sexta-feira, 15 de outubro de 2010

El Rei Dom Sebastião regressou do meio dos cardos

Nessa sexta-feira de Outubro, a noite não estava para brincadeiras. A chuva caía forte, o vento varria tudo à sua passagem e uma neblina insistente associava-se à escuridade da noite, quase que impedindo que os persistentes candeeiros da rua, com o seu alumiar amarelado e gasto, dessem um ar da sua graça. Dos meus olhos, escondidos por detrás da vidraça do quarto, derivava uma curiosidade esforçada, procurando aqui e ali um ponto de referência que amenizasse um pouco aquele quadro desengraçado. Perdi o meu tempo.
Ainda antes de dormir, ou porque o arfar assustadiço do temporal que vinha lá de fora não dava tréguas, nem mesmo dentro do quarto, ou porque ainda não era hora de embarcar no sono merecido, um diálogo a dois puxou-me para outras certezas.
Depois de um breve desfiar de ocorrências da véspera, que tanto eu como a minha esposa trouxemos para aquele momento de aparente insónia, uma história, ou melhor, uma conversa que ela havia tido com uma colega nossa, na escola, nessa manhã, veio relembrar-me o que já há muito tempo sei. O país parece que não consegue desenvencilhar-se da corda que lhe aperta o fôlego, e um certo desnorte começa a embrenhar-se por entre o nosso acreditar. Não admira, por isso, que a nossa colega tenha dito à minha esposa, com uma voz algo atarantada e sem remédio, que, provavelmente, teria de despedir a empregada, porque o dinheiro do seu vencimento já não chegaria para esse encargo.
Já agora, sabem o porquê desta aflição toda? Eu conto, mas juro-vos que não vai apanhar ninguém de surpresa. O nosso governo, num gesto pouco original e sem provas dadas, desenterrou do meio da rispidez que cobre Portugal uma solução que irá, em princípio, perfumar este jardim à beira mar plantado. Isto é, decidiu aumentar aos impostos e subtrair aos ordenados, sem se esquecer, também, de cortar algumas regalias que apenas eram sentidas por alguns.
Ora bem! Esta jogada de mestre, no entender de quem a arquitectou, provavelmente, irá salvar o país. Espero bem que todos estes sacrifícios exigidos não acabem por encher alguns sacos errados e que as coisas continuem na mesma. Convém não esquecer que até o caminho mais íngreme tem sempre um ponto de chegada
Só um aparte. Como é que fica a situação da empregada da minha colega, no meio disto tudo? Quem é que irá zelar pelos suas obrigações e vontades, se a desgraçada tiver de ser despedida, para que a pátria se possa erguer do nevoeiro onde a mergulharam?
Coitada! A corda quebra-se sempre do lado do mais fraco. Ai vida, vida! Talvez um dia as coisas mudem e a água deixe de correr só porque o rio a leva.
Nessa noite de temporal e de algumas angústias à flor da pele, onde não faltou o relembrar de todo um rol de negatividades que têm vindo a afectar os portugueses, até os discursos sérios e preocupados dos nossos políticos vieram à tona.
Reconheço que esta conversa entre mim e a minha esposa, à partida, não seria a melhor solução para quem precisava de uma noite bem dormida, mas o que é que se havia de fazer? Às vezes, os assuntos nem sempre são os que mais nos convêm, mas o facto é que eles surgem.
Apesar de tudo, o sono sempre acabou por chegar, arrancando-me daquelas constatações nuas e cruas, e conduzindo-me para um sonho que me afastou da clareza do óbvio.
Das profundezas do meu dormir, vi emergir do fundo dum imenso mar de cor verde, repleto de cardos sem flor, uma nau com as velas desfraldadas, e onde se podia ver, no seu interior, um homem ainda jovem, que aparentava ser uma figura importante, talvez um rei. As suas mãos estavam presas ao leme e o seu olhar estendia-se pelo horizonte. De repente, duas gaivotas, vindas do nada, desceram a pique sobre a embarcação e poisaram nos ombros de tão estranho e altivo marinheiro e um vento suave começou a fazer-se sentir, enquanto uma névoa gélida envolveu os espaços. Quase de seguida, o ribombar dum trovão assustou as aves que, num repentino esvoaçar, mergulharam por entre os cardos e desapareceram. A névoa tornou-se, ainda, mais baça. Num gesto determinado, o tal homem despegou os olhos do horizonte, apontou numa direcção precisa e a nau começou a movimentar-se nesse mesmo sentido.
Numa força concertada, os cardos começaram a remexer-se, enrodilhando-se, por vezes, uns nos outros, como que querendo impedir que a nau seguisse o seu rumo. Não lhes valeu de nada, porque uma força maior guiava o querer daquele homem que continuava com o dedo apontado numa direcção precisa.
A dada altura, a névoa, como que num gesto de magia, dissipou-se e uns quantos relâmpagos começaram a cruzar tudo em redor. Como que vinda não sei de onde, uma voz estridente e firme começou a ouvir-se:

