quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O SEMEADOR DE ESTRELAS


 

Conta-se que há algum tempo atrás, nas terras de Montelongo, vivia um homem que tinha por costume, durante o seu sonhar, seguir o rumo das estrelas e o seu eterno brilhar. Numa noite, naquelas noites em que os céus do Minho se enchem de milhares de pontos a cintilar, esse homem conseguiu ir longe nos seus intentos e, depois de muito o tentar, conseguiu roubar algumas estrelas do seu límpido morar. Assim, e sem que ninguém o notasse, escondeu-as numa velha sacola e, com algum engenho, arrumou-as num determinado sítio até encontrar o momento adequado para um destino lhe dar.

Na sua vontade de homem que não via limites no seu desejar, achou por bem escolher o local acertado para, com jeito e todo o cuidar, as suas estrelas, finalmente, semear. Correu montes e vales, aldeias e vilas, sempre sempre a procurar. E, na sua demanda de pasmar, sempre lá achou o chão propício para o seu desejo materializar.

E porque um homem só não vai a qualquer lugar, chamou logo uns amigos para com ele trabalhar, que numa atitude responsável, mostraram muito gosto em ajudar. Se no início eram poucos, depois foi sempre a acrescentar, até que a dada altura já era um concelho inteiro nesta grande empreitada a trabalhar

A terra eleita, para este necessário semear, foi limpa de alguns pormenores para se poder lavrar. Do céu veio o sol e a chuva e encanto do luar, para logo de seguida as tais estrelas roubadas do sonho serem ali lançadas, para mais tarde poderem de novo acordar. O tempo lá foi seguindo no seu normal caminhar, até que num mês de março, que não se sabe precisar, umas ervinhas bem fresquinhas começaram a despontar.

Se no mundo há maravilhas com todo o seu encantar, naquelas terras do Minho aconteceram coisas que deram muito que palestrar. Assim, o que eram estrelas de um outro estrelar, agora daqueles campos brotam tradições e memórias que a alma de todo um povo deverá sempre preservar. E porque o futuro ainda tem muito para dar, é importante que o trabalho continue pois é de cultura e vidas que estamos a falar.

 

«Um povo sem memória é um povo sem história, e um povo sem história é um povo sem futuro.»

Carlos Afonso

domingo, 17 de fevereiro de 2013

PARA FAFE, COM AMOR



FAFE

 

Estendida aos pés dos cinzentos graníticos dos montes,

E coberta por uma imensidade de verdes que a decoram

E lhe emprestam a sua sina,

 Fafe emerge da frescura amena que a afaga,

E mostra, aos silêncios que lhe estendem o seu manto,

 A verdade de uma terra que não morre,

E as certezas de que o céu é a mansão dos seus heróis.

 

Abrigada dos ventos que não param,

E voltada para um futuro que se lhe oferece,

 Fafe recebe da pureza das velhas carvalhas,

Onde esbarram as friezas invernais,

A vida de um povo marcado pela seiva gloriosa dos sonhos

 E pelas conquistas gravadas, nas paredes da sua história.

 

Apelidada da sala de visitas do Minho

E atenta ao andar das águas, que os rios levam para o mar,

Este amor de cidade aceita, na sinceridade das suas ruas

E na simpatia dos seus usos,

O passo das muitas gentes

Que queiram sentir o pulsar das nascentes virginais

E a franqueza jovial do esvoaçar das aves

Por entre pauis e pinheirais.

 

Agarrada à franqueza que lhe corre na alma sedenta

E imersa na riqueza que alinda a sua memória,

Fafe esparge o perfume poético dos jardins,

E convida o coração dos caminhantes a saborear e a sentir

Os encantos de uma terra, onde a lenda da sua justiça

E a doçura das suas cavacas

Acalentam a sua perene existência. 
 
 
Carlos Afonso

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

SEMEAR O FUTURO


 

 

                Porque as 4ªs JORNADAS LITERÁRIAS DE FAFE se aproximam (19 a 28 de abril), sinto necessidade de partilhar alguns excertos da entrevista que dei ao jornal “Notícias de Fafe”, de 5 de abril de 2012, centrada nas Jornadas Literárias de Fafe. Será que o passado tem razão?

