segunda-feira, 25 de abril de 2011

Encontros incomuns


O que seria do homem se os caminhos apenas o conduzissem ao descolorido do óbvio ou ao enfadonho do predeterminado? Provavelmente, os dias perderiam a frescura da novidade e os sonhos negar-se-iam a surpreender.
A Páscoa estava para breve e os alunos já não precisavam de se levantar tão cedo. Na verdade, as férias escolares haviam chegado, e com elas todo aquele encanto que as define: dormir até mais tarde; algumas passeatas pelas ruas e praças; no café, as conversas prolongam-se até mais tarde; visionam-se filmes; descobrem-se novos jogos; incrementam-se alguns namoros; e por aí fora…
No que a mim diz respeito, e creio que acontece com todos os trabalhadores, também aprecio uma pausa no trabalho. Serve para retemperar as forças e para fazer certas coisas, que no comum dos dias dificilmente se efectuariam: por exemplo, passear à tarde pelas ruas da cidade na companhia da minha esposa.
Sabe bem lançar os pés ao caminho e deixarmo-nos levar pela despreocupação dos instantes, olhando para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, sempre na ânsia de colher algo de novo, ou então, encontrar um amigo que nos afague a memória e nos empreste um sorriso.
A tarde estava solarenga e quase sem dar por isso, a nossa caminhada já roçava a escadaria do Jardim do Calvário, que, lá em cima, mantinha aquela soberba postura que todos admiramos. Ainda bem que as cidades não se esquecem de preservar certos lugares emblemáticos, enfeitados de flores, lagos calmos, árvores centenárias e mil memórias. Claro que não levámos muito a ponderar. Arregáçamos as vontades e, com uma naturalidade a condizer, que causou alguma admiração em três colegas nossos que cavaqueavam numa esplanada ali em frente, fomos revisitar este velho coração de Fafe. Que sensação maravilhosa quando transpusemos os portões e reparámos no empenho de boas vindas que nos era lançado. Há um bom para de anos que não mergulhava neste protectorado na companhia da minha esposa.
Como é bom regressarmos aos sítios que nos querem bem!
Em nosso redor, os canteiros mostravam a custo as suas flores, no lago, um cisne pavoneava-se para os que reparavam nele, as árvores estavam esplendorosas, a passarada chilreava sem fim e um misto de pessoas povoava as clareiras. Nos bancos, alguns pares de namorados trocavam uns mimos não muito ousados, uma mãe tentava adormecer o seu filhinho, alguns senhores de idade relembravam o passado, dois rapazes dos seus trinta anos estavam para ali a fazer não sei o quê e duas mulheres de meia-idade jaziam quietas encostadas a um saco de compras, talvez à espera duma oportunidade de verem algo que as enchesse de pasmo, e que pudesse ser contado às amigas do bairro.
E porque a circunstância o exigia, de mãos dadas e um pouco comprometidos, a minha esposa e eu percorremos em silêncio e de uma forma pausada o carreiro de saibro que circundava o jardim. Talvez estivéssemos à espera de um segredo qualquer ou até, quem sabe de um motivo para um singelo beijo. Claro que a nossa atenção se colocou em riste, quando passamos junto do parque infantil. Ali se demorou a olhar para as crianças que, numa organização ingénua, se engalfinhavam no escorrega e nos baloiços.
Como o tempo passa! O nosso filho mais velho já tem mais de vinte anos, e era ali que o trazíamos quando era pequenino. Uma lágrima inquieta colou-se-me ao rosto e uma brisa minha conhecida disse-me para continuar.
A dada altura, e por sugestão minha, sentámo-nos no único banco de madeira disponível, e deixámo-nos por ali ficar. Do longe, sentimos chegar o som abafado do sino da Igreja nova que bateu pachorrentamente as dezassete horas. Do perto, vimos claramente o riso de uma criança de pouca mais de dois anos que corria atabalhoadamente à frente da mãe, que num esforço extra empurrava um triciclo de plástico. Nessa altura, lembrei-me do meu pai e do triciclo que ele me trouxe da feira de Alfândega da Fé. Como eu pedalava rua a baixo, sem um qualquer medo que me tirasse o jeito de criança!
