quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O HOMEM DE LOVECH


 

 

Por muitos que sejam os retratos ou os espaços ou as circunstâncias que possam apresentar os ingredientes necessários para serem gravados com sucesso no álbum do nosso entendimento, às vezes achamos mais interessante pegar em pormenores com um brilho diferente para construir o quadro acertado que projetamos eternizar. Se assim não fosse, as pedras mais insignificantes que se estendem nos leitos dos rios nunca teriam serventia perante o tamanho dos caudais que por elas passam. E porque o que acabei de dizer tem as linhas todas para tecer o texto que quero escrever, amigo leitor, agasalhe-se, pois estamos bem no meio do inverno, pegue nas minhas palavras e siga na direção de Locevh, uma curiosa cidade da Bulgária.

Lovech é uma cidade do centro-norte da Bulgária, situada nas duas margens do rio Osam, na zona da Cordilheira dos Balcãs. Este rio de alguma dimensão é atravessado no centro da cidade por várias pontes, sendo uma delas muito famosa. Trata-se de uma ponte pedonal totalmente coberta, constantemente espionada por todo um casario bem ao estilo barroco. No seu interior, inúmeras lojas de souvenires mostram outras paisagens e realidades para turista mirar e comprar, se assim o desejar.

O que me quereria dizer aquela rapariga de olhar triste e de lenço escuro pelos ombros, quando, à minha passagem pela ponte, bem em frente à sua banca de quadros e livros, me estendeu uns falares que em nada se pareciam com uma qualquer coisa instintiva? Numa outra altura voltarei a falar desta rapariga.

Situada a cerca de cento e cinquenta quilómetros da capital Sofia, Lovech é uma cidade com muitos registos de antigas lutas contra o império turco, assim como detentora de inúmeros parques que, na primavera, se enchem de tonalidades verdes, enquanto fartos arranjos de lilases enfeitam o parque Stratesh, o local mais alto da cidade, onde existe um grande número de plantas da flor lilás, que são facilmente vislumbradas de toda a cidade e proporcionam um espetáculo magnífico. Por esta razão, Lovech é conhecida pela cidade dos lilases. No entanto, e porque fui isso que eu vi, nos dias em que por aqui andei, no mês de janeiro de 2013, o seu encanto distendia-se da cor de gelo que a tingia logo de manhã para, durante o dia, se acomodar aos vários semblantes que o sol lhe emprestava.

Provavelmente, o amigo leitor já se questionou acerca da minha presença neste lugar tão afastado. Na verdade, eu faço parte de um grupo de pessoas de Fafe que se encontra ligado ao projeto “Comenius Regio Partnerships”, e que tem como objetivo estreitar relações entre Portugal e a Bulgária no âmbito da educação pré-escolar e na formação, guiadas pela máxima “ Educar pela arte”. Como a Associação AtriuMemoria, a que pertenço, está ligada a este projeto, juntamente com outras instituições de Fafe, tive o privilégio de partilhar esta interessante e frutífera viagem, rodeada de múltiplas experiências, com as doutoras Helena Alves, Margarida Carvalho e Natália Correia da Escola Secundária de Fafe, os senhores José Manuel e Simão Teixeira do Jardim de Infância de Antime e os doutores José Ribeiro e Daniel Bastos da Câmara Municipal de Fafe. E foi num dos momentos previamente definidos, e enquanto palmilhava os recantos culturais de Lovech, que conheci um homem deveras interessante, um homem que tinha a seu cargo zelar por um espaço de memórias e tradições, um espaço que guardava na perfeição os pedaços de um outro tempo ali bem presente. A rua que levava a este museu etnográfico era de um traço bem medieval, onde as casas que a desenhavam se acolhiam debaixo de telhados de lousas acinzentados.