                                                                              **

CA- Em primeiro lugar, quero agradecer o convite simpático que o “Notícias de Fafe” me fez para esta entrevista. É uma honra poder colaborar com este jovem e promissor semanário fafense. Conheço alguns dos seus excelentes profissionais, o que me leva a acreditar que Fafe está mais rico, pois a cultura e as nossas tradições terão mais um espaço para se evidenciar.

 

NF - Em poucas palavras como descreve a cultura fafense da primeira década do novo século?

 

CA – Nasci numa aldeia de Trás-os-Montes e, desde essa altura, tenho percorrido muitas terras, conhecido muita gente e contactado com muitas formas de fazer, sentir e promover a cultura.

A vossa questão pede-me para descrever a cultura fafense na primeira década deste século. Ora bem, em primeiro lugar quero dizer-vos que a cultura fafense tem seguido um caminho positivo. Os responsáveis pelo seu incremento são pessoas de bem e que eu estimo e admiro. São pessoas que têm uma forte sensibilidade cultural e que sabem o que fazem. Claro que nem tudo tem sido perfeito, mas isso é normal acontecer, pois os homens são detentores de falhas e pormenores a melhorar. Fafe tem uma forte e diversificada vivência cultural, não podemos esquecer que os nossos jardins, para além de flores, estão salpicados de muita poesia fafense, o que me satisfaz muito. O apoio a autores fafenses, nas várias vertentes, também tem sido uma excelente ideia que deve continuar. Se calhar o que estava a faltar era uma cultura um pouco diferente, uma cultura que batesse às portas das pessoas, que é o que está a fazer-se sentir com as Jornadas Literárias.

 

NF - Como surgiu a ideia das Jornadas Literárias (JL)?

 

CA – A vossa questão remete-me não só para o ano de 2010, altura das 1.ªs Jornadas Literárias de Fafe, como também para o tempo em que organizava eventos culturais na minha pequena aldeia, ainda como estudante, assim como para o tempo em que nas colónias de férias, durante as pausas escolares, onde gostava de envolver todas as crianças e monitores em torno de uma ideia. Graças a Deus que sempre consegui organizar momentos culturais de que me orgulho. E o mais interessante é que as pessoas também se reviam neles.

Quando em 2010, e em conversa com os meus alunos de Literatura Portuguesa, lhe confidenciei de que seria interessante assumir uma atitude mais intensa e ativa perante a cultura e os escritores de Fafe, eles foram os primeiros a incentivar-me e a colocarem-se do meu lado. A partir daí, um rio que começou a nascer dentro de mim, nunca mais parou. Conversei com alguns amigos que de imediato de juntaram a mim, assim como a Diretora da Escola Secundária, Dr.ª Natália Correia, que sempre me apoiou nestas iniciativas. A minha amizade com o Dr. Coimbra, um homem de muito valor e que muito estimo, permitiu ligar-me à Câmara Municipal, o que veio a consolidar o projeto das Jornadas e a lançá-lo no futuro.

 

NF - Que significado tem para si este evento cultural?

 

CA - Como devem imaginar, este evento cultural tem, para mim, um valor incalculável. Às vezes, as pessoas admiram-se com o afinco que eu dedico a esta iniciativa. Mas é a minha forma de embalar um filho de tenra idade que ainda tem um longo caminho à sua frente para percorrer, continuamente envolto em dificuldades e indecisões. Não admira por isso que quando alguma coisa não corra pelo melhor, eu sofra e me preocupe. As Jornadas literárias não são minhas. São de Fafe. Mas têm nas suas veias o meu sangue. Olho para esta forma de fazer cultura como uma mais-valia para toda uma região e para todo um povo que não quer esquecer as suas raízes e a sua alma.

 

NF -Considera que as JL abriram novos horizontes para a cultura fafense?

 

CA - Eu sei que às vezes é mais fácil tratar da cultura através do telefone, pois há organismos específicos que permitem organizar eventos quase sem falhas. Há especialistas para isto e para aquilo. Basta ligar e já está. As Jornadas Literárias são diferentes. Tudo assenta no amadorismo, no gosto que se coloca nas coisas, na boa vontade das pessoas, na verdade dos momentos, na cultura que mora dentro de nós. Esta forma de tocar as pessoas faz com que novos horizontes se abram e que esta construção cultural não tenha um limite definido. Há sempre qualquer coisa a acrescentar e a limar.

