sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Aconteceu em Fafe...


 


Nessa tarde de Novembro, em plena Avenida 25 de Abril, bem no coração de Fafe, até os carros, os poucos que se davam ao trabalho de correr para o seu destino, pareciam mais cabisbaixos e soturnos. As pessoas, essas então, nem diziam sim nem não, apenas se deixavam levar por alguma conveniência, escondida bem no fundo das suas vontades.

Aqui para nós, e em tom de “mea culpa”, eu era um desses macambúzios que caminhava de mão dada com esta apatia geral. Mas, na verdade, nesta tarde acinzentada, até os jardins circundantes, e que noutras ocasiões têm dado tanto nas vistas pela sua perfumada beleza poética, se escondiam, agora, por detrás de um escorregadio e enfadonho nevoeiro, que envolvia todo aquele passar de horas.

Com as mãos escondidas dentro dos bolsos e os olhos à procura não sei do quê, os meus passos lá faziam o favor de me levar pelos passeios desta extensa avenida, que tem no seu nome, há mais de trinta anos, o rubro vivo da liberdade. E, apesar deste quadro sem muita graça, o meu pensamento, no momento em que esbarrou na abrangência dum espaço tão central de uma cidade de província, deixou-se levar por um leve devaneio, que acabaria por partilhá-lo com a minha disposição. Sentei-me num dos bancos de pedra, que por ali se dispunha, e errei no memorial desta terra, por entre ricos brasileiros, poetas caminhantes, viscondes, morgados, ajustes de contas, e muitos outros momentos da história deste burgo.

Nisto, e no instante em que ouvia, entusiasmado, o discurso de inauguração da chegada do comboio a Fafe, em 21 de Julho de 1907, um grito, aparentemente lúcido, devolveu-me ao meu tempo e a uma tarde que, afinal, e depois de todo um introito que deixava muito a desejar, valeu a pena viver.

(- Ó Costinha, sai da minha frente, se não eu desfaço-te.)

De imediato, os meus olhos, guiados pela estridência do som, colaram-se num vulto que corria, de uma forma desconjuntada, em frente ao café Bar da Praça, na direção do autor do grito, que, entretanto se esquivara por entre a indefinição da obscuridade da tarde.

Para quem não tem o costume de se entrecruzar por estes sítios, provavelmente, ainda não entendeu o que se passou. Mas esta ocorrência, e é com mágoa que o digo, até é bem comum por aqui. Na verdade, a provocação soletrada com malícia e atirada como uma pedra contra o Costinha, agora vou chamar-lhe assim, mas, mais tarde, convém que se diga Sr. Célio Costa, foi mais um dos muitos impropérios lamentáveis, de que este «homem de dom» é vítima. E, ainda antes de mudar de parágrafo para continuar a narrativa, apenas uma certeza em que acredito: é mais lúcido este nosso Costinha, que se move numa involuntária e rija inconsciência, que não o belisca como homem, do que aquele atirador de frases recheadas de uma injuriosa e douta malignidade, e que faz parte desta seita que contamina os carreiros do respeito humano.

Aquela figura de meã estatura, cabelo de um escuro debotado e com um rosto sumido e encardido, corria, assim, numa desorientação turvada, em direção ao seu agressor, que, entretanto se sumira. Os seus olhos tingidos, de um castanho inconsciente, giravam, estonteados, em torno da sua parca parecença e, que de repente, estacaram na minha atenção, fazendo com que a sua correria parasse. Após algum tempo, deixou de me focar e mirou um relógio, que se escondia na manga de um casaco comprido azulado, demorando-se, aí, alguns segundos. (Que horas seriam no seu bendito relógio?) Depois, ao de leve, ergueu o seu olhar, agora mais calmo, voltou-o para mim e sorriu, ao mesmo tempo que proferia um atabalhoado murmúrio, que não percebi. Sem mais, fixou, novamente, o dito relógio, que continuava escondido no tal casaco cumprido azulado, e desapareceu no acinzentado da tarde.

Enlevado com o que acabara de presenciar, olhei o meu relógio, que não estava escondido debaixo do meu casaco, que não era cumprido nem azulado, e reparei que as horas tinham passado. E, após um leve refletir, fixei o espaço por onde o Sr. Célio Costa se havia sumido e sorri também.

Ao longe, o esvoaçar de uma ave mostrou-me que o nevoeiro se esquivara e que as tardes mais enfadonhas não duram eternamente.

 

                                                               Carlos Afonso, 14/11/2009

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A gaivota a quem quiseram roubar o mar…


 

 

        «Era uma vez uma gaivota que morava num velho rochedo, encostado a um mar sem fim. Todas as manhãs, a ave levantava voo e seguia, irrequieta, numa e noutra direcção, mas sempre a roçar a cor do oceano. A sua ligeireza advinha-lhe da amizade que tinha com os ventos norte e leste. A sua beleza foi-lhe oferecida pela maresia. A sua determinação era arrancada, todas as noites, da força das ondas e o seu fado foi-lhe desenhado pelas estrelas. Nunca em toda a sua vida de gaivota deixara de cumprir as suas rotas e desejos, mesmo que se lhe deparassem pela frente tempestades ou sois abrasadores. Mas, numa noite medonha de novembro, o seu destino quase mudou.

