domingo, 22 de maio de 2011

O vendedor de mentiras




Às vezes, a clareza dos dias nem sempre nos mostra toda a verdade, principalmente se os homens esconderem o que lhes mora na alma.
A tarde estava solarenga e uma frize de limão ajudaria, de certeza, a acalmar a sede que me percorria as entranhas. Não admira, por isso, que a minha determinação me tenha conduzido à padaria Silva e aí tenha procurado a necessário refresco. Nas mesas apenas se dispunham meia dúzia de pessoas. Atrás do balcão, uma funcionária da casa, aí pelos seus vinte e poucos anos, mexia e remexia no que lhe convinha. A frize não demorou a chegar e uma leve sensação de prazer varreu a minha postura, facto que levou a que continuasse naquele espaço simpático mais de uma hora.
Reconheço que o meu tempo anda demasiado preenchido para passar tanto tempo sentado numa mesa colocada no seu assento habitual à espera de ser ocupada. Mas, é importante que as rotinas se quebrem e se pare um pouco para reparar no que nos rodeia. E foi o que eu fiz. No exterior da pastelaria três operários trabalhavam no arranjo do pavimento da rua, enquanto um outro jazia na sua ociosidade, sentado numa máquina escavadora, à espera que alguém o solicitasse. Por entre estes azafamados trabalhadores, muito entulho, barras e cimento e demais dependências, duas raparigas, num passo que mostrava alguma pressa, tentavam arranjar carreiro para poderem seguir em frente. Se calhar iam para escola. Será que iriam chegar a tempo à aula? Levemente, o trabalhador que estava em cima da máquina fez um intencional esforço e seguiu o deambular cauteloso das alunas. O que será que lhe passou pela mente?
No interior da pastelaria cavaqueava-se livremente, ao mesmo tempo que um televisor, colado perto do teto ia dando um ar da sua graça. Por um instante, prestei-lhe a minha atenção. A dada altura, e no momento em que estava a passar no ecrã uma resenha informativa, escutei com toda a clareza do mundo uma voz convicta, que se despegou de uma mesa ali ao lado.
- Lá está o vendedor de mentiras. Mentiroso…
Sem olhar para o lugar donde advinha a voz, mas só podia ser de uma mesa encostada à parede, pois as outras pessoas estavam mais perto do balcão, reparei mais afincadamente no que a televisão transmitia. Na imagem apenas se via um nosso governante a jurar a pé junto que a culpa da crise em Portugal não era dele.

Bem! Perante tamanha convicção fiquei sem perceber as palavras que o meu colega de espaço lhe arrojara. Será que ele tinha informações de que eu não dispunha? E mais a mais, em quem é que devemos acreditar. Num determinado governante português, elegante na sua postura, de formação superior, com um olhar aguerrido e demasiado convencido e convincente, ou num comum popular que, se calhar, já estava a apanhar com a crise pela cara, e o único bem de que ainda dispunha era a liberdade de falar?
Como, no momento, não arranjei resposta para tamanha incerteza, (desculpem, mas estou a ser irónico), levantei-me da mesa, paguei o que devia, olhei de soslaio para o lugar onde estava sentado o descontente eleitor e... Coitado! Pareceu-me bastante abatido. De certeza que ele tem todos os motivos para presentear o nosso douto governante com tão lisonjeiro epíteto.
Só para terminar, e para que ninguém fique com dúvidas em relação às causas que mergulharam Portugal nesta crise avassaladora, se é que existe alguma, quero contar-vos um pormenor. No meu quintal, este ano, não há muita fartura. Esqueci-me de semear o alho francês, as ervilhas e as favas. Para além disso a erva daninha tomou conta de tão pacato espaço e é rainha e senhora daquelas paragens. Será que a culpa é dos vizinhos que não tiveram o arrojo para invadir o terreno alheio e colocar tudo nos eixos?
É evidente que a culpa é toda minha, que não estive à altura da minha obrigação.
Se calhar o meu quintal está a precisar de outro hortelão. E já que estou com as mãos na massa, penso que o meu país também.
Carlos Afonso