Pessoalmente, penso que o que está a acontecer em Fafe é uma espécie de necessidade de sobrevivência. O nosso povo, as nossas instituições e associações têm os olhos postos nas Jornadas Literárias e veem nelas uma forma de mostrarem o que de bom sabem fazer, assim como uma espécie de janela que os ajuda a justificar a sua existência. Eu acho que Fafe ainda vai ter muitas surpresas agradáveis, porque há muito querer na nossa gente e gosto em mostrar o que de melhor têm.

 

NF - As JL arrastam multidões que lotaram o Multiusos e encheram o centro da cidade. Existe segredo para esta mobilização?

CA - O segredo está no espírito das jornadas que mora bem no fundo das pessoas. As Jornadas Literárias cheiram a verdade, a tradições, a povo, a terra, a ar puro, a pedras, a alma, a coração, a fé, a ribeiros, a partilha, a bairrismo, a esperança, a broa e a sobrevivência. O segredo das Jornadas está, igualmente, no poder de união que se espalhou com o vento e ao ritmo dos sons da verdadeira música minhota. O segredo das Jornadas está no facto de as pessoas as sentirem suas.

 

NF - Como se consegue fazer tanto com tão pouco?

 

CA - As terras de Fafe são ricas em cultura, história e folclore. As várias escolas que existem no concelho estão repletas de excelentes professores e de alunos com muito engenho. As associações, as instituições, as Juntas de freguesia, o Município e outros organismos não se importam de dar tudo o que têm. A minha demanda e a dos meus colegas de ofício pelas nossas freguesias permitiu-nos conhecer pessoas de excelência, o que ajudou em muito a causa das Jornadas.

A ligação de Fafe ao Brasil é uma mina a explorar. Para além disto tudo e muito mais, há certas pessoas que trabalharam comigo que são o que de melhor existe em Portugal (…). Perante estes ingredientes todos, tudo é mais fácil de confecionar.

Quando se têm os melhores materiais, a sorte por companheira e um tempo favorável, consegue-se construir a casa mais bela. Mas atenção, tudo tem acontecido, porque a dignidade e a amizade nunca faltou nas atitudes dos vários agentes.

 

NF - O Professou “ofusca” figuras da cultura fafense. Sente-se um homem invejado?

 

CA - Eu não sei se ofusco certas pessoas ou se crio inveja em alguém. Se isso acontece o mal não está na minha pessoa, está naqueles que não sabem ver a verdadeira cor das flores. Eu defino-me como uma pessoa simples, incompleta, irrequieta, incauto, sonhador, crente e amante do povo. Sou apenas um homem que gosta do que faz e nem sempre acredita no que diz. Sou apenas um homem que gosta de ouvir as pessoas, sentir os sentimentos e que ainda tem muito para aprender.

 

NF - O Município de Fafe tem, seguramente, reconhecido o seu trabalho, (…)?

 

CA - O Município de Fafe sempre esteve com as Jornadas Literárias. Sem a sua forte colaboração e apoio, este grande evento cultural não chegaria ao que é hoje. Várias vezes reconheceram o meu trabalho, assim como o dos amigos que comigo têm governado esta caravela de cultura (…).

Digo de uma forma bem clara que tem sido uma honra ter trabalhado com o Município de Fafe, e que nunca esquecerei os gestos do Sr. Presidente da Câmara e dos Senhores Vereadores da Cultura e Educação, de se terem trajado a rigor, terem subido ao palco e terem calcorreado as ruas de Fafe, dando vivas à nossa história e à nossa cultura, nestas últimas Jornadas. Estas atitudes dizem-me muito e mostram que os nossos políticos também são feitos de sentimentos.

(…) Eu tenho vontade própria, gosto de fazer o que a minha determinação me diz e, aconteça o que acontecer, e enquanto Deus mo permitir, continuarei a trabalhar em prol da cultura e de Fafe, seja de que forma for.

No meio de toda a vida que levo, só tenho pena de não ter mais tempo e as condições necessárias para trabalhar, com a dignidade que lhe é devida, a cultura que se espraia pelas nossas ruas, praças, aldeias e lugares.

 (…)

NF - A fasquia das JL está muito elevada. Receia não ter condições para manter o nível do evento?

 

CA- (…) Eu disse no início desta entrevista que as Jornadas são apenas mais um filho que brotou do meu sémen de sonhador. Como era de esperar, muitos sonos ficaram por terminar, e algumas circunstâncias ainda não estão totalmente limadas, pois há certos rigores de percurso que me querem esconder aquilo que para mim não devia ser problema.

