domingo, 30 de outubro de 2011

No dia em que os cegos começaram a ver…




Neste mundo de Deus, há vários tipos de cegos: os que não veem, porque os seus olhos se cerraram para a luz; os que não enxergam, porque o seu entendimento não os autoriza; os que não contemplam, porque não lhes interessa ver; os que não descortinam, porque lhes esconderam o sol; os que não avistam, porque lhes arrancaram os destinos; e por aí fora. O que vale é que o mundo também se contempla com a alma, os gestos e o coração. Os olhos são apenas uma simples circunstância, no meio da farta paisagem, que é o mundo.
Francisco, já farto de tanta insensibilidade, e até algum desprezo insano, por parte dos colegas de administração, deu um murro na mesa, fechou o livro e disse:
- Até amanhã.
Saiu apressado da sala de reunião. Ignorou o elevador. Desceu as escadas. Atravessou o átrio. Não cumprimentou o porteiro. Virou à direita. Contornou o gradeamento da empresa. Entrou no café. Sentou-se na mesa mais afastada do balcão. Pediu um café. Esperou um pouco. Tomou o café de um só sorvo. Esperou mais um pouco. Cerrou os olhos. Ignorou o espaço que o sustinha. Olhou no escuro e, após breves instantes, sorriu.
O que será que ele via? Como se pode justificar tão estranha atitude? Será que uma demência qualquer se apoderou do seu comportamento?
Deixemo-nos de deduções e mergulhemos no seu sorriso.
Bem no fundo da sua fúria, causada pela insensibilidade dos seus colegas que não perceberam as suas reais intenções, um sol esverdeado ergueu-se no horizonte e a empresa onde trabalhava o Francisco deu sinal de si. A quase certa falência da mesma levara a que algumas hipotéticas e necessárias soluções fossem apresentadas na reunião da administração. Claro que Francisco trouxe a sua.
Ora se os brinquedos que a sua empresa produzia não estavam a ter a aceitação desejável no mercado, havia que redefinir as estratégias e promover a criatividade. Talvez assim as coisas mudassem de sentido. Foi a pensar nesta possibilidade que o nosso trabalhador da Brincogal orientou as suas disposições.
E por que não associar aos brinquedos excertos de textos de vertente literária? Por exemplo, inserir, numa face dos pequenos, comboios um excerto do poema de Fernando Pessoa que fala do comboio “E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão/Esse comboio de corda/Que se chama coração”. Ou gravar um excerto do poema “ Trova do vento que passa” de Manuel Alegre num brinquedo que sugerisse vento. Ou nos brinquedos de praia, excertos, que falassem de ambientes marítimos, de textos de Sophia de Mello Breyner, e por adiante. Assim sendo, poder-se-ia dizer que se estaria perante textos-objecto, com carácter lúdico, pedagógico, literário, carregados de pedaços de vidas. Um dia, quando o brinquedo perdesse a sua utilidade de brinquedo, poderia transformar-se em recordação de estante ou na alma de um poeta. Um dia, quando a criança já não visse no brinquedo a serventia de brinquedo, olharia para ele como a página de um livro ou um suspiro de coração.
