quinta-feira, 6 de novembro de 2014

UMA HISTÓRIA PARA MIGUEL MONTEIRO (Passado mais um aniversário da sua morte, uma homenagem sincera a um ilustre fafense)





   UM ENCONTRO NA BRASILEIRA


Para quem consegue ler os pequenos indícios que os dias oferecem aos incautos humanos, por vezes, colhe surpresas que nem o destino conseguiria melhor. Não admira, por isso, que uma noite amena de Novembro consiga ser mais intensa do que as imensidades de Junho, ou uma mera flor outonal esparja mais aroma do que as rosas de Maio. É por estas e por outras que certos minutos têm imensuráveis encantos, e o velho Estêvão tenha razão, quando afirma: “O mais belo numa seara farta não é o trigo que nela se venha a colher, mas, sim, no cereal que gostaríamos que ela nos desse.”
Naquela noite, as ruas de Fafe não me foram indiferentes, bem pelo contrário. O sossego da hora e o recato adormecido dos poucos transeuntes convidaram-me a calcorrear a grandeza arquitetónica que define o centro da cidade. Reminiscências, vozes surdas, esculpidas nas vidraças, e uma humidade agarradiça, própria da época, conduziram-me a vontade. Como a iluminação pública não me mostrava a verdade toda, a dada altura, dei por mim a entrar na Brasileira.
Este simpático café, localizado bem no centro da cidade, não tinha mais de uma dúzia de pessoas. Para além do proprietário, um amigo que muito considero, pude enxergar que as demais iam dando duas de conversa, interrompida, de vez em quando, pelas chamadas de um televisor, que se encontrava encostado ao sítio do costume.
Depois de tomar o que a ocasião me pediu, deixei-me estar por ali. E porque me apeteceu, comecei a reparar no que os meus olhos me ofereciam. A cavaqueira amena dos companheiros de espaço continuava. A televisão pouco me dizia. Alguns bolos e outras guloseimas, próprias destes ambientes, pareciam dormitar nas suas calorias. Só a abrangência do momento e a minha apatia espontânea me atraíam. Quase sem querer, inquietei-me. De seguida, pareceu-me ver uma luz diferente, vinda do exterior, que parecia querer confundir-me o raciocínio. Ainda resisti, mas foi por pouco tempo.
Senti passos (e agora não sei se foi sonho se realidade). Uma voz algo ausente, mas minha conhecida, abordou-me. O detentor da mesma pediu licença para se sentar. Numa atitude cordial, como tento sempre ser nestas ocasiões, disse que sim, ao mesmo tempo que reparava na sua fisionomia. Que emoção!
Do que aconteceu logo a seguir, meus amigos, só vos conto alguns excertos, porque os demais pormenores ainda não os consegui entender. O que vos asseguro é que, a dada altura, dei por mim a escrevinhar, num papel que retirei do bolso, uma frase demasiado importante para o dono da voz que a inspirou «Fafe dos Brasileiros». Também vos assevero que aquele homem de meã de figura, plenamente convencido do que dizia e dono de um olhar oceânico, me fartou, naqueles inesquecíveis instantes, de histórias e nomes de fafenses que escolheram o Brasil para emigrar. Claro que também me falou dos seus regressos, das riquezas que trouxeram, dos palacetes que construíram e das suas bem feitorias. Não se esqueceu, igualmente, de me esclarecer algumas dúvidas e de me acrescentar algumas curiosidades que só um homem sábio pode clarificar. Depois, retocou de leve os óculos, e enquanto se despedia, apontou para o que eu escrevera e pareceu estremecer. Depois, sorriu e recolheu-se à eternidade.
É evidente que eu entendi a mensagem.
E porque tinha de ser, acordei para a realidade, compus os óculos, pois pareceram-me desacertados, e respirei fundo…
Ora bem, do que temos estado a conversar, alguma coisa não bate certo ou, se calhar, tem todo o sentido.
Na Brasileira prosseguia a conversa. A televisão insistia no que estava programado. No meu relógio eram quase as onze.
Levantei-me, peguei no papel com os tais dizeres e apertei-o com convicção. Despedi-me e saí.
A noite continuava quase igual…

Carlos Afonso (2011)


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

UM GESTO DO TAMANHO DE MUITOS SENTIMENTOS... (Obrigado!)





Na semana passada, quando abri a caixa do correia, encontrei no seu interior uma pequena folha com algumas palavras e um flor desenhada. A flor era bonita e a frase dizia assim:
 "Professor, passamos por sua casa para o cumprimentar, mas como não está, deixamos-lhe este pequeno bilhete. Obrigado por tudo. Nunca o esqueceremos. Foi um prazer ser seu aluno durante 3 anos. Pode contar sempre connosco. Bjs"

Claro que o bilhete estava assinado. Claro que telefonei a agradecer tão maravilhoso presente!

E porque me emocionei com o que me colocaram na caixa do correio. E porque gosto de ser professor. E porque, para mim, os alunos ficam eternamente agarrados ao meu coração, aqui deixo um simples poema como prova da minha estima, carinho e saudade:


Voltai a esta escola…


Os dias de cada vida
Não são todos iguais.
Às vezes, atiram-me lama ao rosto
E cobrem-me de imundices vazias.
Outras vezes, obrigam-me a caminhar,
Na direção que desejo alcançar,
Mas não quero que acabe assim.