As próximas Jornadas têm quase todas as condições para serem maiores e melhores. O problema é a fasquia a que se chegou e as limitações que me perseguem. Quem estiver ao leme das 4.ªs Jornadas Literárias de Fafe tem de ter tempo para sonhar, criar, orientar, promover, escolher, limar, descansar, dormir, praticar desporto, ganhar o pão de cada dia, ouvir, sorrir, olhar, escolher, calcorrear caminhos, incentivar, representar, cheirar o jasmim. Será isto possível?

Por muito amor que se tenha a uma causa, às vezes temos de esfarrapar o que mais queremos, olhar o céu, encolher as mãos e chorar. Mas Deus é grande e o vento pode soprar de maré. Todos sabemos que ninguém é insubstituível, por isso os rostos podem mudar, desde que o motivo que semeou as Jornadas Literárias permaneça o mesmo. O importante é querer e trabalhar em equipa.

 

NF - Acredita que as JL de 2013 possam surpreender ainda mais?

CA - O absoluto está para além das estrelas e tudo pode acontecer. Se todas as condições forem criadas, as Jornadas Literárias de Fafe poderão tornar-se numa referência mais global, mesmo que a nossa imprensa nacional não dê por isso. O Brasil pode voltar a ser um grande porto cultural a redescobrir, assim como o voltar a beber nas nascentes que continuam frescas e puras bem no centro do nosso Minho. As recriações históricas podem-nos levar a eras diversas, pois as terras de Montelongo assentam em estruturas com muita dimensão e origens.

Fafe dos Brasileiros tem todas condições para ir muito longe. A rota dos brasileiros por todo o concelho pode ser uma realidade e a sua orientação de caminho de memórias será apenas mais uma folha desta frutífera árvore visionária. Para além do que acabei de dizer, (…) a  ligação à Associação Empresarial de Fafe é um ponto a relevar. Se as vertentes económica e turística encarnarem as Jornadas Literárias, Fafe terá muito a ganhar. Não é isso que acontece em Óbidos Medieval ou em Santa Maria da Feira?

Outro trilho a desenvolver está na gastronomia fafense. Por que não uma confraria da Vitela assada à moda de Fafe?

O juntar datas de renome para Fafe, pinceladas de ar fresco e de literatura é outra maneira útil de construir o futuro. É imprescindível redefinir eventos e mostrar resultados aos fafenses. O dia 18 de março de 2012 foi apenas uma pequena parte do que se pode construir nas terras de Fafe.

Na nossa cidade temos uma Escola de Bailado, vários grupos de teatro e uma Escola de Música. Era importante que se dessem a estas duas instituições condições para que elas fizessem grandes produções no âmbito das Jornadas. É possível fazer tanta coisa… O importante é fazer tudo com carinho, verdade, mais ordenado e prescindir de vaidades de gabinete e de fachada.

 

NF - Há outros projetos pessoais que gostaria de concretizar?

 

CA - Gostaria de continuar a escrever livros para crianças, poesia e um ou outro romance. Gostaria de um dia produzir um musical que tivesse Fafe no seu centro. Gostaria que o amor pela minha família fosse eterno. Gostaria que o meu trabalho ajudasse os jovens a olhar mais além. Gostaria de ajudar as nossas aldeias a incrementarem o turismo cultural. Gostaria que o percurso pedestre literário «Caminhos de Camilo» fosse o que eu quero que ele seja. Gostaria de ter as condições necessárias para promover as tradições das terras que moram no meu peito. Gostaria que os meus sonhos nunca me largassem. Gostaria de… Gostaria de continuar a ser quase feliz. Obrigado

 

 
Entrevista ao jornal Notícias de Fafe de 5 de abril de 2012

Coisas que a gente sente: «Amendoeiras no frio»




           

Depois de receber um telefonema que me ajudara a confirmar que ventos estranhos, vindos de outros propósitos, tinham, no seu intento, um certo querer em quebrar um sonho real, nascido todo ele nas cercanias de Fafe, e que me é muito querido, senti um amargo de alma e uma vontade imensa de dizer basta. Mas, as minhas boas maneiras e a forma correta como gosto de lidar com as pessoas que acreditam nas minhas palavras, limitei-me, apenas, a desabafar com o cinzento do fim de tarde. Mais tarde, e só depois de me aperceber que, no dia seguinte, podia percorrer caminhos que aceitam de bom agrado os meus intentos, decidi seguir os passos de Miguel Torga e procurar, no colo das fragas que me viram nascer, o afago e as forças de que muito precisava. Eu carecia de revisitar o reino encantado de Trás-os-Montes.