«Levando a bordo El-Rei Dom Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto, o pendão
Do Império,
A última nau, ao sol da esperança
Regressa às praias de Portugal,
Na ânsia de erguer da noite
Um povo com alma
E que quer voltar a ser grande.»

Num esvoaçar aflito, as gaivotas assomaram à tona da água, ergueram-se no ar e seguiram o balouçar determinado da nau, ladeando-a, numa postura que mais parecia a de uma guarda de honra.
Meu Deus! Nessa altura um só pensamento me surgiu: «Afinal o nosso fatídico rei, não morreu nos campos de batalha de Alcácer-Quibir! Isto quer dizer que os bruxos, os adivinhos e o nosso grande poeta, que escreveu o seu livro “… à beira mágoa”, sempre tiveram razão, quando diziam que ele havia de regressar numa manhã de nevoeiro, para salvar Portugal.»
Sem que a minha vontade o desejasse, uma música descontextualizada trouxe-me para a realidade do quarto, fazendo com que o sonho que me envolvia se desvanecesse. Era o previdente despertador.
Reparei nas horas, levantei-me, abri a persiana e olhei o exterior. Da chuva diluviana da noite, apenas o molhado da vegetação em redor o indiciava, porque o amanhecer azulado do céu dava a entender que o dia iria trazer outro esplendor.
Ainda absorto no que advinha do meu dormir, não deixei de reparar no que os olhos me traziam lá do fundo daquele horizonte que acabara de acordar: uma nuvem em forma de barco, ladeada de duas aves que, num movimente lento, se moviam na minha direcção.
Claro que, na altura, da minha cabeça só podiam ter discorrido aquelas palavras, e que ainda guardo no entendimento: «Que estranho! Será que é o que estou a pensar?
Talvez a empregada da minha colega esteja com sorte.»

Carlos Afonso

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Ser Professor…

Ser professor é crescer no meio de verdes prados que anseiam pelo sol de Maio!
Ser Professor é caminhar por montes e vales, onde a braveza dos momentos se mistura com os encantos da paisagem!
Ser professor é semear sonhos e estrelas em corações famintos e tenros!
Ser professor é ajudar a construir castelos, onde a areia é mais fina!
Ser professor é saber encontrar certezas onde reinam os silêncios!
Ser professor é palmilhar caminhos difíceis e ir ao encontro do sol!

Ser professor é ser pai, mãe, amigo, confidente, resistente, sonhador, actor, orientador, companheiro, lutador, conselheiro, sofredor, acrobata, pintor, escultor, doutor, músico, psicólogo, palhaço, fragmento, ciência, tolerância, acção, guia, rumo, névoa, luz…

Ser professor é dar, abrir, erguer, encarar, cuidar, amar, subir, sorrir, encontrar, resistir, viver…

Ser professor é ser gente.