Eu sei que os destinos têm de andar…
Eu sei que tenho de soltar do peito
Os sentimentos dos que vão,
Sem saber se tornarão,
Sem saber se me dirão
O que ainda não senti!

Tempo, não roubes o sonho dos que têm de sair
Nem me oprimas com esse fim
Que ainda não acabou,
Mas que tem de subir à morada das estrelas
E à foz onde começa o mar
E cessa o meu tocar.

Ai… como as estações estão certas!
Mesmo que os ventos destruam a calma dos prados
E as flores percam a cor
E se afastem das certezas primaveris…

Basta.
Os meus choros não podem apagar os risos dos que querem ir adiante.
Os caminhos têm de seguir o seu rumo
E as vozes não podem calar-se antes de Deus as escutar.

Ide, amigos do peito, aves da esperança, corações de mel!
Segui o rumo das aves,
Bebei a clareza das nascentes,
Colhei os frutos das vontades,
E amai o nascer do luar.

Um dia, mais tarde,
No momento em que os vossos olhos
Já beberem a seiva de outros peitos,
E os vossos corpos roçarem outros prazeres,
Iguais à plenitude dos anjos,
Voltai a esta escola
E perguntai por mim!


(Com carinho, Carlos Afonso)


quarta-feira, 2 de julho de 2014

O CORREDOR DO PISO SETE DO IPO DO PORTO É A AVENIDA MAIS LONGA DE TODA A CIDADE…





Em todas as cidades grandes há avenidas feitas de destinos, pessoas, carros, barulho, árvores, flores na primavera, sol e chuva, dias e noites, sonhos e vontade de seguir e de chegar…
Em todas as cidades grandes há avenidas marcadas por um princípio e por um fim.

O corredor do piso sete do IPO do Porto é a avenida mais longa de toda a cidade…
O corredor do piso sete do IPO do Porto começa e acaba nos vidros de duas janelas que mostram o que apenas deixam ver…
Os olhos que olham veem:
 pedaços de cidade
 luz dos outros
sons desiguais
alguns acenos
 passos apressados ou parados
 metas de olhares que ainda procuram e…  quase desistem
 ramos ao vento
e aldeias e vilas e casas de longe…  gravadas no coração dali…
e…

O corredor do piso sete do IPO do Porto deixa-se percorrer por tubos, sangue, roupa suja, cheiros sem flores, feridas à mostra, caras por lavar, brancos diversos,  remédios que enganam e…  homens e mulheres e velhos e jovens e mães e filhos e irmãos e…
estes sofrem
aqueles  sofrem
os outros partilham dores
e os outros trabalham…

O corredor do piso sete do IPO do Porto é a avenida mais longa de toda a cidade e…
 neste corredor há uma mulher que gosta de tulipas amarelas, um rapaz que quer ir a Fátima a pé e um homem que gosta de fazer pizas…

Carlos Afonso


quinta-feira, 26 de junho de 2014

NOTA INTRODUTÓRIA AO LIVRO SOLIDÁRIO «O SÍTIO ONDE MORAM AS CORES DO ARCO-ÍRIS»


  


 "Não podemos ter medo da solidariedade"
                                                                               Papa Francisco


Uma das maiores grandezas da disciplina de Literaturas de Língua Portuguesa é a possibilidade que oferece aos alunos de, e para além de poderem usufruir das obras dos vários autores de Língua Portuguesa, darem azo à sua criatividade, interligando-se sempre com o meio que os cerca. A palavra, a alma, o sonho, o coração e o engenho surgem, assim, juntos e em sintonia.
Ao estudarmos o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, as suas palavras soaram alto no nosso entendimento e a brisa afagou-nos o olhar.
O poeta disse:
 «A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.»
E nós respondemos:
«As frases estão certas. O poeta tem razão. A felicidade existe. Temos de SENTIR O CORAÇÃO!»
O movimento “Sentir o coração”, inspirado na poesia de Carlos Drummond de Andrade, nasceu na Escola Secundária de Fafe, numa das minhas aulas de Literaturas de Língua Portuguesa, com o objetivo de ajudar um dos alunos, que precisava da nossa atenção e carinho.
O Nuno sorriu! A nascente brotou… e o espírito solidário, envolto em palavras e orvalho, começou a caminhar para o mar.
  O primeiro passo foi dado com a realização de uma oficina de escrita no Centro Social e Paroquial de Revelhe, regida pelos alunos do 12ºI, de onde surgiram os primeiros trabalhos, e o repto para a edição do livro O Sítio Onde Moram as Cores do Arco-Íris começou a ganhar forma.
A onda de solidariedade foi crescendo. Aos primeiros textos e desenhos, construídos pelos meninos do Centro Social, outros se juntaram, com a colaboração de vários autores de todas as idades. Aos poucos, e acariciado pelas cores do amor, o livro O sítio onde moram as cores do Arco-Íris mostrou-se no horizonte.
 Que lindo! Que perfume!
            - O livro está pronto. E agora? Como vamos editá-lo? - alguém suspirou.
            Uma das maiores certezas que nos acompanha é que Deus existe.
            Deus escutou as nossas preocupações e permitiu que mais pessoas se associassem ao movimento “Sentir o coração”. A Naturgipe ofereceu-nos a sua força e outros corações ofertaram-nos gestos, sorrisos e tempo. O pequeno regato ganhou caudal e o mar começou a ficar mais perto.
            Da venda do livro O sítio onde moram as cores do Arco-Íris nascerão outros livros que irão enriquecer a jovem biblioteca do Centro Social e Paroquial de Revelhe, também ela germinada no movimento “Sentir o Coração”.
            Hoje, as crianças já podem olhar, com mais clareza, o céu e construírem as suas histórias com final feliz. Amanhã, o Arco-Íris continuará a mostrar as suas cores definidas e repletas de esperança.

