domingo, 30 de janeiro de 2011

Ó Rio da Minha Memória

Nasceste nos Montes de León
E seguiste o sonho de ser um rio,
Igual a esses heróis sem medo,
Desenhados pelas garras afiadas dum destino,
Que no Verão te empresta as sedes das ribeiras,
E no Inverno as enxurradas e o frio.

Ó rio da minha memória,
Como as minhas mãos tremem,
Quando o rosmaninho florido das ladeiras
Lhes conta que te querem roubar as margens,
E esconder-te em estranhos recantos
Que não fazem parte da tua história!

Eu sei que eles são mais fortes do que o vento desvairado
E que os seus interesses não cabem
Debaixo desse fraguedo com importância,
Que sempre te olhou amplo de inveja.
Mas… não chores!
Mostra-lhes que os rios não morrem
E que és o dono da minha alada infância!

Para mim, serás sempre o rio da minha aldeia,
O passado que não quero olvidar,
O caminho que conduz o tropeçar gasto dos meus passos,
E a vida que continua a florescer à tona molhada do teu eterno desaguar.

Meu Sabor, digam o que disserem e façam o que fizerem,
Serás, sempre: livre e leve como as aves a quem deste de beber;
Agreste e doce como os montes que embalaste;
Esbelto e luzidio como os peixes que em ti cresceram,
Verdadeiro e franco como os luares que no teu leito se deitaram
E em ti, num martírio meigo, se afogaram,
Quando as noites mais escuras não os quiseram Acordar.


Carlos Afonso

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Um final Feliz

«São os primeiros passos que definem os destinos das jornadas»

Um final Feliz
Era uma vez um povo que perdera o real sentido da esperança e já não sabia o verdadeiro significado das cores do arco-íris.
Já cansado de tantos desânimos e saudoso de uma bela madrugada de Primavera, pois já há muito que as flores haviam deixado de enfeitar os poucos jardins que ainda resistiam, o rei deste país, um homem mau e autoritário, que só conhecia o sabor do ódio e da guerra e que nunca tinha vertido uma única lágrima, decidiu dar um fim a toda esta situação. Parece que, finalmente, entendera que a culpa de toda esta situação era exclusivamente sua. Então, mandou chamar todos os adivinhos, bruxas e ciganas das redondezas para que lhe indicassem um rumo que pudesse libertar o seu reino e a si destes desígnios tão assombrosos. Caso isso não acontecesse, e ele deixara-o bem claro, cortar-lhes-ia a cabeça. Tudo foi em vão, pois o medo de todos os que foram convocados deitou tudo a perder.
Os dias foram passando, os meses começavam a perder o sentido e as noites eram cada vez mais negras.
Já farto do seu cargo real e da sua má sorte, o rei desfez-se da coroa e da sua majestosa capa, vestiu-se de camponês e disse aos seus conselheiros que, durante algum tempo, iria caminhar pelos seus bosques e vales, montanhas e rios em busca de uma derradeira solução para o seu mal fadado reino. Admirados com tão estranha decisão, toda a corte o tentou demover, mas a determinação do monarca ignorou todos os rogos.
Depois de caminhar horas e horas a fio sem nada encontrar, começou a sentir fome, mas não viu nada para comer. As árvores não tinham frutos, os campos estavam ressequidos, os rios perderam os seus peixes e as aves do céu já há muito que haviam esvoaçado para outras paragens. Sem saber o que fazer, sentou-se numa pedra, pegou num ramo seco e começou a escrevinhar no chão acastanhado. Como que inspirado não se sabe pelo quê, reparou que escrevera uma frase que não entendeu: A felicidade do homem mora na sinceridade do seu coração.
A dada altura, e ainda intrigado com o que acabara de escrever no chão, começou a ouvir ao longe a melodia afinada duma flauta. Admirado com tão inesperada circunstância, decidiu descobrir o misterioso tocador.
Chegado a uma cabana, bem escondida pelo matagal, encontrou um menino sentado num banco de madeira, rodeado de alguns animais selvagens, a tocar numa velha flauta de pastor.
Com uma voz forte e imperial mandou parar o jovem e perguntou-lhe o nome e o porquê de estar a tocar. Sem lhe mostrar medo, o menino disse-lhe que estava a entoar um hino aos deuses para que estes fizessem do seu rei um homem bom, amigo dos seus súbditos e que lhe devolvesse o seu pai que mantinha preso nas masmorras do castelo.
Sem saber o que replicar, o rei, disfarçado de camponês, sentiu um forte aperto no peito e caiu de joelhos na folhagem seca que alcatifava a cabana. Preocupado, o menino ajudou-o a sentar-se a seu lado e ofereceu-lhe a última maçã que tinha. Depois, num gesto simples e sem pudor, deu-lhe a flauta para as mãos e pediu ao rei que tocasse. Apesar de este repetir várias vezes que não sabia tocar, o menino insistiu, até que o rei colou o instrumento aos lábios e tocou uma melodia tão bela e harmoniosa que todos os campos e rios, céus e povoados do seu reino ganharam uma nova vida e os prados se encheram de belas flores. Como que por magia algumas lágrimas começaram a discorrer dos olhos do rei, olhos que nunca haviam chorado. E foi só neste momento tão especial que ele compreendeu que a solução para o mal que o oprimia a si é a todo o seu país sempre esteve bem ao seu alcance, mas que nunca o encontrara. E tudo por causa da dureza dos seus sentimentos. Afinal só era necessário escutar a sinceridade do coração.
Carlos Afonso