A manhã acordara fria e apática, pormenor que não ajudava a minha forma de estar. Assim, apressei o início da viagem e corri, sem transgredir regras, na direção do meu destino. Eu sei que as paisagens de Fafe são únicas, belas e minhas amantes, mas, às vezes, só o leite materno é que nos acalma o peito e alimenta a inquietação.

Os quilómetros iam passando, os pinheiros e eucaliptos deram lugar às torgas e carrascos e depois surgiram os olivais e depois os zimbros e depois as estevas e… de repente, nascidas das entranhas da terra as fragas e as amendoeiras, algumas já floridas, começaram a sorrir-me na pouca distância que nos separava. O céu e os que nele moram deram-se conta do meu pensar e arrumaram para um dos lados mais a jeito aquelas nuvens molhadas e fartas, que só se tornam incomodativas nas alturas em que os campos não precisam de mais chuva.

Ao chegar a Parada, um pequena aldeia de Alfândega da Fé, disposta de uma forma acomodada na borda de um outeiro, mergulhei, devagarinho, o carro pelas ruas apertadas, para não ferir o dormitar das casas quase sem gente, ou assustar algum garoto meio distraído. Mal parei o carro bem ao lado da casa que me esperava, espaço modesto e asseado onde moram a minha mãe e madrinha, encontrei o meu amigo e primo Luís, que, e depois de me cumprimentar, me disse que dali a pouco me levaria um garrafão de vinho a casa, para eu almoçar à maneira e levar o resto para Fafe.

Quando a abri a porta, a minha mãe esperava-me feliz, com o coração aberto, mas muito ocupada, pois ainda não tinha metido os grelos na panela. A minha madrinha, uma bela senhora de 88 anos e que ainda há bem pouco tempo estivera muito doente, atirou-me logo o seu meigo olhar, mostrou-me as suas mãos perfeitas e sorriu na sua beleza. No ar distendia-se um aroma bem gravado nas minhas memórias de criança. Meu Deus, cheira-me a arroz doce!

Eu sei que podia gastar todas as frases do mundo para descrever e narrar o que me aconteceu nesta terça de Carnaval, dia 12 de fevereiro. Mas não o vou fazer, pois os meus leitores não têm tempo para me aturar e, mais a mais, também não convém sermos demasiados linguarudos, como costumava dizer a minha falecida avó Alcina. Apenas quero acrescentar que comi pé de porco guisado, que a minha mãe faz como ninguém, fartei-me de arroz doce, feito pela minha madrinha, bebi dois copos de vinho, encantei-me com o pormenor alegre dos caretos, naquele carnaval que também era meu, parti um punhado de amêndoas e comi-as, relembrei momentos, colhi memórias, fui à horta dos «Espoios» e da «Portela» aos nabos, grelos e couves, mirei o Santo Antão de longe, coloquei parte da conversa em dia com as minha primas Betinha, Goreti e Lizinha, visitei o meu irmão Albino e a minha cunhada Elvira, brinquei com o Sabor, um cão que é pertença da minha afilhada Margarida, cumprimentei pessoas do meu imaginário e deslumbrei-me com a eternidade do paraíso da minha alada infância!

Pronto para regressar a Fafe, não sei porquê, lembrei-me dos tais ventos contrários de que falei no início desta história e cocei a inquietação. Sem mais, liguei o carro, comentei qualquer coisa com a minha esposa, que também me acompanhara nesta demanda e seguimos. Ainda antes de entrar na IC5, uma via rápida recentemente inaugurada, e que nos leva e traz mais depressa, reparei num arranjo belíssimo de amendoeiras floridas, dispostas todas a jeito que me piscavam incessantemente os seus muitos olhos de um branco rosado. Parei o carro bem junto ao seu peito floreado, encostei-me com todas as minhas forças nos seus braços perfumados e doces e ali me deixei ficar algum tempo, o tempo suficiente para complementar a minha postura, determinação e alento, para enfrentar os tais ventos meios contrários que parecem ter, no seu intento, a vontade de quebrar o tal sonho real que tanto prezo e em que acredito. Vamos lá ver como as coisas correm. Em meu redor, o frio voltara em força.

