Senhor, também tenho uma filha formada, mas as coisas nem sempre lhe correm de feição. Até parece que as forças do mal a perseguem. Muitas são as vezes em que me telefona…
A partir daqui, fui escutando muitas realidades que eu conhecia, até que a mulher achou por bem ir-se embora, como que tivesse cumprido uma tarefa de que foi incumbida. Na despedida, e por incrível que pareça, afagou-me o rosto com as suas mãos algo cansadas e disse-me que em breve a encontraria em sua casa. Ainda quis saber alguns pormenores adicionais e perceber as razões de tanta franqueza, mas as palavras insistentes da minha esposa impediram-me de o saber e trouxeram-me de volta àquela tarde solarenga e especial de Abril.
- Ó homem, tu adormeceste? Vamos embora que já é tarde.
Regressados a casa, e sem contar este meu sonho ocasional, lá fui preenchendo os minutos desse dia com outros afazeres, mas sem nunca esquecer o que me tinha acontecido. Será que é o que estou a pensar? As coincidências, às vezes, assustam-me.
Nessa noite, deitei-me mais tarde, mas mesmo assim, fui atirado para um tempo longínquo e um espaço não muito afastado do meu alcance. Sonhei que eu era uma daquelas centenas de pessoas que, com uma palmeira na mão, saudavam a Jesus Cristo, quando entrava triunfante na cidade de Jerusalém. E o mais curioso é que no preciso momento em que o redentor passava bem na minha frente, reparei que me focalizou e vi que o brilho dos seus olhos era o mesmo da mulher de setenta anos com quem havia conversado, já para não falar do perfume a rosmaninho e a flores do campo que, também, ali me circundaram. Depois disso, só me recordo da forma triste com que o filho de Deus se despegou do meu reparo, para, conformado, seguir o seu destino.
Nem sempre consigo entender o significado dos sonhos, mas pelo que pude verificar nestes meus encontros incomuns, creio que os percebi perfeitamente.
O que seria da ligeireza das abelhas se não soubessem medir a fúria das tempestades.

Carlos Afonso (Carlosehistorias.blogspot.com)