 A noite já se tinha precipitado na cidade, quando, num primeiro instante, e depois de subir uma escadaria empedrada, uma voz vinda do escuro nos deu as boas vindas numa língua que eu entendi, uma vez que os gestos a que a ela estavam associados, saídos de umas mãos do tamanho da vontade do homem que as dizia, ajudavam na perfeição o seu verdadeiro sentido. Já no interior de uma das casas de outra época vestida, e depois de algumas explicações e informações, consegui olhar de frente o homem que nos recebia. O seu nome não o entendi e muito menos o conseguiria pronunciar, mesmo que o quisesse fazer. A sua idade não foi chamada para o caso, mas já era bastante. Os seus olhos eram profundos, claros e sábios. A boina que lhe cobria a cabeça condizia com o tipicismo da roupa que vestia. A magreza do seu corpo dava-lhe o aspeto de um servidor do exército soviético. O cachecol verde que se prendia ao pescoço anunciava um futuro adiado, embrulhado num passado em que se acreditou. O bafo que se despendia da boca era incolor e inodoro, mas as palavras que viria a pronunciar, embaladas por uma melodia da mesma cor dos cravos que um dia, em abril, floriram em Portugal surpreenderam quem, como eu, fala a língua de Camões.

Como é surpreendente ouvirmos, sem contar, os verdadeiros significados que moram nos sentimentos dos homens!

A dada altura, e sem que a guia que lhe traduzia as frases contasse, da sua boca saiu um verdadeiro cantar português, que num tempo em que Portugal vivia engaiolado na sua dignidade, o poeta e cantor Zeca Afonso trouxe à luz do dia:

“Grândola, vila morena

 Terra da fraternidade

 O povo é quem mais ordena

 Dentro de ti, ó cidade

 

Dentro de ti, ó cidade

 O povo é quem mais ordena

 Terra da fraternidade

 Grândola, vila morena (…)”

 

As palmas soltaram-se do nosso espanto. Uma outra lágrima assomou desprevenida e com algum receio não sei bem de que olhar. Um sorriso de quem sabia o que estava a fazer despegou-se do rosto do homem de Lovech, e da minha máquina fotográfica saiu, repentino, um reflexo que se apagou logo a seguir.

Este homem, numa outra época e em circunstâncias próprias, que o regime comunista lhe emprestara, conviveu em espírito e sentido com a revolução portuguesa de 1974.

Em continuidade aos versos acabadinhos de cantar num português quase claro, seguiu-se uma tradução cantada pelo mesmo homem, num Búlgaro fluente, em que a melodia empregue serviu de tradutor, para depois nos pedir para passarmos às restantes divisórias da casa devidamente apetrechadas. Num dos fundos que enquadrava um quarto de época, descansava de vez um violino que já fora de um famoso músico da Bulgária.

Só um pequeno acrescento sem qualquer serventia ou interesse para algumas pessoas, as unhas da mão direita do homem de Lovech estavam tapadas com uma espécie de adesivo castanho. Por que seria?

 

Carlos Afonso.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

CONVITE(Deputada do Rio de Janeiro em Fafe)


Convite


         Sendo Fafe uma terra com fortes ligações ao Brasil, vimos, por este meio, convidar V. Ex.cia a participar na palestra: «Portugal e o Brasil, dois países irmãos», proferida pela deputada estadual do Rio de Janeiro, Maria Inês Pandeló Cerqueira, a realizar na próxima quarta-feira, pelas 21h15, na Biblioteca Municipal de Fafe.

Neste momento único em que “Fafe dos brasileiros” também será tema de conversa, nas vertentes histórica, cultural e económica, todos os presentes poderão assistir a instantes de música e poesia dos maiores criadores brasileiros.

                                                                  Obrigado

Nota: Este evento conta com o apoio da Câmara Municipal de Fafe e com a organização do Atelier Atriumemoria.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

OS OLHOS DOCES DE AMÉLIA

 
        