Carlos Afonso

Um olhar diferente

Nessa tarde de Novembro, em plena Avenida 25 de Abril, bem no coração de Fafe, até os carros, os poucos que se davam ao trabalho de correr para o seu destino, pareciam mais cabisbaixos e soturnos. As pessoas, essas então, nem diziam sim nem não, apenas se deixavam levar por alguma conveniência, escondida bem no fundo das suas vontades.
Aqui para nós, e em tom de “mea culpa”, eu era um desses macambúzios que caminhava de mão dada com esta apatia geral. Mas, na verdade, nesta tarde acinzentada, até os jardins circundantes, e que noutras ocasiões têm dado tanto nas vistas pela sua perfumada beleza poética, se escondiam, agora, por detrás de um escorregadio e enfadonho nevoeiro, que envolvia todo aquele passar de horas.
Com as mãos escondidas dentro dos bolsos e os olhos à procura não sei do quê, os meus passos lá faziam o favor de me levar pelos passeios desta extensa avenida, que tem no seu nome, há mais de trinta anos, o rubro vivo da liberdade. E, apesar deste quadro sem muita graça, o meu pensamento, no momento em que esbarrou na abrangência dum espaço tão central de uma cidade de província, deixou-se levar por um leve devaneio, que acabaria por partilhá-lo com a minha disposição. Sentei-me num dos bancos de pedra, que por ali se dispunha, e errei no memorial desta terra, por entre ricos brasileiros, poetas caminhantes, viscondes, morgados, ajustes de contas, e muitos outros momentos da história deste burgo.
Nisto, e no instante em que ouvia, entusiasmado, o discurso de inauguração da chegada do comboio a Fafe, em 21 de Julho de 1907, um grito, aparentemente lúcido, devolveu-me ao meu tempo e a uma tarde que, afinal, e depois de todo um intróito que deixava muito a desejar, valeu a pena viver.
(- Ó Costinha, sai da minha frente, se não eu desfaço-te.)
De imediato, os meus olhos, guiados pela estridência do som, colaram-se num vulto que corria, de uma forma desconjuntada, em frente ao café Bar da Praça, na direcção do autor do grito, que, entretanto se esquivara por entre a indefinição da obscuridade da tarde.
Para quem não tem o costume de se entrecruzar por estes sítios, provavelmente, ainda não entendeu o que se passou. Mas esta ocorrência, e é com mágoa que o digo, até é bem comum por aqui. Na verdade, a provocação soletrada com malícia e atirada como uma pedra contra o Costinha, agora vou chamar-lhe assim, mas, mais tarde, convém que se diga Sr. Célio Costa, foi mais um dos muitos impropérios lamentáveis, de que este «homem de dom» é vítima. E, ainda antes de mudar de parágrafo para continuar a narrativa, apenas uma certeza em que acredito: é mais lúcido este nosso Costinha, que se move numa involuntária e rija inconsciência, que não o belisca como homem, do que aquele atirador de frases recheadas de uma injuriosa e douta malignidade, e que faz parte desta seita que contamina os carreiros do respeito humano.
Aquela figura de meã estatura, cabelo de um escuro debotado e com um rosto sumido e encardido, corria, assim, numa desorientação turvada, em direcção ao seu agressor, que, entretanto se sumira. Os seus olhos tingidos, de um castanho inconsciente, giravam, estonteados, em torno da sua parca parecença e, que de repente, estacaram na minha atenção, fazendo com que a sua correria parasse. Após algum tempo, deixou de me focar e mirou um relógio, que se escondia na manga de um casaco comprido azulado, demorando-se, aí, alguns segundos. ( Que horas seriam no seu bendito relógio?) Depois, ao de leve, ergueu o seu olhar, agora mais calmo, voltou-o para mim e sorriu, ao mesmo tempo que proferia um atabalhoado murmúrio, que não percebi. Sem mais, fixou, novamente, o dito relógio, que continuava escondido no tal casaco cumprido azulado, e desapareceu no acinzentado da tarde.
Enlevado com o que acabara de presenciar, olhei o meu relógio, que não estava escondido debaixo do meu casaco, que não era cumprido nem azulado, e reparei que as horas tinham passado. E, após um leve reflectir, fixei o espaço por onde o Sr. Célio Costa se havia sumido e sorri também.
Ao longe, o esvoaçar de uma ave mostrou-me que o nevoeiro se esquivara e que as tardes mais enfadonhas não duram eternamente.