Valha-me Deus! Esqueci-me de trazer o garrafão do vinho!


                                                                                  Carlos Afonso

domingo, 10 de fevereiro de 2013

A verdadeira história de UMA ROSA PARA TI…



            Há algum tempo atrás, numa noite em que participava num atividade cultural na Biblioteca Municipal de Fafe, um homem com alguma idade, meu conhecido e que muito estimo, numa postura digna e comovida, abeirou-se de mim e colocou-me nas mãos uma simples carta de amor, uma carta que fazia parte de uma sua antiga vivência sentimental, ainda em memória e coração. Depois de algumas palavras trocadas, foi-me acrescentando, numa voz que me soou a saudade, que essa carta era um tesouro e que fazia parte do espólio de uma linda história de amor. Igualmente me foi adiantando que poderia ser utilizada como princípio e motivação para uma outra narrativa que eu, se assim o entendesse, quisesse ou pudesse escrever. Agradecido por tamanha confiança e prova de amizade, olhei com carinho o homem, que se mantinha frente a mim, hirto na sua dignidade e sentimento, à espera do que eu dissesse. É evidente que eu sorri e… mais nada. No ar, e porque a ocasião o proporcionou ou alguém o forçou, senti um cheiro suave a rosas.

            Depois daquele encontro na Biblioteca, e já em casa, fui à carteira onde havia guardado a carta, tirei-a com alguma pressa e li-a de uma forma bem atenta, ao mesmo tempo que ia sentindo alguns apertos na alma. De seguida, e já envolto numa postura mais racional, lembrei-me que, se calhar, a história ou o romance que viesse a escrever a partir da missiva daquele homem com alguma idade poderia chamar-se “Uma Rosa para Ti…”. Mas quando é que eu arranjaria tempo para tão atraente desafio, se a minha vida de professor, pai, coordenador das Jornadas Literárias de Fafe e de mais afazeres me pegaram o tempo todo? Sem querer pensar mais no assunto, uma vez que me sentia bastante cansado, fui dormir, pois já era bastante tarde. Nessa noite, nenhum sonho me acordou!

Passados alguns dias, e numa reunião do Núcleo de Artes e Letras de Fafe, organismo cultural a que pertenço, e numa altura em que estávamos a programar as iniciativas a realizar ao longo do ano, veio-me à cabeça de propor um evento cultural para comemorar o dia dos namorados, cujo nome poderia ser “Uma Rosa para Ti…”.

Como era de prever, e uma vez que a meu lado estavam pessoas com uma grande sensibilidade cultural e sentimental, a ideia foi aprovada por unanimidade. E o que era inicialmente um sonho vago e indefinido começou ali mesmo a roçar os alicerces do real e do desvendar a espuma.

E porque os dias passam, mas os projetos em que acreditamos permanecem presos ao nosso querer, rodeei-me das pessoas certas que encontrei na Escola Secundária e de Bailado de Fafe e na Academia José Atalaya, dormi menos algumas horas, procurei as palavras de que precisava, escrevi o guião, associei-lhe os acrescentos necessários e, tal como afirma Fernando Pessoa, a obra nasceu:

 “E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.”

 

Eu sei que as coisas perfeitas não existem, e jamais eu as conseguiria encontrar ou construir com demasiadas perfeições, tendo em conta as minhas incompletudes, mas o que sei é que o sonho acrescido do querer, esperança e muito trabalho, às vezes, quase faz milagres.
Assim, no dia 9 de Fevereiro, pelas 21h30, véspera do dia dos namorados, a cortina do palco do Teatro-Cinema abriu-se de par em par e o amor encheu de afetos e brilho todos os presentes. As palavras, a música, a dança, o engenho, a vontade, os corações e muitas rosas soltaram-se, condignamente entrelaçados, e tudo aconteceu…

E porque quero terminar, apenas acrescento que “Uma Rosa para Ti…” apenas teve o seu primeiro momento. Na verdade, e quando o tempo me emprestar mais algumas horas, terei muito gosto em ir mais longe, bem àquele sítio onde os lírios florescem ao sabor das muitas cores com que o amor se tinge. E, no mesmo sítio, concretamente na Biblioteca Municipal de Fafe, e se calhar à mesma hora, devolverei a carta àquele homem com alguma idade, entregando-lhe também para as mãos um romance ou, se calhar, uma outra história, com o título já há muito tempo definido: UMA ROSA PARA TI...

