sábado, 26 de novembro de 2011

UMA HISTÓRIA PARA MIGUEL MONTEIRO (Passado mais um aniversário da tua morte, Fafe nunca te esquecerá...)


UM ENCONTRO NA BRASILEIRA

Para quem consegue ler os pequenos indícios que os dias oferecem aos incautos humanos, por vezes, colhe surpresas que nem o destino conseguiria melhor. Não admira, por isso, que uma noite amena de Novembro consiga ser mais intensa do que as imensidades de Junho, ou uma mera flor outonal esparja mais aroma do que as rosas de Maio. É por estas e por outras que certos minutos têm imensuráveis encantos, e o velho Estêvão tenha razão, quando afirma: “O mais belo numa seara farta não é o trigo que nela se venha a colher, mas, sim, no cereal que gostaríamos que ela nos desse.”
Naquela noite, as ruas de Fafe não me foram indiferentes, bem pelo contrário. O sossego da hora e o recato adormecido dos poucos transeuntes convidaram-me a calcorrear a grandeza arquitectónica que define o centro da cidade. Reminiscências, vozes surdas, esculpidas nas vidraças, e uma humidade agarradiça, própria da época, conduziram-me a vontade. Como a iluminação pública não me mostrava a verdade toda, a dada altura, dei por mim a entrar na Brasileira.
Este simpático café, localizado bem no centro da cidade, não tinha mais de uma dúzia de pessoas. Para além do proprietário, um amigo que muito considero, pude enxergar que as demais iam dando duas de conversa, interrompida, de vez em quando, pelas chamadas de um televisor, que se encontrava encostado ao sítio do costume.
Depois de tomar o que a ocasião me pediu, deixei-me estar por ali. E porque me apeteceu, comecei a reparar no que os meus olhos me ofereciam. A cavaqueira amena dos companheiros de espaço continuava. A televisão pouco me dizia. Alguns bolos e outras guloseimas, próprias destes ambientes, pareciam dormitar nas suas calorias. Só a abrangência do momento e a minha apatia espontânea me atraíam. Quase sem querer, inquietei-me. De seguida, pareceu-me ver uma luz diferente, vinda do exterior, que parecia querer confundir-me o raciocínio. Ainda resisti, mas foi por pouco tempo.
Senti passos (e agora não sei se foi sonho se realidade). Uma voz algo ausente, mas minha conhecida, abordou-me. O detentor da mesma pediu licença para se sentar. Numa atitude cordial, como tento sempre ser nestas ocasiões, disse que sim, ao mesmo tempo que reparava na sua fisionomia. Que emoção!
Do que aconteceu logo a seguir, meus amigos, só vos conto alguns excertos, porque os demais pormenores ainda não os consegui entender. O que vos asseguro é que, a dada altura, dei por mim a escrevinhar, num papel que retirei do bolso, uma frase demasiado importante para o dono da voz que a inspirou «Fafe dos brasileiros». Também vos assevero que aquele homem de meã de figura, plenamente convencido do que dizia e dono de um olhar oceânico, me fartou, naqueles inesquecíveis instantes, de histórias e nomes de fafenses que escolheram o Brasil para emigrar. Claro que também me falou dos seus regressos, das riquezas que trouxeram, dos palacetes que construíram e das suas bem feitorias. Não se esqueceu, igualmente, de me esclarecer algumas dúvidas e de me acrescentar algumas curiosidades que só um homem sábio pode clarificar. Depois, retocou de leve os óculos, e enquanto se despedia, apontou para o que eu escrevera e pareceu estremecer. Depois, sorriu e recolheu-se à eternidade.
É evidente que eu entendi a mensagem.
E porque tinha de ser, acordei para a realidade, compus os óculos, pois pareceram-me desacertados, e respirei fundo…
Ora bem, do que temos estado a conversar, alguma coisa não bate certo ou, se calhar, tem todo o sentido.
Na Brasileira prosseguia a conversa. A televisão insistia no que estava programado. No meu relógio eram quase as onze.
Levantei-me, peguei no papel com os tais dizeres e apertei-o com convicção. Despedi-me e saí.
A noite continuava quase igual.

Carlos Afonso (2011)