Carlos Afonso, 14/11/2009

domingo, 10 de outubro de 2010

O homem de Moscovo

Em todas as grandes cidades do mundo, muitas vidas sem rosto divagam pelas ruas e nem sempre decoram estas metrópoles com as melhores cores. Pedintes, bêbados, velhos sem rumo, mulheres que se vendem para não morrer à fome, entre outras manchas pouco amadas, que não se coadunam com os parâmetros oficiais, e sujam as fotografias, quando a curiosidade dos turistas não lhes é indiferente. Dimitri faz parte deste grupo de pessoas, apelidadas, por vezes, de marginais.
Nessa tarde de Julho de 2010, Moscovo abrasava com os seus trinta e oito graus, e com algum fumo à mistura, fruto dos muitos incêndios que a afligiam, para aflição dos muitos transeuntes que, por variadas razões, tinham de palmilhar as suas ruas e longas avenidas.
Para um português oriundo do norte de Portugal, que, por esta altura, visitava esta imensa urbe, na companhia de mais algumas dezenas de compatriotas, sedentos de descobrir a realidade russa, tudo o que se deparava aos seus olhos era motivo de admiração e reparo, principalmente, porque pisavam terras que já sentiram os mandos e desmandos de Ivan, o Terrível; Pedro, o Grande; Lenine; Estaline; Brejnev; entre outros.
Moscovo é a capital e a maior cidade da Rússia e foi fundada em 1147. É também a maior área metropolitana da Europa e está entre as maiores áreas urbanas do mundo. Esta megacidade, com mais de dez milhões de habitantes é um grande centro político, económico, cultural, religioso, financeiro, educacional e de transporte, uma cidade global.
E porque as sombras nem sempre são reflexo de bem-estar, num dia de muito calor, o que se poderá dizer daquele homem vestido de um negro sujo, que, quase sem se mexer, ali se deixava estar, encostado a um dos muros da imponente Praça Vermelha, um dos lugares mais emblemáticos de Moscovo, completamente mergulhado pela quentura dum sol devorador, que lhe cobria todo o corpo.
Este imponente sítio foi idealizado com a finalidade de existir um espaço livre junto ao Kremlin para evitar os incêndios, tão habituais na época. Toda a sua grandeza encheu-nos os olhos, e não era para menos, já que os seus 74.831 metros quadrados de superfície, 695 metros de comprimento e 130 metros de largura não eram para brincadeiras.
Sem sombra de dúvida que aquele sítio era o melhor para usufruir de alguns trocados, dados pelos turistas, que por pena, ou porque simpatizavam com um sorriso diferente que se escapava duns lábios, quase escondidos por uma barba avermelhada, ali deixavam cair, numa lata quase tão velha como a calçada que servia de assento a Dimitri.
Apenas um pormenor: na sua mão esquerda arrumava-se uma pequena cruz ortodoxa, feita dum material dourado resplandecente, que não me passou despercebida, mas que o homem escondeu num dos bolsos largos da sua túnica preta, como que receando que lha roubasse. Estranho gesto o seu!
Porque era um desses turistas que por ali se passeava, e porque esse homem me despertara a curiosidade, aproximei-me, meti as mãos ao bolso e tirei alguns rublos, que, sem receio, deslizaram até à dita caixa de lata. Quase ao mesmo tempo em que as moedas se enrodilhavam nas restantes, e que já eram muitas, um «obrigado» bateu-me nos ouvidos, arremessado pelos lábios de Dimitri.
O quê!? Questionei-me, algo desorientado, ao mesmo tempo que assentava os olhos nessa figura vestida de negro, que, em princípio, não devia ter proferido aquela simples palavra pertencente à língua de Camões, como que à espera de algumas explicações. E elas não tardaram.
- Estão a gostar de Moscovo?
- Mas, você fala português? – perguntei-lhe, estupefacto.
- Mais ou menos. Há alguns anos, durante a guerra do Afeganistão, conheci dois empresários brasileiros, pois, durante três meses, fiz parte dum grupo de soldados que olhava pela sua segurança, e aprendi a vossa língua. Como deve imaginar, naquela altura, passávamos algumas horas e até dias, dentro de casa à espera que existisse segurança para nos movimentarmos dentro de Kabul. Muitas vezes estávamos horas a fio a tentar conversar. Eles a aprofundarem o russo e eu a tentar perceber a sua língua.
- Mas, nós somos portugueses.
- Eu sei. Mal o vosso grupo entrou na Praça Vermelha, imediatamente reparei na bandeira que aquele rapaz de calções azuis trazia nas mãos.
Claro que o rapaz de calções azuis era o Pedro, um companheiro especial, que tem por hábito trazer consigo uma bandeira nacional, sempre que este grupo de portugueses se aventura, durante o Verão, e já alguns anos a esta parte, a viajar por este mundo de Deus.