            Obrigado!


Carlos Afonso

segunda-feira, 9 de junho de 2014

O SENTIDO DAS PALAVRAS...



Depois de um dia inteiro de reuniões na Escola Secundária, e depois de um fim de semana no IPO, preocupado com a saúde de um familiar que me é muito querido, abro a página e vejo o que as minha palavras provocaram, e que me estão a provocar sentimentos contraditórios.
O que eu mostrei no Club Fafense foi o meu descontentamento perante um silêncio que não entendi, e nem entendo, perante um evento cultural, que a associação Atriumemoria estava a organizar, e que tinha a colaboração de muitas Associações de Fafe e de alguns lugares ligados a Camilo Castelo Branco. De facto, já há meses que muitas pessoas estavam a trabalhar intensamente nessa iniciativa que considerávamos importante para Fafe e para a literatura.
Como o silêncio foi a resposta da entidade que sempre apoiou estas iniciativas, ficamos deveras preocupados, e a mim causou-nos imensa tristeza ter de cancelar o que julgávamos importante.
Ao dizer, de uma forma sentida que iria mudar de "lugar" para continuar a viver a cultura, como gosto de a viver, estava a salientar que trabalhar com outras terras ligadas a Camilo seria o meu próximo objetivo. Igualmente me iria afastar de tantos silêncios que a mim me causam muito mau estar. Claro que o farei, mas continuarei a viver em Fafe, a trabalhar pela terra que me acolheu, assim como a desenvolver atividades que não me causem tanto cansaço e certas incompreensões.
Agradecia que os amigos não fizessem desta situação um fim do mundo. Agradeço as mensagens que tenho recebido, pois nunca imaginei que o meu desabafo (o meu grito de alerta) causasse tanta confusão. Mas penso que já chega, pois as coisas já começaram a mudar e para MELHOR.
Neste momento estou ligado a um projeto pedagógico que considero muito interessante, ligado também, à Atriumemoria, e que já foi apresentada a versão mais popular em Estorãos, ligado ao Ciclo do Pão, e na próxima quinta feira será apresentada a versão mais escolar na Escola da Devesinha,a partir de um conto que escrevi e que se chama «O velho e o grão de milho».
Peço também a atenção para uma grande iniciativa solidária que estou a coordenar com os meus alunos, e muitos outros amigos, e que tem como base um livro solidário a favor da criação de uma Biblioteca Escolar no Lar da Criança de Revelhe. O livro já está à venda em vários lugares e chama-se «O sítio onde moram as cores do Arco-Íris, e que pedia a todos os amigos, e se assim o entendessem, que o comprassem e que ajudassem as crianças que precisam da nossa ajuda.
Como os amigos podem ver, eu continuo a lutar por aquilo em que acredito.
Amo Fafe e todos os fafenses, não sou homem de virar costas a quem me quer bem, mas tenho o direito de alertar para situações que não podem voltar a acontecer.
E como um amigo sincero me confidenciou numa bela mensagem, acabo este meu texto de uma forma que considero certa, e que dizia mais ou menos assim " se amamos as cores do Arco-Íris e o que elas significam, também temos de compreender as tempestades, pois sem elas não há Arco-Íris."
Sempre gostei de "construir pontes" entre as pessoas, e é o que continuarei a fazer.
Agradeço a vossa preocupação, mas vamos ficar por aqui.

Com amizade

Carlos Afonso

terça-feira, 27 de maio de 2014

NO dia 30 de maio, O ARCO-ÍRIS PINTARÁ AS TERRAS DE FAFE

NO dia 30 de maio, O ARCO-ÍRIS PINTARÁ AS TERRAS DE FAFE

Na noite do dia 30, traga uma cor do arco-íris e entre numa história mágica «UMA AVENTURA NO JARDIM DOS SONHOS»

Aberto a todos os que têm um coração solidário, o lançamento do livrosolidário será o motivo maior para acontecer um grande evento solidário, no campo de jogos Escola Secundária de Fafe, com a presença de vários grupos musicais e outros momentos recreativos.
No dia 30, venha à Escola Secundária, traga uma cor do Arco-Íris (roupa/fita/...) e entre numa aventura mágica «Uma aventura do Jardim dos Sonhos»
(Esta iniciativa tem como objetivo ajudar as crianças e jovens do Lar da Criança de Revelhe. A criação de uma biblioteca é uma das principais intenções, para que as crianças tenham as condições necessárias para que o seu futuro seja mais feliz)

Por favor, divulgue esta iniciativa e ajude as crianças a sorrir...

sexta-feira, 16 de maio de 2014

ALMA DOS CANAVIAIS E OUTRAS HISTÓRIAS - um livro de viagens?



