sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O dia em que o rei voltou a Fafe








Fernando Pessoa disse um dia que “O sonho é ver as coisas invisíveis”. De facto, o nosso poeta tinha toda a razão. Até parece que as suas palavras nasceram da fonte mais pura, para depois percorrerem os carreiros de tempo e fartarem de frescura e verde as almas que anseiam.
Naquela noite de Janeiro, um frio peganhoso apegou-se de tal forma à minha demanda pelas ruas de Fafe que foi preciso um sonho bem quente para que o meu descanso natural acordasse na manhã seguinte com uma disposição digna de registo. Na verdade, há instantes que nunca mais se esquecem.
O que eu vou escrevinhar nesta história não é um sonho qualquer. É muito para além disso. Imaginem que estão a olhar as estrelas e, de repente, uma delas desce do seu poiso, mistura-se com a nossa existência e, depois, pega-nos na mão e puxa-nos para o seu mundo. Creio que o mais fácil será eu começar a contar. Só um pormenor relevante para que a exatidão da história de Portugal não fique manchada: a ação do meu sonho não decorreu em 1906 ou 1907, altura em que o nosso rei Dom Carlos passou por Fafe, ela assenta bem no nosso século, no ano de 2012, num belo dia solarengo de um mês de primavera.
Alcina levantou-se eufórica. Cantarolou no banho e não esperou que os seus pais se levantassem. Tomou o almoço da manhã e foi vestir o seu traje. Ela queria ter a certeza de que tudo estava perfeito. Era a primeira vez que participava numa recriação histórica. Pelo que pude subtrair do meu sonho, Alcina morava numa linda terra do Minho, cujo nome se me varreu da memória por algum tempo. Só mais tarde é que constatei que só podia ser Fafe. O motivo desta certeza foi-me oferecido pelo fascínio das fachadas brasileiras que cobriam o casario que desenhava o espaço onde a ação se desenvolveu.
A jovial rapariga pertencia ao grupo de folclore lá da terra e, tal como muitos outros jovens da sua idade, ia ter um papel de destaque na recriação histórica da vinda do rei Dom Carlos à sua cidade. Os seus olhos eram castanhos, daquele castanho da cor da terra. O seu rosto era de um afável tão curado pelo sol que fazia com que os moços lá do sítio o desejassem para lhe pousar um outro beijo. Quanto ao seu cabelo, nada de especial a dizer, a não ser que foi muito bem penteado, para não destoar no contexto.
Devidamente preparada, lá se despediu dos pais, que entretanto se haviam levantado, e saiu. Uma chamada de atenção por parte da mãe por causa de tanta pressa já não foi escutada por Alcina. Lá fora, o sol matinal brilhava e um barulho de outro tempo já se escutava no ar. Aqui e ali eram bem visíveis os tons de festa que estava quase para começar. O toque de um realejo escapou-se de uma sacada e duas pombas esvoaçaram admiradas. Mais ao longe, escutaram-se as campainhas de uns bois. Que emoção cobria a nossa amiga, que tinha de chegar o mais rápido possível a casa da sua prima Luísa, para ambas se mirarem. Dois foguetes estalaram no ar e um ai de coração assustou a moça. Do outro lado da rua, um rapaz meio atrevido atirou-lhe um assobio fora de uso que a fez corar e que quase a atirou contra uma velha bicicleta que alguém deixara encostada a um poste. Pelos vistos, a vinda do rei começava a prometer.
Já recomposta, Alcina seguiu o seu destino e o tal rapaz, fino nos seus propósitos, gravou-lhe os traços do corpo e um pouco do rosto. O barulho da festa ecoou mais forte. Outros dois foguetes estalaram no ar.
Em plena tarde de domingo, as lojas tradicionais continuavam repletas de povo que comprava lembranças e curiosidades preparadas para o evento, pois o momento tinha de ficar devidamente assinalado. Os restaurantes ainda estavam bem compostos de comensais que, depois de uma boa vitela à moda da terra e um bom verde, saboreavam as cavacas e o pão-de-ló. Com todas estas vivências de outras eras que enchiam de fascínio todos os que percorriam as ruas mais centrais da cidade de Alcina, um pregão surgiu de súbito em cima de um cavalo a apregoar que o rei estava a chegar. Um reboliço embrulhou-se com os aromas da tarde e o azul do céu. Os miúdos que se entretinham com os jogos tradicionais colocaram-se em sentido. Nas barraquinhas e nos espaços onde se vendiam produtos regionais ouviram-se vozes apressadas, ao mesmo tempo que uns toques das concertinas se calaram. As duas bandas de música da terra puseram-se no sítio certo. As autoridades locais deram os últimos retoques nas suas posturas e disposições. Tudo estava nos conformes. Mas … e Alcina?
A nossa amiga, que estivera a ensaiar uns pés de dança com o seu grupa corria apressada para ver o acontecido. A pressa era tal que, e por azar, pisou numa bosta de vaca. Convém que se diga que as gentes de todas as aldeias e lugarejos em redor se associaram à festa e também elas trouxeram alguns pilares do seu regionalismo ligados aos trabalhos do campo para participarem num desfile etnográfico programado. Se assim era, a dita vaquinha também veio e esqueceu-se dos bons modos. Mas caros leitores, não se preocupem com este acontecido, pois no momento em que a rapariga se preparava para voltar a dar brilho ao sapatinho, um galante rapaz, o tal que de manhã lhe oferecera um assobiado galanteio, surgiu bem na sua frente com um lenço bordado. Que gesto simpático!...
Uma descarga de foguetes fez estremecer os ares. Sons de música ecoaram em uníssono. Alcina olhou de mansinho para o rapaz, sorriu e aceitou a oferta. Eu, que, sem mais nem menos surgi em cena, deixei escapar duas lágrimas satisfeitas. E…
Não querem os caros leitores saber que, e tal como acontece nos sonhos mais encantados, acordei no preciso momento em que Alcina e o rapaz, de mãos dadas, entravam na praça. O rei já lá estava.
Quanto a mim, fico-me por aqui. Quanto ao resto da história, acho que não é difícil saber o seu desfecho. Talvez a próxima primavera nos acrescente mais algum pormenor.
Carlos Afonso

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