 

                                                                                               Carlos Afonso

           

 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

UMA CAMÉLIA NA NOITE, uma história inventada.



 

      Aquela voz não me pareceu estranha quando, meia escondida por uma noite de inverno sem chuva mas com muito frio, me foi arremessada em tom de desafio e com um certo desejo à mistura. No meu relógio já passava das onze e o ensaio do coro das terças feira havia acabado há pouco tempo.

Atento a quem se me dirigia, notei logo que aquela figura de mulher não estava ali em vão. Ela procurava um encontro, ela precisava de fazer o que a ânsia lhe pedia, ela queria ir mais além… ou talvez não.

 Quando me aproximei, vi que a conhecia. Era a Alice. Vou chamar-lhe assim, porque o seu nome é outro, e mais a mais não acho que seja importante dizer toda a verdade. Também é necessário acrescentar a fantasia e um certo grau de imaginação a esta história, para que ganhe uma tonalidade diferente. Não é que ela se importasse que o seu verdadeiro nome viesse a público, eu é que quero que assim seja.

Alice é ainda jovem e gosta de flores, não admira, por isso, que numa das mãos segurasse uma simples camélia rosada. Nos seus olhos não lhe vi cor alguma. Talvez o escuro da ocasião não ajudasse para o caso, mas eu sei que eles são castanhos. Quanto ao perfume que dela se soltava, ele era intenso e eu já o tinha sentido em outras horas.

- E agora? – Pensei para comigo – Já sei, vou convidá-la para tomar qualquer coisa. Mas tem de ser rápido, pois tenho de ir para casa.

Na pastelaria, que ficava em frente ao nosso encontro, via-se um ou outro grupo de jovens. Entrámos e foi na primeira mesa à nossa direita que nos sentamos. E porque lá dentro estava bem mais agradável, os meus óculos ficaram embaciados. Do canto, perto de uma das portas envidraçadas que durante o dia ajudam a iluminar aquele espaço sentava-se um senhor de idade, que, de imediato, nos olhou de alto a baixo. Eu não o conhecia, mas, de certeza que ele conhecia Alice.

O chá de camomila não demorou a chegar e o sorriso da minha companheira ofereceu-se-me logo de seguida.

- Está quente! – disse eu.

Ela inquietou-se e fez um gesto que me satisfez. Na mesma mão, desde o primeiro instante em que a vira, já não continuava a camélia rosada, agora, um pouco mais vistosa, estendia-se na mesa, acomodada no seu espaço. Por instantes, reparei na cor da pele de Alice e remexi-me na cadeira. Do canto, perto de uma das portas envidraçadas, o senhor de idade continuava a olhar-nos. Alice ainda não dera pela sua presença, mas eu já começava a ficar apoquentado. O que quereria ele?

Durante uma hora, se o relógio não se enganou, pois eu não dei conta do tempo passar, muitas palavras trocámos. Um ou outro sentir cobriu o nosso entendimento e até um relembrar de uma outra história, vivida numa primavera passada, me fez corar o rosto. A dada altura, e porque reparei que os clientes já haviam saído da pastelaria, achámos que era altura de sair também. De uma forma simpática, levantei-me, peguei na camélia, e, sem qualquer outra intenção, estendi a mão a Alice, que, de imediato, aceitou a gentileza.

Saímos e, quando nos preparávamos para a despedida, Alice disse que já era bastante tarde e que não tinha trazido o carro, e que o seu apartamento ainda era longe. Algo embaraçado, devolvi-lhe a camélia e prontifiquei-me a levá-la a casa. Sem querer, um desejo de homem começou a aligeirar-me o andar, mas uma outra realidade pôs fim ao que eu já julgava certo. Era o senhor de idade.

- Alice, - como disse no início da história, ela não se chamava assim - Pergunta ao senhor se os bilhetes para o espetáculo “Uma Rosa para ti”, do dia 9 de Fevereiro, no Teatro/Cinema, já estão disponíveis?

- Pai, que fazes aqui, a estas horas?

 

Carlos Afonso