sábado, 12 de novembro de 2011

O sorriso do rei…




Neste mundo de Deus, e de todos os que o habitam, há muitos enredos de histórias que nos dão interessantes certezas. E esta asserção é tão exata que não é preciso pedir às pedras que falem, aos rios que voem ou às flores que ignorem a primavera. O elementar é saber descortinar as soluções acertadas, a partir de indícios ou sementes que nos lançam para as mãos. Não admira, por isso, que eu queira partilhar convosco o que se me desapegou da inspiração:
«Era uma vez um rei que morava numa terra já quase sem nome, onde os seus súbditos já quase não sonhavam e onde as estações do ano já não sabiam o momento exato para se darem ao desfrute. Não era de estranhar que o monarca, que já governara esta terra no tempo das vacas gordas, agora, nestes acinzentados momentos, não tivesse paciência para escutar os conselhos inconsequentes dos seus conselheiros ou esperar, em vão, que as suas vinhas voltassem a dar suculentos cachos e os seus trigais, muito cereal. Às vezes, quase que lhe apetecia despojar-se da sua realeza e afogar-se na desistência, mas, quando voltava a si, apertava a mão direita de encontro à espada, que já tinha sido do seu avô, e só pensava em queimar a praga peganhenta, que o apertava, e voltar a erguer o seu país.
Um dia, e depois de muito penar no meio de tanta apatia existencial, decidiu por pernas ao caminho e descobrir, por sua própria conta, um final feliz para os seus desígnios. Andou, andou, mas o naco de pão, que levava na algibeira, já não tinha sabor. Andou, andou, mas o cavalo, que o transportava rapidamente, já não tinha mais força. Andou, andou, mas a lua, que lhe emprestava a luz, cegara de vez. Andou, andou, mas o sentido dos caminhos, que lhe apontava a meta, esquecera o rumo. Pobre rei!
Já gasto pela desesperança, ordenou aos seus propósitos que, se não encontrasse um fim desejável para tão insustentável situação, deixaria, e agora sim, de ser o que era e não mais se importaria com o destino dos seus súbditos ou as insígnias do seu brasão. E ponto final.
Passada a noite, e depois a manhã, e no preciso instante em que passava entre um outeiro e um vale, o rei reparou num pequeno espaço, torneado por um insignificante muro de pedra, e que tinha, em todo o seu interior, um verdadeiro paraíso. Com os olhos, que a terra lhe há-de comer, enxergou, encostado a uma cerejeira florida, um velho homem a dormir, com um corroído livro no regaço. Em redor do ancião, mas dentro do dito quintal, viu ainda outras árvores repletas de cor e vida, pedaços de terreno com fartos legumes de época, um pequeno poço de água cintilante, algumas alfaias agrícolas, um gato estendido ao sol e muita passarada pousada nos ramos a chilrear. Era, de facto, um ambiente repousante e acolhedor, que contrastava, claramente, com a sua inquietude de monarca aflito.
Num ápice, sua senhoria bateu as palmas para ver se chamava a atenção do velho, mas nada. Repetiu, tornou a repetir o jeito, e só lá para quinta vez é que obteve resposta. Perseverante nas suas palavras quis logo ali saber a razão de tamanha acalmia, pureza e fartura. Calmoso, em toda a sua compostura, o velho homem, dirigiu-lhe a atenção, sorriu, abriu o livro, leu qualquer coisa, fechou-o e, sem se levantar, sempre adiantou:
- Desculpe-me a cortesia, mas estava a dormir e os meus ouvidos escutavam outras certezas.
Ainda pertinente, o rei logo contrapôs:
- Mas tu não sabes que os habitantes deste grande reino, de que eu sou o suserano, andam tristes e sem sonhos? E só tu, com essa atitude, pareces viver num mudo à parte? Qual é a razão do seu sorriso?
- Desculpe-me, real senhor, se vos ofendi. Eu moro aqui perto, este é o meu quintal, e o meu sorriso é verdadeiro. Ele vem da felicidade que me mora na alma, dos sentimentos que retiro dos livros que leio, da grandeza a que se apegam as minhas memórias, do perfume que se solta das flores, do canto que oiço das aves, da clareza que me oferece o sol, e de eu continuar a poder dormir as minhas sestas – esclareceu o velho.
O rei, agora com uma voz mais humilde, quase lhe implorou:
- Como já reparaste, eu ando preocupado com o mal que me cerca, e não encontro soluções para o meu reino. Gostaria que me explicasses melhor o que acabaste de dizer.
Perante a insistência do rei, o velho ergueu-se com agilidade, convidou-o a entrar no quintal e pediu-lhe que o acompanhasse até ao poço. Depois, pediu à passarada que chilreasse mais baixo, encheu uma pequena vasilha de água fresca e ofereceu-lha. De seguida, acrescentou:
- Sua majestade, farei o que me pedis, mas antes quero proveis desta água e depois gostaria que sentísseis a realidade que vos cerca.
Durante algum tempo, o velho e o rei foram conversando, ao mesmo tempo que a tarde ia avançando. Já bem perto da noite, um silêncio especial começou a aproximar-se dos dois, facto que facilitou escutar o que há muito tempo não se ouvia: o sorriso do rei.»
Caros leitores, pelos vistos o nosso rei sempre encontrou a cura para os seus males. Afinal, e como foi bem perceptível na pequena história, as soluções, às vezes, estão bem perto de nós. Basta, apenas, entender a verdade que nos cerca: as raízes de um povo; a naturalidade das paisagens; os ensinamentos de um livro; a espontaneidade das aves; a frescura das nascentes; a história das fachadas; o silêncio de um pôr-do-sol; a fragrância das tílias ou o saber de um velho. É aí, aí que a felicidade existe e o amor sorri…
Carlos Afonso