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Uma noite especial

Eu sei que os dias nem sempre correm de feição e as noites nem sempre conseguem mostrar a luz meiga do luar. Mas, às vezes, o céu empresta-nos a sua sina e deixa que as nossas vivências se tornem das cores perfumadas que definem a Primavera. E ainda bem que assim é, pois seria de muito má sorte vivermos, permanentemente, envoltos numa névoa invernal, à espera que os momentos desembocassem no vazio.
Para quem teve o privilégio de assistir ao espectáculo que o núcleo de patinagem artística do Grupo Nuno Álvares nos ofertou num sábado diferente de todos os outros, dia 18 de Janeiro, pode provar um pouco desse céu caridoso de que falei. E querem saber porquê? Se não se importam, ofereçam-me a vossa atenção e embarquem numa viagem com volta, a bordo de uma nau, com mais de quinhentos anos.
O Pavilhão Multiusos estava repleto, a música engalanava as atenções e as bandeiras convidavam-nas para a festa. Do ringue, espaço onde as patinadoras, e consoante a seu esquema e ordem de participação, esvoaçavam ao sabor da mestria, do esforço e de um desejo maior, levadas pela maresia e por um oceano que já foi nosso!
Que magia e toques de perfeição se soltavam dos seus gestos, posturas e atrevimentos!
O tema de todo o espectáculo assentava nos descobrimentos portugueses, facto que foi comprovado por um apresentador que se vestiu a rigor com uma roupagem igualzinha à do mítico infante Dom Henrique. Se o nosso navegador foi o pilar iniciático das nossas descobertas, este quase actor do grupo Nuno Álvares, orientou, na perfeição, tão simbólico e original espectáculo.
Como já devem ter reparado nos vários textos que tenho escrito, eu acredito piamente nos indícios dos olhares, assim como tenho a certeza de que os momentos não acontecem por acaso e de que os caminhos nem sempre começam nas partidas. Por isso, não admira que umas simples palavras proferidas por um senhor de meia-idade, que se encontrava sentado na fila atrás de mim, nesse emblemático espectáculo de patinagem, me tenham conduzido, poucas horas mais tarde, para um outro espaço, um outro tempo, na companhia de um passado ainda bem vivo na mente dos que acreditam
- Que maravilha! Estas patinadoras agem tão ligeiras nos seus patins, que até parecem impulsionadas pelos mesmos ventos que guiaram as embarcações dos nossos navegadores.
Reconheço que gostei do comentário, assim como da convicção com que foi pronunciado.
Às vezes é a forma com que dizemos as palavras que nos permite ver os destinos mais cobiçados.
Acabado o espectáculo, e já havíamos entrado na primeira hora da madrugada de Domingo, regressei satisfeito a casa. A dada altura, e quando já me embrenhava com um sono que custou a chegar, as palavras do tal senhor, o tal que estava sentado na fila atrás de mim, vieram-me à memória e, meus amigos, embarquei numa quase real aventura, de que vos vou contar só uma ínfima parte. O restante, talvez vo-lo narre numa ocasião mais propícia.
Uma leve neblina cobria toda a embarcação, facto que não impedia que todos aqueles que olhavam a distância perscrutassem algum indício de ilha ou continente que nos permitisse atracar. Esta busca parecia eternizar-se e algum desânimo começava a desenhar-se na alma, mas a dada altura, e porque Deus também o quis, o esvoaçar insistente de duas gaivotas e o grito rouco do gajeiro materializaram o desejo de toda uma tripulação, ansiosa por encontrar terra, depois de mais de um mês de viagem.
Pouco a pouco, o longe começou a definir-se aos nossos olhos e a costa que se mostrava na distância deixou que o espírito da descoberta se cravasse nas suas entranhas e começasse a vislumbrar montanhas, árvores, sons, uma extensa praia e...
Claro que durante toda a santa noite descobri um mundo novo, perfumes desconhecidos, águas translúcidas, gentes de cor negra, sabores que me criaram uma leve indigestão e costumes que me espantaram. Foi pena que no momento em que estávamos a receber das mãos das filhas do rei daquelas paragens colares de flores, um despertador, comprado já em pleno século XXI, me tenha devolvido ao meu tempo e a uma manhã nublada de Domingo.
Apenas um desabafo em forma de pergunta. O que seria do rigor acertado das horas e do real objectivo dos dias sem os devaneios desconcertados dos sonhos? Provavelmente tudo seria mais frio e as rosas jamais se mostrariam nas manhãs límpidas de Maio.
Carlos Afonso