            Nestes últimos anos, muitas histórias compuseram a minha vida, enrodilhadas num permanente caminhar por espaços, pessoas, sonhos e vivências. Assim, e porque os momentos também devem ser partilhados, Alma dos Canaviais e outras histórias… não é mais do que um aglomerado de pedaços de mim, num permanente interagir com os outros.
De Trás-os-Montes ao Minho, de Fafe a Alfândega da Fé, do norte ao sul de Portugal, de Paris a Moscovo, as palavras soltam-se num irrequieto viajar.

                                      
                                                           Pedido
                                       Nunca ansiei o brilho das estrelas…
                                       Jamais desejei a precisão dos espaços…
                                       Recusei sempre o devaneio dos ventos….

                                       Peço apenas, aos que têm sonhos por cumprir,
                                       Para que leiam os meus sinais,
                                       Escutem o murmúrio das palavras que escolhi,
                                       Colham alguns pedaços de mim
                                       E amem a frescura amena dos canaviais…

           
“É que, as páginas deste livro são desenhadas pela bipolaridade dos géneros que nele convivem; pela diversidade das temáticas que lhe emprestam o colorido; pelos espaços de memória que permite revisitar; pela evocação das figuras que se pretende homenagear; pelo “prazer da leitura” que poderá ser saboreado, em função do sortilégio da dança das palavras, gravadas ora à maneira de poemas líricos, ora de reflexões e relatos em forma de crónica quase diarística.
Trata-se de efabulações surgidas às golfadas da alquimia de uma alma consabidamente poética, mas alternando com narrativas que a correnteza das rotinas fez brotar de feição continuada. Nestes textos, ressaltam retalhos de um olhar penetrante e perscrutador do quotidiano, que a todos nos circunda, embora escape ao nosso olhar normalmente demasiado ocupado, distante e alheado.”
                                               António Teixeira (autor do prefácio)


 A obra Alma dos Canaviais e outras histórias vai ser apresentada no dia 23 de maio,  pelas 21h30, na Sala Manoel de Oliveira, em Fafe.


Carlos Afonso

sábado, 19 de abril de 2014

O ÚLTIMO OLHAR DE JESUS



Desde há dois dias para cá que a cidade se cobria com umas enfadonhas e molhadas tardes, indefinindo rostos, apagando flores primaveris, abafando almas, escondendo caminhos e alumiando muitas ausências. Maria era uma das muitas pessoas que habitavam por ali, sem que ninguém lhe tenha dito para se mudar. Para quê? O destino não o permitiria. A não ser que um olhar maior lho consentisse
Maria já não sabia o que fazer. Meia adoentada por uma indisposição qualquer que não sabia definir, os dias pareciam-lhe demasiado tristes e sem sentido! O seu corpo de mulher de vinte e três anos continuava em desacordo com os conceitos gerais de beleza e nenhum olhar de rapaz mais afouto o procurava para lhe descobrir algum sabor. A mãe de setenta e tantos anos continuava acamada e repleta de sofrimento, pois não havia dinheiro para um tratamento a sério. O único irmão, mais velho do que ela fora levado por um tio para as américas. Quanto ao seu emprego, tudo na mesma. O patrão fechara a fábrica sem dizer nada, há mais duas semanas, sem o mínimo espírito de arrependimento, não pagando os ordenados desde janeiro. Pelo que alguém disse, foi-se embora de Portugal no seu jato particular. Pudera, para quem tem mais de um dúzia de empresas na América latina, fechar uma simples fábrica no Minho não causa qualquer tipo de remorsos.
Desempregada, penso que o nome correto é mesmo este, apesar de segunda a sexta, sem que uma semana passe em claro, tanto ela como as suas colegas de ofício, continuarem a passar algumas horas no seu ainda local de trabalho, mesmo de portas fechadas e com as máquinas paradas. Algum dinheiro que possa chegar a mando dos tribunais viria mesmo a calhar.
Faltavam apenas dois dias para a Páscoa e era preciso manter a tradição. Uma mesa mais enfeitada com todas as iguarias da época seria o ideal. O problema é que na carteira não havia a quantia necessária para gastos maiores, quanto mais para comprar um pão-de-ló e, mais a mais, já há muito que a ridícula reforma da mãe tinha ficado resgatada na farmácia e noutros sítios onde se pagam dívidas.