A nossa conversa prolongou-se por mais de uma hora, tempo mais que suficiente para saber que depois da guerra foi guia em Moscovo, durante três anos, acompanhando grupos de turistas portugueses e brasileiros, mas que um acidente o havia atirado para o desemprego, e que a partir dessa altura o que lhe valia era aquele cantinho da Praça Vermelha para lhe dar o sustento. Também me segredou, e porque era um fascinado pelas grandes aventuras marítimas, que um dia gostava de vir a Portugal, para poder ver com os seus próprios olhos o lugar donde Vasco da Gama partira para a sua longa viagem para a Índia.
A dada altura, e no momento em que os sinos da Catedral de São Basílio, mandada construir pelo Zar Iván, o Terrível, ou porque alguma necessidade ou compromisso o obrigaram a levantar-se e seguir o seu rumo, ergueu-se a custo, pegou na sua caixa de lata, que até estava bem composta, limpou meia dúzia de lágrimas que teimavam em molhar-lhe o rosto e virou-me as costas. Depois, e como quem se despede de alguém que se estima, Dimitri, olhou-me fixamente, e disse:
- Até breve, meu amigo.
- Até breve - respondi-lhe eu, no mesmo instante em que as minhas mãos tentaram tocar nas dele. Já não foram a tempo.
É curioso! Não sei porquê, mas no instante em que ele se afastava, lembrei-me dum pequeno texto que li num prospecto relativo a este majestoso monumento, um ex-líbris arquitectónico de Moscovo, e que fazia referência a uma lenda que ajuda a compor na perfeição o cognome de quem o mandara construir. Parece que Ivan ficou tão fascinado com esta catedral que não quis que se fizesse outra igual. Para que isso acontecesse, e porque o seu ímpeto maquiavélico lho ditara, mandou furar os olhos do arquitecto que a projectara.
Num coxear que metia impressão, Dimitri contornou a entrada que dava acesso a tão distinta praça e desapareceu. Ao longe ouviu-se a sirene abafada, vinda dos lados do rio Moscou, e que me estremeceu o peito. Quase em frente, o Mausoleú de Lenin manteve-se indiferente e num silêncio absoluto, reflexo de um passado quase esquecido e com poucos seguidores.
No dia seguinte, ainda arranjei algum tempo para voltar à Praça Vermelha e procurei o nosso amigo da véspera. Queria conversar mais um pouco e saber outros pormenores, aqueles que ficam sempre em aberto. Mas foi em vão. No seu lugar, encostado a um dos muros que cercam a Praça Vermelha, dormitava, agora, uma velhota vestida de azul, cor de mar. À sua frente estendia-se uma toalha, também ela azul, sarapintada de tons brancos, e que servia de base a uma dúzia de pequenos barcos feitos de conchas, para turistas comprarem. Por coincidência ou não, a cruz ortodoxa, feita dum material dourado resplandecente, igual à que vira nas mãos de Dimitri, ocupava o centro da toalha. O que estava ela ali a fazer?
Como que levado por um pressentimento repentino e mais que justificado, apenas uma ideia me veio à cabeça. Se calhar o nosso homem, arranjou vaga num navio qualquer e fez a sua última viagem. Talvez tenha ido ver com os seus próprios olhos o lugar donde Vasco da Gama partira para a Índia.
«Às vezes, não são os caminhos traçados pelos homens que nos levam às metas tão ansiadas. São os desejos, aqueles que nos remexem a vontade, que, e tal qual o esvoaçar natural do vento mais forte, nos agarram nas mãos e nos arremessam contra a infinitude do nosso destino.»
Carlos Afonso

Em terras de Trás – os – Montes

Em terras de Trás-os-Montes,
Nasceram das raízes das figueiras
Histórias de certos homens
Que nas veias têm fontes,
Nos olhos agrestes montes
E nas mãos, muitas palavras,
Arrancadas das pedreiras
Que na vida se formaram.

Em terras de Trás-os-Montes,
Nasceram da correnteza das ribeiras
Histórias de certos homens
Que nas dores têm sangue,
Nas alegrias, quentes verões
E nos sonhos, rios de mosto
Bebidos em madrugadas
Que na esperança desaguaram.

Em terras de Trás-os-Montes,
Nasceram da força dos ventos
Histórias de Certos homens
Que no corpo têm o verde agarradiço das estevas,
Nos passos, a ânsia dos pardais
E na alma, a limpidez do azeite,
Colhida em Invernos
Que na terra crestada se afogaram.

Em Terras de Trás-os-Montes
Nasceram da rudeza dos carrascos
Histórias de certos homens
Que no peito têm o voo do tempo,
Na boca, os ais dos fraguedos
E no rosto, a fartura das sementes,
Enterradas em tardes de névoa
Que em doces flores se transformaram.

Carlos Afonso