            Das profundezas do nada, um nevoeiro muito cerrado ergueu-se, aterrorizador, e envolveu o pobre animal, prendendo o seu fascinante voar. Durante longas horas, a gaivota se debateu com o seu terrível inimigo de cinzento vestido, mais insensível do que as pedras, e nada. A luz dos seus olhos quase se apagou. O seu coração já não sabia o ritmo acertado e as suas penas já estavam cansadas e mortas de sede.

Preocupado, o mar sem fim, que logo sentiu a falta da sua habitual companheira, convocou a força dos ventos, a luz das estrelas e o cheiro da maresia, que, de imediato, se apresentaram, e decidiram por cobro a esta situação.

Como a união faz a força e a verdade dos gestos e do querer é mais vigorosa e bela do que a apatia dos destruidores de sonhos, a ave foi solta e o seu voo foi devolvido ao mar.»

E porque Deus assim o quer, a nossa vida também pode ter finais felizes, basta, para isso, saber reconhecê-los, quando eles nos aparecem bem à nossa frente, ainda que meio sufocados por nevoeiros tingidos de várias cores.

Lutar pelos sonhos em que se acredita é o primeiro passo para a imortalidade.

 

                                                                       Carlos Afonso

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A moeda de vinte cêntimos


     
   Eu nunca imaginei que um homem, numa primeira impressão, me pudesse parecer um pedaço humilhante de gente, principalmente quando me foi contado pelo próprio que, noutros tempos, já fora o rapaz mais valente da freguesia. Quanto ao seu nome, não lho perguntei, muito menos a idade exata que, provavelmente, lhe poderia definir a existência. Apenas lhe gravei o aspeto, a história que me contou e a forma como se desvaneceu na minha realidade.

Estávamos em novembro e as folhas das árvores já tinham pouco préstimo de tão desbotadas que estavam. Fazia frio! Porque me chamou a atenção um quadro sem graça e demais descolorido, parei inesperadamente. Aquietei as mãos nos bolsos e olhei em redor. Pela rua, corriam apressadas algumas pessoas, o mais agasalhadas que podiam, enquanto na pastelaria da esquina, que distava dali uma centena de metros, se aglomerava uma mão cheia de clientes, que não consegui destrinçar o que estavam realmente a fazer. Também não interessa!

De volta à tela revoltada que se me atravessara no caminho, reparei num pobre velho, sentado num banco de jardim, quase encostado a um canteiro despido e sem graça. O seu rosto carcomido, escondido por barbas engrenhadas e sujas, parecia ter mais de cem anos. Os olhos que estendia na minha direção já não tinham cor e não lhe focalizei qualquer certeza ou sentimento. A roupa acastanhada que lhe vestia o corpo perdera há muito a sua utilidade, apenas as suas mãos rugosas e encolhidas procuravam alguma coisa ou talvez não:

- Podia dar-me alguma coisa, por favor?

Aflito, tentei desenvasilhar-me da ocorrência e ainda tentei ignorar o pedido, mas não fui capaz. Com algum discernimento, procurei uma moeda para dar ao pobre homem. Mas… só tinha vinte cêntimos, e… mais nada, pois, se calhar, esquecera-me da carteira em casa. Mas não, não podia ser. Ainda há pouco tempo eu havia comprado o jornal e tinha a carteira comigo. Como tinha o número do telemóvel do rapaz meu amigo, onde comprara o jornal, lá lhe liguei, para ver se a tinha deixado aí, mas nada. Será que perdi a carteira? Onde é que eu a deixei? Será que me caiu do bolso. E agora? Tinha lá os documentos e algum dinheiro. Sem querer passar a minha aflição para o pobre homem que, de certeza, estava em muito piores condições do que eu, peguei na moeda de vinte cêntimos e, com alguma vergonha, sempre lhe estendi a mão:

- Desculpe, meu amigo, mas é só o que tenho. Este é o único dinheiro que tenho. Não sei o que fiz à carteira. Pegue.

Com algum à-vontade, e depois de me olhar com mais afoiteza, pegou na moeda de vinte cêntimos, para logo de seguida ma tentar devolver.

- Desculpe, caro senhor, se essa é a sua última moeda, fique com ela que lhe pode fazer falta. Quanto a mim, agradeço-lhe, na mesma, o seu gesto e que Deus lhe pague. Agora vá para casa e não se aflija porque a sua carteira vai aparecer. Não fique triste.