Era este sonho todo que morava nos propósitos de Francisco, e que nesse seu cerrar de olhos conseguiu ver, numa outra realidade. Não é preciso acrescentar que nesse dia, e depois de tomar aquele café, e depois da incompreensão dos seus colegas, que o imaginativo trabalhador salvou a sua empresa. Sem sombra de dúvida que o que ele viu e constatou, bem dentro de si, cheirava a um futuro de verde pintado. E porque podia vir a ser útil, e porque eu, narrador de serviço, lho facultei, o nosso amigo roubou do seu produtivo devaneio uma pequena recordação. Era apenas um velho brinquedo, um pequeno carrinho de mão, já rachado, mas que trazia gravado bem no seu interior uma quadra de António Aleixo: “Porque a vida me empurrou/caí na lama, e então/tomei-lhe a cor, mas não sou/a lama que muitos são.” Era, sem sombra de dúvida, um excelente antigo brinquedo, carregadinho de moralidade e estilo.
Quando Francisco reabriu os olhos, a existência, a que nós lhe chamamos realidade, mostrou-se-lhe benignamente airosa. Mais convicto do que nunca, voltou para a empresa. Cumprimentou o porteiro. Subiu as escadas e foi ao encontro dos colegas de administração, que ainda se encontravam, à procura não sei do quê, no mesmo sítio onde os havia deixado.
Admirados, estranharam este voltar de hoje, e não amanhã, sorridente e, estranhamente, persuasor. Sem mais, Francisco colocou o tal carrinho de mão em cima da mesa, sentou-se e entregou-se ao silêncio.
Cada vez mais atarantados, e sem palavras para dizerem, os companheiros de sala entreolharam-se e repararam que as cadeiras se começaram a tornar incómodas. A dada altura, o colega que estava sentado à sua direita, aquele que mais o gozara na primeira reunião, prestou atenção ao objecto que Francisco trouxera, e sempre disse:
- Que interessante! Onde arranjaste isto?
Certo do que ia dizer, o nosso amigo pegou no que restava do brinquedo, e que agora acolhia a quadra de António Aleixo, e declarou para todos os cantos da sala, assim como para os presentes:
- Como não entendestes a minha proposta para salvar a empresa, e porque o vosso discernimento não vos deixou ver a real natureza do meu projecto, fui buscar a maquete a casa.
Nesse mesmíssimo momento, e tal qual o campo ressequido bebe as prenhes gotas de água, e mata a sede, os companheiros de administração do Francisco abriram os olhos e deixaram se ser cegos.