Regressado ao tempo presente, deixámo-nos ficar por ali algum tempo. Conversámos sobre várias coisas, algumas banais, outras nem por isso. Comentámos certas posturas que se dispunham a nossos olhos e achámos curioso o facto de um velhote em boas condições físicas optar pelo elevador para sair do jardim, em vez de escolher o percurso normal, ocorrência pouco usual em muitos jardins de países desenvolvidos. Também não deixámos passar em claro um quadro deveras interessante que se desenhou de uma forma esplendorosa à nossa frente. Num ramo de uma árvore, estavam duas rolas pousadas numa atitude de confidência. O que diriam elas? Só Deus sabe porque as criou.
A dada altura, e num momento em que o silêncio havia tomado a minha atitude, aconteceu algo tão estranho, e ao mesmo tempo tanto especial, que nem a minha esposa deu por isso. Pelos vistos só eu é que estava destinado a ouvir as palavras que uma mulher dos seus setenta anos me atirou contra a minha estupefacção. E por quê? Deus sabe porque me criou.
- Desculpe, posso sentar-me? – Arremessou-me uma mulher vestida de escuro e com um lenço na cabeça. - Sabe, Senhor, estou um pouco cansada e os bancos estão todos ocupados.
- Por quem é, faça o favor de se sentar – respondi-lhe num tom atencioso.
Por algum tempo, a dita mulher dos seus setenta anos, pareceu fechar os olhos e dormir, mas a dada altura, virou-se para mim, e num tom tingido de ânsia e preocupação, disse-me.
- Tem filhos?
- Tenho três.
- Eu também tenho três filhos e…
Durante algum tempo fomos conversando dos filhos e não deixei de reparar em muitas coincidências nas nossas vidas, principalmente quando me mostrou o seu desespero pelo que podia estar acontecer com dois deles. Os olhos da senhora começaram a parecer-me familiares e um leve perfume a rosmaninho, misturado com outras flores do campo parecia enredar as suas palavras.
- Sabe, o meu filho mais velho, aqui há uns anos, teve um problema grave de saúde. Graças a Deus melhorou, e durante algum tempo tudo parecia correr pelo melhor. Só que agora parece que se esqueceu da sorte que teve e segue os seus dias como se nada tivesse acontecido. Assim que tal, volta-lhe a dar qualquer coisa e vai ser uma desgraça – insistia a mulher, como que querendo que eu entendesse as suas palavras.
Não sei porquê, mas o que eu estava a ouvir não me era estranho, e, muito menos, longe do percurso dos meus dias. E dado que ainda tinha mais para contar, a sua voz fez-se novamente ouvir.
- Sabe, Senhor, também tenho uma filha formada, mas as coisas nem sempre lhe correm de feição. Até parece que as forças do mal a perseguem. Muitas são as vezes em que me telefona…
A partir daqui, fui escutando muitas realidades que eu conhecia, até que a mulher achou por bem ir-se embora, como que tivesse cumprido uma tarefa de que foi incumbida. Na despedida, e por incrível que pareça, afagou-me o rosto com as suas mãos algo cansadas e disse-me que em breve a encontraria em sua casa. Ainda quis saber alguns pormenores adicionais e perceber as razões de tanta franqueza, mas as palavras insistentes da minha esposa impediram-me de o saber e trouxeram-me de volta àquela tarde solarenga e especial de Abril.
- Ó homem, tu adormeceste? Vamos embora que já é tarde.
Regressados a casa, e sem contar este meu sonho ocasional, lá fui preenchendo os minutos desse dia com outros afazeres, mas sem nunca esquecer o que me tinha acontecido. Será que é o que estou a pensar? As coincidências, às vezes, assustam-me.
Nessa noite, deitei-me mais tarde, mas mesmo assim, fui atirado para um tempo longínquo e um espaço não muito afastado do meu alcance. Sonhei que eu era uma daquelas centenas de pessoas que, com uma palmeira na mão, saudavam a Jesus Cristo, quando entrava triunfante na cidade de Jerusalém. E o mais curioso é que no preciso momento em que o redentor passava bem na minha frente, reparei que me focalizou e vi que o brilho dos seus olhos era o mesmo da mulher de setenta anos com quem havia conversado, já para não falar do perfume a rosmaninho e a flores do campo que, também, ali me circundaram. Depois disso, só me recordo da forma triste com que o filho de Deus se despegou do meu reparo, para, conformado, seguir o seu destino.
Nem sempre consigo entender o significado dos sonhos, mas pelo que pude verificar nestes meus encontros incomuns, creio que os percebi perfeitamente.
O que seria da ligeireza das abelhas se não soubessem medir a fúria das tempestades.