sábado, 7 de maio de 2011

Rosa

Ela chamava-se Rosa.
Era aluna do 11º Ano e gostava de estudar. A mãe dizia, muitas vezes, não sei se por vaidade ou por vontade de meter conversa com a vizinha Ana, que a sua filha estava no quadro de excelência da escola onde estudava, o que criava, na avantajada senhora, um fio de inveja.
Antes de se deitar, Rosa gostava sempre de ler algumas páginas de um livro. Não importava o autor, tinha apenas de falar de amor. Este, que agora andava a ler, tinha como título «Uma História de Amor», o que, só por si, lhe agradava. Comprara-o na Póvoa de Varzim e falava de dois jovens namorados que viveram uma linda história de amor, durante umas férias de Verão.
Rosa tinha os cabelos da cor da terra e um sorriso imenso que permanecia agarrado ao seu rosto, o que fazia com que fosse uma rapariga alegre e muito querida por todos. Por vezes, o pai, um homem dos seus quarenta anos, pegava nas mãos níveas da filha e pousava-lhe um simples beijo no rosto, segredando-lhe algumas palavras silenciosas que faziam brilhar, ainda mais, os seus olhos lindos!
Na escola, ela sentia-se feliz, principalmente quando tinha História. Diziam, até, algumas colegas, talvez com alguma malícia, que a sua amiga sentia uma especial simpatia pelo professor Alberto, o que a fazia sorrir.
O professor Alberto já estava naquela escola do interior, rodeada de oliveiras, olmos e fragas cobertas de um musgo amarelado, há mais de cinco anos. Conhecia, como ninguém, a arte de ensinar e a melhor forma de lidar com os seus alunos. Não tinha mais de trinta anos, e, para além de ensinar a exactidão da História, gostava de ler um bom romance e de aconselhar aos alunos, dizendo-lhes que ler um livro era entrar na alma de um criador.
Não morava na vila, sentia-se mais livre na sua casa térrea, batida pelo vento de leste e acariciada pela imensidão do sol, numa pequena aldeia, tendo por companhia as andorinhas, que residiam sob os beirais. Geralmente, ia a pé para a escola, a não ser que o tempo o não permitisse. Gostava de caminhar por vinhedos, silvados e olivais, atravessando caminhos de terra batida e já gastos pelo passar do tempo, mas conhecedores de muitos segredos, que costumavam partilhar com os lírios, na Primavera.
Nesse dia, o professor perdeu as horas e chegou atrasado à aula. Os alunos esperaram, o que lhe agradou. Cumprimentou-os, amigavelmente, e, para espanto seu, reparou que trouxera a pasta vazia. E agora? Não convinha que os alunos se apercebessem do sucedido, pois, e sempre que algum deles se esquecesse do material escolar, costumava censurá-los, ternamente.
Na verdade, a experiência é uma óptima amiga. Escreveu o sumário, olhou os alunos e, numa curiosa abordagem, disse-lhes que aquela aula ia ser diferente. Um leve murmúrio espalhou-se pela sala. Mas, a cumplicidade e uma satisfação partilhada, devolveram ao professor a sua calma habitual.
- O que vamos fazer? - Perguntou a Lígia, num tom algo provocador e espampanante, como costumava fazer, quando queria dar nas vistas. – Vamos dar um passeio?
- Melhor, vamos falar de livros especiais, romances, novelas, contos, poetas, escritores e sonhar…
Após uma breve resistência, todos concordaram e, um a um, foram discorrendo ao sabor das suas leituras. Elas variavam conforme os seus gostos, umas mais intensas, outras mais reflexivas, outras cingiam-se apenas a uns meros jornais especializados em desporto, ou a revistas, interessadas apenas pelo alheio. Quando chegou a vez do Rodrigo, a sala de aula assumiu uma tonalidade mais brejeira, uma vez que o seu inconveniente humor se espalhou pelo ar, levando mesmo o professor a soltar um auspicioso reparo:
- Não é a hora de brincar com a alma de um livro. Fica sabendo que um livro, seja ele qualquer for, reproduz desabafos, sonhos, vivências, reflexões, ou meras opiniões. Humilhá-lo é desrespeitar quem o escreveu, é ofender o seu autor – e franzindo o olhar, sentou-se.
O aluno anuiu as suas extravagâncias e, após pedir desculpa, remeteu-se a um envergonhado silêncio. Convenhamos que comparar um livro a um aglomerado de folhas inúteis, que só se limitam a reproduzir meras incongruências sentimentais, para afogar os outros com discorridas tagarelices, era demais. Claro que este desfraldado comentário iria importunar o carinho que o professor nutre pelos livros. Mas a desajustada situação foi ultrapassada, no momento em que Rosa começou a falar. As palavras soltavam-se daqueles lábios cor de cereja, e todos a escutavam. A forma como falava do seu livro, que comprara na Póvoa de Varzim, e o tom carinhoso que incutia nos seus comentários, despertou a atenção do professor que, e para seu espanto, bebia todas as palavras da aluna, deliciando-se com os seus argumentos sentidos.
Quando Roaa acabou, Alberto perguntou-lhe:
- Nota-se que gostas muito desse livro. Podias emprestar-mo?
- Claro, Sr. professor. Acho que vai adorar. Fala de amor!
- Só por isso? – Perguntou Alberto.
- Haverá argumento mais belo, Sr. Professor?
- Não, Helena, o amor é linda. É ele que nos faz correr pelas estrelas.
- E abraçar o céu - respondeu Rita, num tom carinhoso e enlevado.
O professor sentiu estremecer-lhe a alma, e um fio de sangue tocou o seu rosto assustado. Olhou para ela como quem beija uma fantasia e Rita fitou-o com um olhar seguro e, ao mesmo tempo, carente.
Fez-se silêncio na sala, apenas se ouvia o respirar rouco do vento na vidraça que foi, de repente, quebrado pelo barulho estridente e apressado da campainha.
Todos se levantaram, apenas Rosa se manteve sentada. O Professor deu licença para sair, mas ela permanecia agarrada à sua determinação, o que o levou a dizer-lhe, timidamente;
- Já tocou, podes sair.
- Eu sei, apenas lhe quero emprestar o meu livro.
- Obrigado. Até amanhã - respondeu o professor, contrariando um pedido silencioso do seu coração que lhe pedia para que ela ficasse.
Ela levantou-se, deu-lhe o livro e caminhou para a porta. Num movimento instintivo, mas consentido, virou-se para Alberto e balbuciou:
- Eu gostava de caminhar consigo pelas estrelas - e, sem mais, saiu.
Rosa bateu a porta de levezinho e Alberto sentou-se. Lá fora, o sol frio de Novembro ficou indiferente aos anseios do professor, apenas o vento pareceu reagir.
No regresso a casa, não seguiu o trajecto habitual, embrenhou-se no meio dos campos e deixou-se levar pela leveza da brisa. Passou por pombais, desceu outeiros e refugiou-se debaixo de uma oliveira eterna. Colheu uma mão cheia de azeitonas, que, meigamente, se deixaram acariciar. Escutou os gracejos ingénuos de um regato que incomodava umas fragas pachorrentas e continuou a pensar nas ternas palavras de Rosa, que, confusamente, fervilhavam dentro de si «Eu gostava de caminhar consigo pelas estrelas…»
Acordado pelo voo de um bando de tordos, reparou que a noite descera e que uma névoa fina se espreguiçava no horizonte. Num esforço, arrumou os pensamentos e, num passo apressado e decidido, regressou a casa.
Nessa noite, ao embarcar rumo às estrelas, o professor Alberto sonhou com Rosa…
Carlos Afonso