 E porque a mãe tinha o direito a um dia especial como todos os outros, sentia-se obrigada a fazer alguma coisa. Depois de a cuidar com todo o carinho que lhe é reconhecido, deu-lhe um imenso beijo no rosto, e despediu-se, dizendo que vinha já. Como a mãe já almoçara, Maria pensou que ela não precisaria de o fazer, pois, dessa forma, o jantar já estaria feito. Uma simples maçã e um copo de leite resolveriam o seu problema e nem à mesa se sentou. Deixando a mãe sossegada e com alguma paz, foi para o seu quarto, mas como constatasse que o frasco de perfume já estava vazio, arranjou-se como pode e, dali a pouco tempo, saiu. Era Sexta-feira Santa e a chuva continuava a cair, dando a este dia nomeado as cores exatas com que o mundo cristão o tinge.
Por volta das três horas da tarde, o exato momento em que Maria passava em frente à Igreja de São José, bem no centro da cidade de Fafe, um mal-estar sem precedentes fê-la cair sem estrondo no lajedo do passeio. Angustiada e sem forças para se erguer, sentiu a quentura do sangue a afagar-lhe o rosto e uma ou outra voz que a interpelavam. Sem ânimo, fechou os olhos e desistiu. Dentro de si, brotou a leve lembrança de que Jesus Cristo também morrera numa sexta igual àquela e, dessa forma, Maria também aceitou a morte. Quem era ela para escolher outra hora? Não era qualquer um que acabava os seus dias numa data assim.
 A dada altura, e depois de uma imensa negritude jamais vivida, a alma trouxe à sua presença o rosto de um homem rodeado de paz, com um olhar mais brilhante do que o sol, e que, em breves palavras, lhe apontou o seu verdadeiro caminho:
- Maria, levanta-te e anda, a tua família e amigos esperam-te…
Sem jeito e surpresa na sua forma de estar, sempre conseguiu dizer:
- Senhor, que olhar tão belo… Eu conheço-vos… Vós… vós… sois Jesus.
E porque assim estava escrito, Maria voltou à vida e, para sua felicidade, em redor da cama do hospital, para onde fora levada depois de ter caído na rua, estavam a sua mãe, seu irmão com uns olhos azuis que encantavam e algumas das suas companheiras de trabalho.
Como tudo aconteceu para que este quadro, impensável ainda há pouco, pudesse acontecer, também eu, narrador, não sei responder. Ou sei?
Lá fora, o sol voltara e um perfume especial inundava os lugares e momentos.

                                                                                                                                             Carlos Afonso

quarta-feira, 2 de abril de 2014

A NAMORADA DO SOL (2 de abril, dia internacional do livro infantil)





Bela era a flor mais bela de todo o prado!
Bela tinha faces rosadas. A sua postura era elegante e esverdeada. O seu perfume sabia a mel, pormenor que fazia com que as abelhas das redondezas a beijassem todas as manhãs e todas as tardes e até quando começava o anoitecer. Como ela gostava dessas carícias!
O sol, esse então, e enquanto fosse dia, nunca tirava os olhos da beleza de Bela. Apenas à noite, e só porque era obrigado pelas leis do tempo, é que lá se escondia por detrás dos outeiros, para que a noite pudesse chegar. Como ele sofria, nos momentos da separação! Coitado!
Todas as manhãs, e bem de manhãzinha, o sol era sempre o primeiro a chegar ao prado. Depois, esperava que Bela acordasse e logo lhe oferecia um sorriso muito brilhante. A flor corava um pouquinho e sorria também.
Mas, naquela manhã, tudo mudou. Sem se saber como e de onde, chegou ao prado um vento feio e mau… 

 (continua)