Numa altura em que a nossa existência é constantemente atingida pelas garras de uma crise enfadonha e sem sentido, que quase nos abafa o acreditar, é muito reconfortante quando encontrarmos bem à nossa frente circunstâncias especiais que nos deixam vislumbrar outra vez as certezas da primavera e os sabores amadurecidos do verão.
 Só lamento a circunstância das estações dos homens divergir do ciclo da natureza e não permitir que as camélias brancas possam florir duas vezes.
Naquela tarde de dezembro, o sol ainda aquecia aquele lugar onde uma mulher, vestida de cor de viúva, jazia ausente da minha realidade e, talvez, mais apostada numa viagem que a levava para um tempo fora de tempo. Ela estava sentada na soleira de uma porta cerrada, agora sem serventia, pertença de uma casa pintada de amarelo debutado e sem sinais de habitabilidade, numa rua de Fafe. Em seu redor, o volver insistente do vento incomodava a poeira da tarde e deixava bem claro que ainda era inverno e que não valia a pena haver ilusão com a luminosidade do dia. Não sei bem porquê, mas aquela figura de uma idade avançada intrigou-me e resolvi perguntar-lhe o que achasse por bem.
Com alguma calma, e depois de conseguir desfazer-me de um aceno de circunstância que atirei a um conhecido, ou talvez não, pois a minha visão de vez enquanto engana-me quando foco a distância, aproximei-me de tão quieto estar, pois nem por nada queria estragar o que quer que fosse que agarrava a atenção daquela mulher. Antes de lhe dirigir a palavra, reparei que a sua postura sofreu momentaneamente uma pequena alteração. A sua mão esquerda sacou instintivamente de um bolso de saia muito escura um pequeno lenço esbranquiçado com que limpou uma lágrima que lhe banhara o rosto. Depois, sem mais, voltou à primeira postura. Só um pormenor, por cimo das costas estendia-se, espectral, um xaile com muito tempo. Será que o herdara da alguma sua familiar? Digo isto porque ainda me lembro que a minha avó, que Deus levou para si há mais de trinta anos, tinha um assim, que tinha sido dado pela sua mãe, minha bisavó, portanto.
Já encostado aquele corpo presente, procurei logo meter conversa a ver se conseguia obter algumas respostas com sentido. Porque a primeira tentativa não surtiu efeito, insisti na determinação e fiquei logo a saber que ela se chamava Amélia, que morava com uma filha solteira que trabalhava em Guimarães e que estava ali a apanhar um pouco de quentura, antes que as sombras viessem, e consigo trouxessem o regresso de todos os dias.
Não me lembro bem do tempo que me dispus por ali, talvez uma meia hora, ou nem tanto, mas foi o tempo necessário para me apegar aquela simpática senhora que, e enquanto esteve a conversar comigo, abdicara do seu passeio interior para comigo conversar e olhar constantemente.
Eu disse olhar?
Claro que disse. E porque o disse, quero neste preciso instante dizer-vos que os olhos desse olhar mostraram uma tão meiga postura que me obrigou a pegar-lhe nas mãos e a falar-lhe de mim.
            Como eram doces os olhos de Amélia!
Ela sorriu-me muitas vezes, disse-me, entre outros dizeres, que conhecia bem Aboim e que durante muitos anos foi à Senhora das Neves. Ah! Também me contou que já fora feirante e que tem muita devoção por Nossa Senhora. Depois a voz da filha que viera acompanhada pela sombra da tarde, fez com que o nosso involuntário encontro ficasse por ali naquele dia. Na verdade, a simpatia da velha senhora também habitava a disposição da sua descendente que, e perante a postura satisfeita da mãe e as palavras que ela proferira a meu respeito, não se importou que acompanhasse Amélia, e a amparasse com alguma paciência, até à porta de sua casa, pois as suas pernas, já bem degastadas naquela idade de oitenta e cinco anos, não tinham o mesmo vigor da altura em que apregoava a sua fruta e os seus legumes na feira semanal da vila.
Outras vezes visitei Amélia, e, outras tantas vezes, partilhei, com ela, instantes e palavras. Digo-vos, até, caros leitores, que a sua memória ainda é o que era, que a sua franqueza é do tamanho do mundo, que a sua sala é forrada por um papel arramalhado verde, e que o bolo de laranja, que no nosso último encontro me ofereceu, uma vez que já frequento a intimidade do seu lar, é da mesmíssima doçura dos seus olhos.
Da próxima vez que visitar minha amiga de certeza que lhe oferecerei um ramo de camélias brancas, pois ela disse-me que gostava, assim como eu, da sua singeleza e encanto!
Até amanhã, Amélia.
Do Longe, o toque insistente de uma ambulância feriu-me de morte o peito.
Meu Deus, quem roubou o encanto das camélias brancas!
 
Carlos Afonso