Carlos Afonso (Carlosehistorias.blogspot.com)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Aconteceu em Madrid

Por muito distantes que os países sejam ou por muito diferentes que as gentes se mostrem, há sempre um olhar ou um gesto que nos mostram a universalidade de Deus.
Depois de uma visita rápida ao museu do Prado de Madrid, tanto eu como os meus colegas e os alunos que nos acompanhavam, uma vez que os demais preferiram outros espaços, tivemos de virar as costas àquela imensidade de arte e inspiração, pois a viagem de regresso a Fafe estava para breve e ainda havia alguns pormenores a esclarecer.
Dentro do museu, ficou a promessa de voltar. No exterior, o sol quase abrasador e o chilrear de algumas aves, as poucas que se faziam ouvir, ajudavam a recompor do abandono necessário de um ambiente artístico tão especial.
Em plena avenida, os automóveis corriam consoante os mandos dos sinais luminosos, enquanto os nossos passos pareciam querer voar, tal era a pressa.
A dada altura, na fachada dum edifício, e para que pudesse ler tive de parar, facto que passou ao lado dos meus companheiros de jornada, uma frase chamou-me à atenção. Não só pelo seu sentido, que achei curioso, mas também pelo facto de cada uma das palavras estar tingida de uma cor diferente, conforme os tons da bandeira espanhola. Podia ler-se apenas o seguinte: Se me estás a ler, é porque estás em Madrid. Claro que a frase estava na língua dos nuestros hermanos e eu estava em tão real cidade.
Já nós continuávamos a maratona na direcção de um qualquer restaurante que nos aliviasse a fome, quando o telemóvel de um colega tocou. Às vezes recebemos notícias boas, o que só nos enchem de prazer, mas noutras ocasiões nem por isso. De facto o que o meu colega ouvira, e que nos transmitiu logo de seguida, preocupou-nos muito e fez-nos correr na direcção do restaurante Mcdonalds, situado bem no extremo da avenida. Pelos vistos, uma aluna nossa não se estava a sentir muito bem, depois de ter almoçado.
Chegados ao local, imediatamente nos deparamos com o drama da menina indisposta, assim como das lágrimas que lhe banhavam o rosto. Coitada! Vir a Madrid para se divertir e colher o muito que esta grande cidade lhe podia dar, e acontece logo isto. Paciência, os momentos nem sempre nos satisfazem a alma e nem nos aquecem a vontade.
Apanhados por um inesperado de que não estávamos à espera, e uma vez que a menina parecia querer piorar, tentou-se, de imediato, pedir socorro ao 112. Ainda se diligenciou algum esclarecimento numa senhora trigueira, já com alguma idade, sentada num banco em frente, mas de nada valeu. Provavelmente os cuidados desta senhora estavam direccionados para uma outra rota. Talvez o vazio.
Em redor, a cidade mexia-se e não parecia querer inquietar-se com a nossa aflição. Bem encostado a nós, um punhado de emigrantes africanos tentava vender alguns haveres, sem que a polícia soubesse, ao mesmo tempo que uma escultora, numa postura original, fazia uma recriação interessante, mas que pouco nos ofereceu, pois a nossa atenção estava noutro lugar.
Sem que nada o indiciasse ou o determinasse, um homem baixote, com pouco mais de trinta anos, com a pele levemente tisnada e uma calma que lhe dava um ar de gente boa, aproximou-se de nós e apresentou-se como médico. Provavelmente, ele era um de muitos que naquela hora passava naquele lugar, assinalado numa placa que jazia presa a uma fachada: Paseo del Prado. Admirados com o gesto deste madrileno amante dos que precisam, imediatamente uma certa calma nos afagou a alma e as suas providências não se fizeram esperar. Depois de uma primeira auscultação à sua doente ocasional, e após umas primeiras conclusões, o dito médico achou por bem chamar o 112. Enquanto a ambulância não chegava, aquele homem, a quem não perguntamos o nome, permaneceu no seu posto de acção. E, tal qual um guardião de um tesouro a preservar, ele esperava, acalentava o espírito agitado da nossa aluna, ia contornando a situação e reconfortava-nos a esperança.
Ao longe, o barulho estridente de uma sirene interrompeu, por momentos, os muitos sons típicos de uma grande cidade, àquela hora do dia. Bem ao nosso lado, os emigrantes africanos saíram de cena, não fosse a polícia alertá-los para a sua ilegalidade. Quanto à tal escultora, ela continuava na sua azáfama de se enquadrar com a sua obra de arte. Que insistente teimosia ela demonstrava!
Mal a ambulância estacionou, a nossa aluna foi de imediato vista. Conduzida ao interior da mesma, ali permaneceu algum tempo. E, porque o seu tempo chegara ao fim, e, uma vez que dera como concluída a sua tarefa de bom samaritano, o dito médico colocou a sua sacola ao ombro e desapareceu no meio da multidão. No seu rosto de dever cumprido pareceu-me ver desenhado um sorriso especial, enquanto do seu olhar eu juro que vi despegar-se um leve aroma adocicado. Da forma como se afastou, depois de ter recolhido os nossos agradecimentos, só podia levar a crer que o seu coração o encaminhava para uma outra circunstância, que exigia a sua presença. Como é bom saber que podemos contar com a boa vontade dos outros!
Quanto à nossa aluna, tudo não passou duma passageira indisposição.

Carlos Afonso