Carlos Afonso


sábado, 22 de março de 2014

A IMPORTÂNCIA DAS JORNADAS LITERÁRIAS DE FAFE





Passada mais uma edição das Jornadas Literárias, a quinta, é com satisfação que digo, na minha modesta opinião, que o espírito inicial das jornadas se fez mostrar. A escrita, a leitura e a criatividade entrelaçaram centenas de pessoas, desde alunos, professores e população em geral, e a literatura espalhou-se por diversos espaços do concelho de Fafe.
Nascidas em 2010, numa aula de Literatura Portuguesa, na Escola Secundária, com o objetivo de promover e incentivar o estudo dos escritores fafenses, rapidamente as Jornadas Literárias se redimensionaram e, de ano para ano, a sua fasquia foi mudando de lugar. À literatura associou-se à etnografia e às tradições, e as Jornadas, ditas literárias, converteram-se em verdadeiras jornadas culturais.
Todos sabemos que a grandeza nem sempre favorece a perfeição, acabando, aqui e ali, por as mensagens nem sempre se evidenciarem e até se atropelarem. Assim, em 2014, e para que a qualidade acompanhasse a quantidade, achou-se por bem separar a vertente literária das restantes tendências, e as 5ª Jornadas Literárias de Fafe seguiram o seu rumo original.
Se nos espaços culturais de Fafe, Biblioteca Municipal, Sala Manuel de Oliveira e Teatro-Cinema, a literatura se associou à música, dança, pintura e outras artes, para satisfação de quem usufruiu desses momentos, foi nas escolas do concelho que as Jornadas mais sumo e eficácia exibiram. Concursos de poesia, maratonas de leitura, contacto com escritores, oficinas de escrita, instantes criativos, “peddypaper” literário, encontros poéticos, caminhadas de poesia, poesia de rua e muitas outras realizações se deram a conhecer de uma maneira bem positiva e frutífera.
No que a mim diz respeito, assim como aos meus alunos de Literatura Portuguesa e de Literaturas de Língua Portuguesa da Escola Secundária, posso dizer com toda a convicção de que vivemos ativamente as 5ª Jornadas Literárias. Na verdade, penso que a melhor maneira de sentir este tipo de iniciativas é participar e trabalhar com todo o afinco e forças para o seu sucesso e utilidade. É pela base que se começa a construção das grandes edificações, seguindo-se, só depois, para os restantes patamares.
Tanto eu como os meus alunos, ajudados e complementados por muitas outras pessoas, envolvemo-nos com alma e coração nas nossas Jornadas e percorremos todos os caminhos que havia a calcorrear. Semeamos, regamos, cuidamos, sofremos e já estamos a colher os frutos desejados.
As Jornadas Literárias de Fafe não podem, nem devem, ser encaradas como um trampolim para algo que não lhe está no destino. Se elas forem encaradas de uma forma desajustada e não percebida, mais cedo ou mais tarde, a seiva que as alimenta deixará de correr e o ciclo encerra-se na noite do nada.
De todas as iniciativas promovidas pelos meus alunos, enumero algumas que considero de interesse considerável, não só para a sua realização como discentes, assim como fundamentais para a sua formação como mulheres e homens de amanhã. O reinventar o escritor Mia Couto levou-nos a desenvolver dezenas de atividades em parceria com crianças e jovens de variadas idades. O organizar o 1º encontro de escritores de Fafe revelou-se de uma importância enorme, não só pelo aproximar de partes, como pelo desenvolver e fomentar a leitura e a escrita. O participar em vários eventos culturais mais exigentes levou os meus alunos a sentirem-se mais motivados e criativos. O estudar intensamente escritores fafenses e nacionais enriqueceu e desenvolveu capacidades de análise e compreensão. Caminhar lado a lado com a poesia pelas ruas de Fafe e outros espaços definidos trouxe incentivo, alegria e amor pela poesia.  O realizar documentários, filmes e provas de escrita criativa facultou novos conhecimentos e incrementou novas valências e formas de interpretar.
E foi de uma forma trabalhosa e árdua, mas necessária e fascinante, que vivi, ao lado dos meus alunos e muitos outros amantes da cultura, instantes enriquecedores e de uma beleza indescritível.
Viver a literatura exige vontade, necessidade, trabalho, amor e uma alma grande. Em 2015 cá estaremos para continuar a demanda literária e contribuir para o sucesso das 6ª Jornadas Literárias de Fafe.
Para terminar, apenas o seguinte. Tem valido a pena ajudar a construir a grande estrutura cultural das Jornadas, ao lado de muitos e muitos amigos que acreditam, tal como eu, nos valores da cultura, sempre imbuídos na crença de que todos juntos iremos mais longe e seremos mais felizes.

Carlos Afonso






domingo, 9 de março de 2014

FAFE INTEMPORAL


                                                                                         (Fafe dos Brasileiros, 2012)

Esta imagem é de uma beleza única! A sua real mensagem ainda não se cumpriu...

«Um povo sem memória é um povo sem futuro...»

- SENHOR, falta cumprir-se Portugal.

segunda-feira, 3 de março de 2014

EM ALFÂNDEGA DA FÉ, NO REINO ENCANTADO DAS AMENDOEIRAS EM FLOR, AS LENDAS SÃO VERDADEIRAS






                             A lenda das amendoeiras em flor...

Há muitos e muitos séculos, antes de Portugal existir e quando o Al-Gharb pertencia aos árabes, reinava em Chelb, a futura cidade de Silves, o famoso e jovem rei Ibn-Almundim que nunca tinha conhecido uma derrota.
Um dia, entre os prisioneiros de uma batalha, viu a linda Gilda, uma princesa loira de olhos azuis e porte altivo. Impressionado, o rei mouro deu-lhe a liberdade, conquistou-lhe progressivamente a confiança e um dia confessou-lhe o seu amor e pediu-lhe para ser sua mulher. Foram felizes durante algum tempo, mas um dia a bela princesa do Norte caiu doente sem razão aparente.
Um velho cativo das terras do Norte pediu para ser recebido pelo desesperado rei e revelou-lhe que a princesa sofria de nostalgia da neve do seu país distante. A solução estava ao alcance do rei mouro, pois bastaria mandar plantar por todo o seu reino muitas amendoeiras que quando florissem as suas brancas flores dariam à princesa a ilusão da neve e ela ficaria curada da sua saudade.
Na Primavera seguinte, o rei levou Gilda à janela do terraço do castelo e a princesa sentiu que as suas forças regressavam ao ver aquela visão indescritível das flores brancas que se estendiam sob o seu olhar. O rei mouro e a princesa viveram longos anos de um intenso amor esperando ansiosos, ano após ano, a Primavera que trazia o maravilhoso espetáculo das amendoeiras em flor.

Nota: A amendoeira é o símbolo da doçura e da leveza.





sábado, 22 de fevereiro de 2014

CULTURA VIVA - 1º Encontro Temático/Pedagógico - (Memórias e tradições de Fafe)

              



                             «O CICLO DO PÃO»

(Com o objetivo maior de realçar o papel formador das tradições na vida do homem, em consonância com a respetiva região em que vive, neste caso o Minho, a Associação cultural de Fafe Atriumemória leva a cabo o primeiro Encontro Temático/Pedagógico centrado no «Ciclo do Pão». Este evento cultural, em que o real e o imaginário convivem afavelmente, mostra como a poesia, as tradições, as memórias, a música e a vida do nosso povo são o enredo ideal para uma bela história plena de rusticidade minhota.)