domingo, 16 de janeiro de 2011

O fim e o princípio

O fim e o princípio

É a vontade de caminhar que enaltece o traçado dos caminhos.
Uma das muitas belezas que a cidade de Fafe nos oferece está no seu estilo muito próprio de se mostrar durante a noite, por alturas do Natal. Motivo pelo qual eu gosto de calcorrear as ruas e praças, becos e jardins desta esbelta cidade e sorver todos os instantes que se me oferecem, usufruindo, assim, de toda uma ambiência natalícia, salpicada de um misticismo mágico. Mas, às vezes, o destino ou o mero acaso surpreendem-nos, e a alma como que se une ao corpo, numa cumplicidade intencional. Foi o que aconteceu na noite de 3 de Janeiro de 2011.
A aragem estava fria e um nevoeiro agarradiço toldava as fachadas do casario dum acinzentado esquisito, mas sem conseguir retirar o brilho bastante das iluminações de Natal que se estendiam pela Praça 25 de Abril e arredores. Apesar de não ser uma rotina para mim, nessa terceira noite do ano de 2011, e depois de uma caminhada desde as redondezas do rio Ferro, onde moro, resolvi entrar na Brasileira e tomar um descafeinado. Para além de mim, só o proprietário deste sítio acolhedor e outros dois clientes constituíam os residentes do espaço. Não demorei mais de meia hora, tempo mais que suficiente para não escutar conversa alguma, pois o jogo que decorria na televisão prendia a atenção dos meus companheiros de espaço. Antes de sair, ainda tive ocasião de reparar que numa das mesas jazia um pequeno livro de capas acastanhadas. Porque o desejei, consegui ver o título, facto que me deixou um pouco curioso e com vontade de o desfolhar. O Princípio e o Fim era, na verdade, um título interessante. À sorte, abri-o e o que dizia uma frase a negrito, na página doze, levou-me a constatar que as circunstâncias podem assustar-nos: “Por vezes, a luz mais brilhante esconde o negrume mais carregado». Reconheço que não li mais nada e nem procurei saber o autor deste solitário livro, pois a frase como que me tirou o fôlego. Fechei-o e segui o meu destino.
O que é que o autor de tão estranha frase quereria dizer?
A noite continuava a braços com um intenso nevoeiro e a iluminação natalícia lá ia conseguindo ultrapassar as adversidades climatéricas, e sempre continuava a mostrar os seus propósitos. Reconheço que toda esta ambiência começava a apertar-me a vontade, e um certo mistério começou a desenhar-se em meu torno.
Senti passos. Olhei e não vi ninguém. Um leve tremer de pernas fez-me parar, e, sem que o esperasse, reparei num cão que passou por mim, olhando-me de soslaio. E porque a noite foi feita para todos, não dei muita importância ao animal. Depois, lembrei-me da frase que li no livro que encontrara na Brasileira, ganhei ânimo e retomei a caminhada.
Enquanto distendia os passos, ao longo das ruas, um breve pensamento acercou-se de mim: Será que a mensagem daquela frase gravada a negrito no livro tem algum propósito especial ou estará descontextualizada? Nesse momento senti algum remorso de não ter lido mais alguns excertos. Mas, já era tarde, a não ser que invertesse o rumo e voltasse atrás. Não o fiz e continuei.
Depois de percorrer toda a praça 25 de Abril, e quando passava bem perto do Jardim Calvário reparei num piscar insistente de umas luzes de várias cores que enfeitavam uma pequena árvore de Natal, numa montra de roupa que ali se encontrava. Não sei porquê, aproximei-me e fiquei estupefacto com o que vi. Bem no centro da montra, entre o vidro e a pequena árvore, estava um postal que tinha uma imagem indefinida e uma frase que eu já conhecia: “Por vezes, a luz mais brilhante esconde o negrume mais carregado». E, o mais estranho, e que me fez apertar o último botão do casaco, reparei que entre dois manequins, um vestido com roupa branca e um outro com roupa negra, um pequeno livro amostrava-se-me com um título, também ele já meu conhecido: O Princípio e o Fim