Claro que eu não aceitei o dinheiro de volta e nem fui para casa. Sentei-me ao seu lado e fiquei por ali mais algum tempo, talvez mais de duas horas. O tempo suficiente para ficar a conhecer a história daquele pobre homem que já fora o moço mais valente da freguesia, e que os seus pais tinham sido uns agricultores remediados lá na aldeia onde nascera. O problema foi a doença que lhe tolheu o futuro e as forças, ainda ele não fizera feito vinte e cinco anos! Contou-me, também, que ficara órfão de pai e mãe, quando tinha apenas dezassete anos, e que não tinha irmãos. Como era de prever, a nossa conversa percorreu vários temas e orientações, facto que me fez esquecer o que tinha acontecido à carteira. Até me contou, sem que eu lho perguntasse, que mais de uma vez estivera para casar, mas que o destino não lho permitira, pois as moças de quem ele gostara, não lhe emprestaram as melhores intenções. Do seu corpo soltava-se um cheiro esquisito.

A dada altura, senti fome, pormenor que me trouxe à memória a carteira, e levantei-me. Mas se eu estava com fome, o pobre velho também devia ter. E agora?

Como que entendesse o que me tolhia o coração, o pobre velho, num esforço que me surpreendeu, ergueu-se a custo do banco de jardim, bateu-me nas costas, circunstância que me fez acelerar o batimento cardíaco, e pediu-me que fosse à padaria e, com os vinte cêntimos que lhe havia dado, lhe comprasse alguma coisa. Mas o que é que se podia comprar com uma simples moeda de vinte cêntimos?

Sem demoras, peguei novamente naquela que já havia sido a minha última moeda e corri para a padaria. Lá chegado, a surpresa foi total, principalmente quando escutei da boca de uma bela jovem de avental azul as seguintes palavras:

-Ó senhor, não perdeu nada?

Meio atarantado, sempre respondi:

- Perdi a carteira, e não sei onde foi.

- Olhe, é esta? Deixou-a aqui um velhote de roupa castanha e com umas mãos rugosas e encolhidas.

- Oh, obrigado! Ainda há gente boa neste mundo! – Acrescentei quase a soluçar.

Claro que aquela carteira era a minha. Que alívio!

Agradeci, mais uma vez, o gesto da bela jovem, verifiquei que ninguém mexera no dinheiro nem nos documentos, e retirei do seu interior dez euros. Depois, comprei um farto lanche que, obviamente, iria matar a fome do meu amigo que deixara no outro lado da rua, e saí apressado. Chegado ao sítio onde devia estar o pobre velho, não vi ninguém. Olhei, tornei a olhar e nada.

Mas onde está o pobre velho?

Como resposta, apenas escutei o silêncio da tarde e um leve calafrio no rosto.

Meti a mão ao bolso das calças, pequei nos vinte cêntimos, que não me pertenciam e coloquei-os, de mansinho, no mesmo sítio onde estivara sentado o pobre velho. Bem ao lado da moeda, deixei também o que havia comprado na pastelaria.

Provavelmente, o meu amigo foi dar uma volta e quando voltar irá encontrará o que era dele por direito.

No dia seguinte, a manhã acordara amena e repleta de sol. Apressado, saí de casa com o único objetivo de encontrar o pobre velho. Dirigi-me ao mesmo sítio onde o vira na véspera e apenas achei o que os meus olhos me mostraram. Sentado no banco, que jazia encostado a um canteiro, estava um simpático rapaz, com um livro numa das mãos e uma pequena moeda na outra, que, de vez em quando, atirava ao ar para logo de seguida a apanhar. A roupa que lhe cobria o corpo era de um tom acastanhado vivo e fino. Quando me aproximei, o jovem olhou-me com clareza e, sorridente, convidou-me para me sentar ao seu lado. Depois, num tom de voz quase familiar, falou-me:

- Bom dia! Então sempre encontrou a carteira?

As suas mãos já não eram rugosas nem encolhidas.

 

 

                                                                                                                                    Carlos Afonso

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Entre a vida e a morte


 

 
Nasce-se de ventres prenhes de esperança,
Donde a clareza sedenta de futuro
Se ergue por entre choros de Vida…

 Depois…
Cresce-se ao sabor dos dias,
Toca-se em cristais de sonho,
Beijam-se luares claros,
Dorme-se no perfume dos lírios
Apontam-se certezas,
Colhem-se encruzilhadas, 
Libertam-se passos definidos,
Erguem-se castelos de areia,
Atiram-se pedradas cinzentas,
Ouvem-se palavras sinceras,
Roubam-se momentos inocentes,
Afagam-se pores-do-sol sem volta,
Dizem-se verdades escondidas,
Semeiam-se searas ao amanhecer,
Sobem-se escadas incertas,
Comem-se frutos amargos,
Constroem-se noites sem estrelas,
Oferecem-se rosas sem espinhos,
Mergulha-se em rios parados,
Tropeça-se em caminhos de enganos
E …
Basta.

  Acabou-se o tempo.
As portas cerraram-se,
O horizonte escondeu-se no ocaso,
As aves perderam-se na escuridão,
E o silêncio…
Ergueu-se por entre choros de Morte.

Carlos Afonso