Programa:
- «O velho e o grão de milho» - Adaptação para teatro de um conto de Carlos Afonso, construído a partir do trabalho de investigação de Maria Soledade Vaz
- «Do corpo à alma» - Poesia de palavras com sabor a terra e céu
- Grupo de Cavaquinhos da AAPAEIF (Associação dos Antigos Professores, Funcionários e Alunos da Escola Industrial e Comercial de Fafe)


Local: Sede da Atriumemoria, Fafe, (Edifício Shopping 134, cave)
Data: 1 de março de 2014, 21h30

Realização: Atriumemoria

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A FLOR DA FELICIDADE




     A maior virtude do homem está na capacidade de encontrar na rigidez do sofrimento a flor da sua felicidade!



Carlos Afonso

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

UM AMOR, UMA VIDA (dia dos namorados)



Sempre que me lançares um sorriso, eu prometo-te a minha alma. Sempre que me ofereceres os teus afectos, eu asseguro-te o
meu coração. Sempre que me deres o teu corpo, eu desvendo-te os
meus segredos.


         O verdadeiro amor não se planeia ou elabora, guiado pelo pendor da consciência, longe da pureza dos momentos. O verdadeiro amor desabrocha de uma forma natural, bem dentro do coração, impelido por um gesto, um olhar, um sorriso sincero ou um simples instante de sorte. Mas, e tal qual as flores dos prados aceitam receber na sua intimidade a incauta abelha, para que esta dê azo ao seu destino, o homem deve deixar-se possuir pela real dimensão do amor e esperar que as nascentes não percam a sua dimensão cristalina e a aragem continue a guiar o rumo das aves.
       Alberto nunca pensou que aquela praça granítica, cravada numas das zonas mais emblemáticas de Braga, espaço onde muitas histórias tiveram o seu ocaso, fosse o começar de uma vida plena de confidências, partilhas e futuros sempre a cimentar. De certeza que os caminhos que o trouxeram até ali sabiam o que ia acontecer. Se assim não fosse, a noite não estaria tão amena e as estrelas só viriam mais tarde.
       Provavelmente, aquele olhar trémulo que Maria deixou escapar, naquele mês de Maio que o tempo gravou na correnteza dos tempos, não era destinado a Alberto. Mas isso não teve qualquer importância, pois os anjos desceram à terra e desviaram a sua trajectória.
       Tiveste sorte, meu rapaz!
      O poeta diz, e com razão, que o coração nem sempre obedece aos desígnios da razão. Ainda bem que assim é, pois, caso contrário, as flores só mostrariam o seu encanto na Primavera e os dias cairiam num enfado sem novidade.
      Para quem pensava regressar às terras donde nasceu, lá para os lados do Marão, no reino encantado de Trás-os-Montes, depois de concluir o seu curso na Faculdade de Filosofia, aquele encontro ocasional de Alberto e Maria inverteu o curso de um sonho de anos. A ideia de voltar como professor aos espaços da sua infância criava em Alberto uma alegria compreensível, aguçada aqui e ali pelo capricho de poder passar por esses espaços numa outra condição, arrancada a ferros de uma existência de vários anos, na companhia de muitos livros e noites mal dormidas. Mas, e tal qual a ave da ribeira descasca as bagas do zimbro, ajudada pela ingenuidade de um movimento, o olhar não intencional daquela esbelta rapariga apagou uma vontade que parecia inquebrável, e acendeu uma estrela que, e depois de muitos anos, ainda dura e, de certeza, continuará a brilhar, até que os deuses a cubram com o seu manto.
        Para bem dos caminhos encurvados que levam os que procuram, e aprazimento daqueles instantes que decoram os anseios dos homens, é bom saber que ainda há corações crentes em olhares sem mágoa e pudores inocentes pregados a rostos com nome, impelidos por lágrimas que nem sempre se mostram. É em torno destas circunstâncias estendidas sobre paisagens de muitas formas, e de janelas expostas à luz, que o amor aparece e, num tom de excelência, deixa bem claro que não deseja esfumar-se em restos de nada.
          Só é de lamentar, e se calhar a culpa é do vento, constantemente embrulhado na indefinição da direcção da sua força, que muitos compromissos se quebrem, justificados por vozes e atitudes que, geralmente, deixam muito a desejar.
          Não, não me acusem de ser um desenraizado dos tempos, e muito menos de um prosador sem plano, ou até de um ser qualquer que se emociona quando saboreia os sonetos de Camões.
         Não, não me mandem escrever rimas soltas na poeira do chão, sempre que está para chover.
        As minhas certezas e o meu acérrimo acreditar na força viva do amor têm todos os ingredientes necessários para contaram com a bênção do perfume das rosas amarelas, ainda antes de serem cortadas por mãos sem jeito. E sabem porquê?
        Porque conheço, e muito bem, as linhas com que se entrelaça o amor do Alberto e da Maria, em véspera do dia dos namorados, não questionem o atrevimento de vos deixar nas linhas desta história alguns versos que roubei a um breve momento de inspiração:


Sonhos de água…

Sonhos de água…

Se me pedires a clareza de um olhar,
O meu peito abrir-se-á de par em par
E nos rostos que nos definem
Nascerão mil vontades de ousadias cobertas de cor e fantasias!