Meu Deus, mas o que é que se está a passar? Pensei para comigo, enquanto atirava um olhar para as redondezas. Não alcancei ninguém, apenas silêncio, nevoeiro, o brilho esforçado da iluminação, o acinzentado esbatido do casario e… Mas o que é aquilo? Gritei numa voz muda que me atordoou a lucidez.
O tal cão que ainda há bem pouco tempo havia passado por mim, estava, agora, numa postura esfíngica a olhar-me bem lá de cima, no topo da escadaria que conduz ao Jardim do Calvário, encostado ao portão.
Nesse instante, um calafrio percorreu todo o meu corpo e fiquei gélido. De súbito, o cão levantou-se, abanou a cabeça e começou a descer as escadas e, num tom ameaçador veio na minha direcção. Assustado, quis fugir dali, mas as pernas não me deixaram. E, quando o animal já se encontrava a pouco mais de dois metros da minha quietude, cerrei os olhos. Imóvel, esperei por um arremesso ou um ataque brutal ou por uma outra coisa qualquer. Esperei, esperei, e nada.
A custo, abri os olhos e…
Mas onde está o raio do cão?
Um misto de admiração, medo e alívio enrodilharam-se à minha forma de estar, e a minha questão repetiu-se e repetiu-se e repetiu-se.
À minha frente apenas a noite, as luzes, o nevoeiro, o casario, e algo mais: no mesmo sítio, pousado no asfalto, onde se encontrava o cão, estava um pequeno livro de capas acastanhadas, com o mesmo título dos anteriores: O Princípio e o Fim.
Por incrível que pareça, esta situação, aparentemente repetida, não me espantou, até me pareceu óbvia. Não admira, por isso que eu tenha pegado no livro e, sem qualquer temor, o tenha colocado debaixo do braço. Não o abri, isso ficaria para mais tarde, mas, nesse preciso momento, uma leve brisa começou a afagar-me o rosto e a iluminação natalícia pareceu-me mais brilhante. Ao longe, ouviu-se, claramente, o latir cadenciado dum cão, logo seguido de um badalar abafado de um sino, enquanto um leve dissipar do nevoeiro deixou que uma estrela assomasse lá do alto.
Sem querer perceber mais nada, tentei relevar todas aquelas ocorrências que me tinham assaltado durante este passeio nocturno e dispus-me a regressar a casa, pois dali até à Urbanização Salgueiro Maia ainda era uma boa esticada. Segui em direcção aos correios, passei junto ao hospital e só parei junto aos semáforos, porque o sinal vermelho para peões assim o exigiu.
Quando já me preparava para retomar o regresso, e porque o sinal devia estar mesmo a mudar, as luzes intensas de um automóvel que vinha dos lados do campo de futebol encadearam-me e fizeram com que continuasse parado à espera não sei do quê, sem poder ver absolutamente nada.
Senti o carro a parar, uma porta a abrir-se e passos a dirigirem-se na minha direcção. Depois, e após breves instantes de um certo vazio e alguma ansiedade, escutei a voz de minha esposa:
- Carlos, o que estás aqui a fazer? Anda para a cama que já é muito tarde.
Algo atarantado, abri os olhos e olhei-a por instantes, e pouco disse:
- O que é que queres? Parece que adormeci.
Tudo me pareceu estranho. Afinal foi apenas um sonho.
Às vezes as circunstâncias mostram-nos o quanto é estreita a linha que separa o concreto do inexistente.