sábado, 5 de novembro de 2011

O sorriso que venceu a morte…



O dia 31 de outubro, deste ano de 2011, não foi, para mim, um dia comum. Se alguns momentos, do seu todo, me pareceram usuais, mais ou menos programados, outros foram tecidos de cores que me conduziram a outros espaços, em tempos diversos.
Como faço quase todos os dias, por volta das oito da manhã, peguei na pasta, saí de casa, subi a rua José Cardoso Vieira de Castro, esperei que os semáforos me dessem autorização para passar, continuei na direção da Escola Secundária, e antes de chegar à Padaria Silva, reparei que no chão, bem à minha frente, estava um ramo de flores ainda viçosas. Num instinto natural, olhei à minha volta e, só bem mais à frente, vislumbrei um senhor de alguma idade, que caminhava apressado. Sem quaisquer dúvidas em relação ao sucedido, pensei logo que foi o tal senhor que deixara cair o dito ramo. Pequei no mesmo, apressei o meu andar, e levado pela curiosidade, sempre acabei por ler um simples dizer que se encontrava gravado num papel acinzentado, preso à base do arranjo: «Com muito amor. José».
Meio emocionado, aligeirei ainda mais o passo e sempre apanhei o tal senhor de alguma idade que ia à minha frente. Claro que o ramo era dele. Claro que o ramo era para o seu amor. Como ele ficou feliz!
- Agradeço a sua simpatia. Veja como está a minha cabeça. As flores são para oferecer à minha esposa – disse-me a sorrir.
- Gesto bonito o seu, oferecer flores à sua esposa – adiantei eu.
- Sabe uma coisa? Sempre gostei de lhe oferecer flores em dias especiais. Agora que ela já morreu há mais de dez anos, continuo a fazê-lo, porque sei que ela gosta. Muito obrigado e que Deus lhe pague.
Sem me dizer mais nada, e com um sorriso do tamanho do mundo estampado no rosto, continuou a sua caminhada.
Reparem bem, meus amigos, este senhor de alguma idade ia oferecer as suas flores ao seu amor, que ansioso as esperava no cemitério. Afinal, a morte não impediu que um lindo gesto se continuasse a cumprir.
Como eram quase 8h30, fui para a escola trabalhar, mas este episódio matinal não caiu no esquecimento. Durante a manhã, uma ou duas vezes, e sem que o determinasse, dei por mim a olhar pela janela da sala de aula a reparar não sei bem onde, mas com um só pensamento na cabeça. Será que o tal senhor já ofereceu as flores à sua esposa?
O dia foi decorrendo com alguma normalidade, mas ao fim da tarde, um cansaço incomum fez com que me deitasse bem cedo. Algo de estranho se passava comigo. E o mais curioso é que a cena matinal ainda me era familiar.
Já na cama, e ainda sem adormecer, lembrei-me que era véspera do dia de todos os Santos, e a memória de meu pai tomou conta da minha existência. A partir desse momento, um sonho diferente pegou-me nas mãos e levou-me para a aldeia onde eu nasci, ao encontro de uma pessoa muito especial.
O cemitério estava todo enfeitado! A aragem matinal atirava-me ao rosto uma estranha doçura, que parecia derivar do ramo de flores que segurava nas mãos.
Meu Deus! É igual ao que encontrara no passeio, bem perto da Padaria Silva!
Sem me importar com tal coincidência, dei alguns passos no interior do cemitério e uma voz bem minha conhecida chamou por mim. Olhei, e vi que o dono dessa voz, o meu pai, estava sentado numa pedra robusta que ali jaz há mais de dez anos. Ofereci-lhe o ramo com carinho, e ele recebeu-o com um sorriso. Depois, meus amigos, colocamos a conversa em dia. Falamos disto e daquilo, e até trouxemos à memória aquele jogo de futebol entre o Fafe e o Sporting, na altura em que o Fafe esteve na I divisão, e em que o meu pai se molhou todo, pois o raio da chuva não dera tréguas durante toda a partida. O diálogo entre os dois foi alegre e reconfortante, só que não foi eterno. A despedida foi indefinida, pois o sonho não ma esclareceu. Só sei que eu saía do cemitério com uma cara de muitos amigos, quando, e para meu espanto, encontrei, logo ali, o tal senhor a quem, nesse dia de manhã, havia dado o tal ramo que ele deixara cair. Claro que as suas palavras só podiam ser estas:
- É tão bom podermos oferecer flores às pessoas que amamos! Quer companhia até casa?
Claro que eu aceitei.
O dia 1 de Novembro acordou lindo! E o meu coração também!
(Para o meu querido pai, que Deus levou para si há mais de 10 anos, aqui deixo esta pequena história para lhe dizer o que ele já sabe há muito tempo: A morte apenas nos torna levemente invisíveis)

Carlos Afonso (carlosehistorias.blogspot.com)