Carlos Afonso (carlosehistorias.blogspot.com)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A gaivota a quem quiseram roubar o mar…



«Era uma vez uma gaivota que morava num velho rochedo, encostado a um mar sem fim. Todas as manhãs, a ave levantava voo e seguia, irrequieta, numa e noutra direcção, mas sempre a roçar a cor do oceano. A sua ligeireza advinha-lhe da amizade que tinha com os ventos norte e leste. A sua beleza foi-lhe oferecida pela maresia. A sua determinação era arrancada, todas as noites, da força das ondas e o seu fado foi-lhe desenhado pelas estrelas. Nunca em toda a sua vida de gaivota deixara de cumprir as suas rotas e desejos, mesmo que se lhe deparassem pela frente tempestades ou sois abrasadores. Mas, numa noite medonha de Setembro, o seu destino quase mudou.
Das profundezas do nada, um nevoeiro muito cerrado ergueu-se, aterrorizador, e envolveu o pobre animal, prendendo o seu fascinante voar. Durante longas horas, a gaivota se debateu com o seu terrível inimigo de cinzento vestido, mais insensível do que as pedras, e nada. A luz dos seus olhos quase se apagou. O seu coração já não sabia o ritmo acertado e as suas penas já estavam cansadas e mortas de sede.
Preocupado, o mar sem fim, que logo sentiu a falta da sua habitual companheira, convocou a força dos ventos, a luz das estrelas e o cheiro da maresia, que, de imediato, se apresentaram, e decidiram por cobro a esta situação.
Como a união faz a força e a verdade dos gestos e do querer é mais vigorosa e bela do que a apatia dos destruidores de sonhos, a ave foi solta e o seu voo foi devolvido ao mar.»
Linda história, não acham? Como é bom colher um final feliz nas histórias que nos contam, principalmente quando elas têm uma moralidade para oferecer.
E porque Deus assim o quer, a nossa vida também tem vários finais felizes, basta, para isso, saber reconhecê-los, quando eles nos aparecem bem à nossa frente, ainda que meio sufocados por nevoeiros tingidos de várias cores. No que a mim diz respeito, sempre vou enxergando alguns finais felizes, nesta minha vida repleta de pontos de partida, e brumas opressores.
A apresentação do romance A que cheiram as Giestas de Conceição Antunes, no dia 16 de Outubro, permitiu-me abrir a alma de uma personagem magnífica, a Laura, para quem os nevoeiros que lhe molhavam os dias não impediram que ela fosse em frente e descobrisse o verdadeiro cheiro das giestas. Um excelente livro, repleto de resistência, determinação, linguagem adequada, ousadias, amor e telas com história. Um autêntico hino à força da mulher. Fafe literário está mais rico.
Desde sempre, o teatro foi uma das minhas predileções. Gosto de vestir a roupagem de uma personagem e tornar-me outro, ainda que com o mesmo coração. Abre-me os horizontes e torna-me maior.
Agradeço ao Grupo de Teatro de Travassós essa oportunidade. A participação em As Mulheres de Atenas, que esta companhia amadora de teatro levou a cena, no dia 16 de Março, no Teatro/Cinema, levou-me a tocar numa história intemporal, numa luta contra os preconceitos, numa experiência única. Ao meu lado estava um grupo de excelentes atores, todos eles mais capazes do que eu. Ao Albino, à Vera, à Isabel, à Natália, ao Orlando, ao Leonel, assim como aos restantes companheiros de função, apenas digo que continuem a amar o teatro e a mostrarem, aos que só vêem nevoeiro no horizonte, que o sol também brilha ao anoitecer. Obrigado pelo vosso apoio e simpatia.
O povo diz, e com razão, que não há duas sem três. Como ele está certo. Ora vejam.
Um dos maiores orgulhos que me alimentam a alma é poder contar com a amizade e o carinho de muita gente de boa vontade. Sem o empenho de muitos braços e o sentir de muitas circunstâncias, as cidades morreriam, os rios morreriam nas nascentes e eu não passaria de uma erva seca, sem vontade de crescer. Participar activamente na visita que o bispo de Bragança/Miranda, meu grande amigo, fez à sua terra natal, que por sinal também é a minha, foi um acontecimento digno de registo.
A tarde de domingo estava amena. A aldeia estava genuinamente engalanada. O povo entoava cânticos de alegria. A passarada estava feliz. Os olivais pareciam mais verdes e as amendoeiras ignoraram as certezas do outono. Tudo estava perfeito. Até os sinos tocaram de maneira diferente…
Com passos emocionados e um sorriso que o define, D. José Cordeiro caminhava pelas velhas ruas, acenando e agradecendo. Beijos, abraços, vozes chorosas, pétalas de flores irromperam instintivamente, e Deus desceu à terra. Foi coisa linda de ver, sentir, tocar e amar. Para o meu amigo de longa data desejo todas as felicidades do mundo. Espero que a sua alma de pastor, o seu peito de amor e o seu farto engenho sejam capazes de ajudar o nordeste transmontano a encontrar as verdades de Jesus. Boa caminhada…
Caros leitores, como devem compreender, o meu texto tem de ficar por aqui, pois o Povo de Fafe tem muito mais para mostrar. Apenas quero terminar com uma frase que me ocorreu um dia, e que me surpreendeu:
O verdadeiro amigo é aquele que pega numa palavra e constrói uma ponte.