Verifiquei o meu estado e analisei as circunstâncias que me circundavam: a lareira já estava apagada; a televisão ainda permanecia ligada e, no meu relógio, passavam três minutos das quatro da manhã.
Levantei-me do sofá e quando ia a desligar a televisão, reparei no que o ecrã me mostrava. Uma Jornalista ainda jovem trocava umas impressões com uma convidada acerca de um livro que havia sido apresentado nessa manhã na livraria Lello do Porto. O que elas diziam pareceu-me banal até ao instante em que pronunciaram o título: O Princípio e o Fim.
Mas… o que é isto? Matutei atabalhoadamente.
O que aquelas duas interlocutoras disseram a partir daí absorveu-me cada vez mais o espírito, e, no final da conversa, pareceu-me perceber o que se passara naquela noite de três 3 de Janeiro.
O livro de que se falava na televisão contava a história de um homem que fazia dos seus dias um permanente desafio ao respeito, à solidariedade e ao humanismo. E, certa vez, depois de ter cumprido à risca mais um dos seus esquemas de malvadez, acabou por se que perder na noite. Era altura do Natal e estava um nevoeiro cerrado. Assim, e quando caminhava na companhia dos seus pensamentos, num dos seus passeios solitários, pelas ruas da cidade onde morava, debateu-se com um estranho encontro. Um cão, vindo não sei de onde e num tom ameaçador, apareceu no caminho, para o atormentar. Depois de algumas peripécias, mal-entendidos e receios, este homem descobriu que esse animal era especial. Ele era especial, pois tinha sido enviado por Deus, para o proteger dos muitos enganos e imposturas que moravam na sua alma, e da forma fria e injusta como costumava lidar com o seu semelhante.
A boa figura e o sorriso forte e claro com que este homem se apresentava perante os outros, não eram mais do que uma luz traiçoeira que acompanhava a sua forma de agir e que servia, apenas, para esconder o mal e a hipocrisia que reinava no seu coração. E foi aquele cão, vindo a mando de Deus, e que não era mais do que um anjo de Natal encarnado, que lhe mostrou que o princípio de uma nova vida implica o fim de uma vida plena de pecado e transgressão. Foi aquele cão, e depois de algumas cenas que a jornalista e a sua convidada resumiram por alto, que mostrou à personagem principal do livro que o princípio de um homem novo exige o fim de um caminhar por entre escuridões e vendavais.
A dada altura, e no momento em que a jornalista de acabava de ler a última frase do livro, fui tomado por um impulso que me acelerou o coração. Então, a frase que eu já tinha lido em outras circunstâncias, dentro do meu sonho, servia apenas para constatar aquilo que eu entendi na perfeição: as aparências iludem.
Aquele homem, a personagem principal, fartara-se de enganar e ludibriar, e foi preciso um encontro diferente numa noite, por altura do Natal, para que o rumo da sua vida se alterasse. Deste modo, a frase “Por vezes, a luz mais brilhante esconde o negrume mais carregado” tinha e tem todo o sentido.
Afinal, o que aconteceu no meu sonho, naquela noite, uma noite muito idêntica à da personagem do livro, foi muito mais do que um sonho. Foi um comprovar de que as coisas nem sempre são aquilo que parecem, e que o coração do homem nunca é velho para mudar e saber entender a verdade que se solta dos carreiros claros de algumas manhãs de Maio, quando o feno dos prados mostra a sua verdadeira cor.
Como é evidente, e logo que se propicie, irei comprar o livro. Não que eu não saiba já o seu enredo e envolvência, mas, e só por isso, querer perceber, melhor, apenas dois pormenores: o meu verdadeiro papel no meio disto tudo e o porquê de tão estranhas similitudes.

Carlos Afonso