Depois, de certezas férteis semeadas nas almas,
Erguer-se-á, leve, a ternura das fontes e o céu esperará por nós!

Água salubre, escorrida de nuvens feitas de carícias,
Gotejará do roçar consentido dos nossos corpos,
Unidos por linhas que o tempo tecerá,

Antes das madrugadas começarem a acordar!

Carlos Afonso

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Um pardal na neve (histórias da minha infância)*



Lembro-me como se fosse hoje…
Era sábado.
Os sábados em Trás-os-Montes, no Inverno, às vezes, têm neve. Naquele sábado, tudo era neve. Neve a sério. Neve e neve e neve…
Se não estou enganado, naquela altura, eu não tinha mais de dez anos e estava de férias na minha aldeia de Parada, concelho de Alfândega da Fé. Digo de férias, porque, e como é habitual ainda hoje, as crianças estão de férias nas vésperas de Natal. Eu estudava no seminário de Vinhais…
-Filho, hoje não saias de casa, ouviste?
Claro que eu ouvi, mas não obedeci. Quem me avisava de uma forma tão assertiva e preocupada era a minha madrinha Antoninha.
Sem que ninguém me visse, saí porta fora, caminhei a custo por ruas cheias de neve, encostado a todo um casario coberto de neve. E, quando dei por ela, já estava fora da aldeia com os meus passos enterrados na neve, e quase até aos joelhos, neve essa que se espalhava com força por todo o caminho dos «Espoios».
Meio ofuscado pela clareza branca do horizonte que me cercava, enrodilhado em milhares de farrapinhos frios que esvoaçavam por todo o lado, reparei num remexer aflito por entre a neve, em tons de morte, encostado a uma parede já velha. E porque queria perceber o que se estava a passar, aproximei-me.
Coitado! É um pobre pardal!
Com algum engenho e cuidado, retirei o pardal do sítio que o escondia por entre a neve, e que o iria matar, e acolhi-o dentro da minha casaca castanha. Voltei para casa, outro vez envolto por uma neve que continuava a cair sem descanso. Já no quarto, vislumbrei uma caixa vazia de sapatos, debaixo da cama, puxei-a a custo, abri-a, fiz-lhe uns buracos pequenos e coloquei lá o pardal. Depois, desci à adega, retirei uns grãos de trigo de um saco e ofereci-os ao pequeno pássaro que, sem se fazer rogado, os debicou e ficou saciado. Na manhã seguinte, o céu já estava azul, mas cá em baixo, na terra dos homens, tudo continuava pintado de um branco cor de neve. Coloquei a caixa na varanda, retirei-lhe a tampa e o pardal voltou a ser um pardal a sério, enquanto o meu coração me dava os parabéns pela minha atitude de bom menino, apesar de não obedecido às ordens de minha madrinha.
Eu sei que os pássaros não pensam. Mas aquele pardal pensava ou, então, tinha um dom especial que me levava a julgá-lo dessa maneira. Na verdade, o bendito pardal, e depois do ocorrido, todos os dias, e enquanto as férias duraram, ele vinha visitar-me. Pousava na varanda, chilreava com alguma sonoridade, como que a chamar-me, depois saltava para dentro da caixa, que eu lá havia deixado ficar, assim como um punhado de grãos de trigo, que ele comia com agrado. Passado pouco tempo, talvez dois minutos, abria as asas, chilreava mais um bocadinho e voltava para donde viera. Os espaços eram o seu reino.
As aulas recomeçaram e eu voltei para o Seminário de Vinhais. Não tive tempo de me despedir do pardal e ninguém me soube dar notícias do mesmo, durante as largas semanas de estudo que se seguiram.
O Carnaval chegou e as férias, ainda que pequenas, também.
Mal cheguei à minha aldeia, cumprimentei os que amavam, corri para a varanda e vi o que nunca imaginara encontrar.
A caixa de sapatos, ainda aberta, lá estava e, dentro dela, o que restava da pobre avezinha!
Depois desse dia, e ainda hoje, e durante todos estes anos, tenho por hábito, sempre que vou à minha querida Parada, lá no reino encantado de Trás-os-Montes, o reino onde os pardais gostam de morar, subir à dita varanda, agora com novo rosto e forma, olhar o céu e procurar, para além do mundo dos homens, o pardal que encontrara na neve.
Pode não acreditar, amigo leitor, mas não só o reencontro como costumo partilhar com ele o seu magnífico voar.

*(Esta história é dedicada ao meu filho mais novo, Carlos Manuel, e aos seus colegas de turma, Carolina, Alexandre e José Nuno, que me inspiraram a escrevê-la, no preciso instante em que me pediram ajuda quando estudavam as «Memórias», conteúdo obrigatório da disciplina de Português.)

Carlos Afonso