Carlos Afonso

sábado, 15 de outubro de 2011

Meu povo, minha alma…


«Era uma vez um grande rio que desaguava todas as horas num mar imenso. Das muitas belezas de que esse rio se gabava sempre que alguém ou alguma coisa o questionava acerca do seu papel como alimentador de mares, ele respondia numa voz húmida e clara:
- Tenho um grande caudal. As minhas margens são acertadas. Os navios que navegam nas minhas margens são belos e luxuosos. Nas minhas entranhas passeiam-se saborosos peixes de prata. E por aí fora… Nunca, e em nenhuma ocasião, esse rio se orgulhou da singela e pura nascente que lhe dava a vida ou dos seus pequenos e anónimos afluentes.
Um dia, Deus, já farto de tanta gabarrice e orgulhos egoístas, decidiu secar-lhe a nascente e desviar-lhe os afluentes para outros sítios.
Coitado do grande rio! Morreu à sede e caiu no esquecimento.»
Amigos leitores, a mensagem que esta pequena história nos oferece, enquadra-se perfeitamente na vivência dos homens, caso estes se esqueçam de olhar na direcção de onde vieram.
O que será de um país dito desenvolvido, quase todo online, rodeado de muito alcatrão, repleto de mentes praticamente brilhantes, frangos congelados e outros enfeites importados directamente da China, se ignora as suas raízes? De certeza que agoniza e apodrece, enrodilhado em cheiros de plástico, pois até o esterco perderá o seu perfume.
O verdadeiro país é aquele que trepa as escadas do futuro sem se desprender das nascentes que o trouxeram ao mundo. O verdadeiro país é aquele que ainda sabe que a broa autêntica não prescinde da farinha milha e o arroz de feijão combina, na perfeição, com um bom naco de carne de porco cozida, daquela entremeada e previamente salgada.
Para quem como eu gosta de se intrometer com o que as nossas memórias ainda guardam, de vez em quando consegue surpreender-se com momentos que nos fartam a existência. Não admira, por isso, caro leitor, que o meu fim-de-semana de 8 e 9 de outubro tenha sido de excelência. Eu explico…
No dia 8, foi um regalo enquadrar-me com os “Leões do Ferro” e participar na sua tradicional “Feira de Outono”. Que bela recriação dos tempos idos! Muito negócio se fez por aqui. Confesso que gostei de olhar, tocar e saborear todo este evento. Ainda bem que esta gente tem memória e engenho!
Se o sábado foi de se lhe tirar o chapéu, meus amigos, o dia 9 também foi impar. Antes de mais, quero agradecer às minhas amigas Etelvina e Fátima pela bela ideia de me convencerem a participar na “Rota da Desfolhada” , lá para os lados de Várzea Cova e Bastelo.
O dia esteve magnífico! O percurso pedestre emprestou-me o cheiro dos pauis, a frescura dos carvalhais, os murmúrios dos ribeiros, as conversas repletas de conteúdo, a música das concertinas, a cor das últimas flores e a fachada rústica do casario! O merendeiro do pessoal de Estorãos encheu-me a curiosidade e não só! A desfolhada foi autêntica e intensa! Os cantares estiveram afinados! As encenações e as decorações estiveram um miminho! A organização a cargo dos Restauradores da Granja, do Grupo de Folclore da Fafe e da Associação Cultural de Várzea Cova não falhou em nada! As vacas vieram engalanadas! Os participantes sorriram a sério! Um dos malhos partiu-se, quando uma senhora fina não lhe deu o melhor uso, mas não aleijou ninguém! A nogueira que estava bem por cima da minha cabeça estava carregadinha de nozes! O baile esteve animado! Mas, o fim da tarde chegou a horas, e o que era bom acabou-se…
Antes de fechar esta minha crónica, pois a minha noite de recordações já vai longa, só vos quero contar mais ma coisinha. Juro que vale a pena. Não querem vocês saber que, a dada altura, uma bela rapariga, que por sinal já fora minha aluna à noite, abeirou-se do meu entusiasmo e disse:
- Professor, quero apresentar-lhe a minha prima. Ela aprecia muito a poesia e gostaria de lhe declamar um poema.
Uma forte emoção fez-me engolir a última gota de um verde branco que ainda se agarrava à minha garganta. Bem ao meu lado, um imponente espigueiro apercebeu-se da minha admiração e estendeu-me um pouco mais da sua sombra. Sem mais, escutei…
A menina tinha apenas cinco anos, ainda não andava na escola primária, chamava-se Inês Alves e declamou um e depois outro poema de uma maneira tão acertada e ingénua, como eu nunca tinha escutado! Os seus olhos eram vivos como a aragem que costuma varrer aqueles sítios! Os seus cabelos eram da cor do sol! O seu sorriso era lindo! A sua atitude era traquina e florida, e um dos poemas era de Fernando Pessoa!
Meu povo, minha alma, como é maravilhoso saborear, de vez em quando, a rudeza das fragas, a pureza das nascentes e a verdade de uma criança!
Desculpem, mas as lágrimas não me deixam continuar…

Carlos Afonso