domingo, 1 de maio de 2011

Essa nova Índia por achar.

Nasci num país repleto de sonhos de mar,
Gerados em almas da cor das manhãs
E presos à imensidade exacta dos séculos…

Ai… se as aves me emprestassem o seu esvoaçar sem fim
E a cor verde da esperança me cobrisse com o seu manto,
Tecido por mãos que fizeram os muros inquebráveis da história!

Escutem! ... Parece que ouvi gritos ávidos de risos e estrelas…
Será a voz do vento a bater nas velas claras das caravelas?

Não. Os caminhos percorridos por espíritos destruidores de medos
E de névoas sem rosto
Não rompem os portais do tempo…
Só a teimosia dos quereres, iguais aos de Vieira, Pessoa e Camões,
Podem acordar os fazedores da história
E apunhalarem a mesquinhez deste agora sem luz,
Estampado nos nossos olhos parados,
Avivando, de novo, a chama que jaz fria dentro dos corações.

Basta. A noite não pode continuar a crestar o brilho das madrugadas,
Indiferente a um passado repleto de heróis…

Ó Infante sem medo, ó Gama imortal, ó Pedro Álvares Cabral,
Não deixeis roubar as raízes pátrias que engrandecestes.
Firmes como a vontade que vos ata ao leme,
Erguei de novo a espada do império
E abatei, de novo, as máscaras do Adamastor


Carlos Afonso