quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Natal

Às vezes,
Na frieza dos momentos,
O fundo do desnorte e da pequenez
Aferrolha-nos
Na aspereza da indiferença,
E afoga-nos nas navalhas afiadas dos silêncios.

Mas, e porque os ventos também dormem
E as noites desvanecem nas clarezas das manhãs,
Abramos a vontade ao badalar repetido dos sinos,
Quando, nas noites mais frias,
Nos servem as certezas
De que foi em Dezembro
Que se fez o Natal.

Crentes nos passos duma estrela
E aquecidos pelos afagos simples dum curral,
Sigamos o rumo certo dos reis magos
E espalhemos,
Por entre as palhas secas da discórdia,
As verdades puras desse amor
Que se ergueu das lonjuras santas de Belém.

domingo, 21 de novembro de 2010

Uma Gota para a Vida

Uma Gota para a Vida

A tarde estava acinzentada e a chuva mostrava-se de vez em quando. Dos lados do rio Ferro erguia-se uma leve neblina, entrecurtada aqui e ali por uma folha esquecida e gasta que, sem forças, se deixava arrastar para o seu fim. Da cheminé da casa do meu vizinho, libertava-se um fumo esbranquiçado, e do meu quintalejo de bairro, o burburinho de duas avezitas, entretidas a debicar um diospiro mais maduro, mostrava-me que não é vergonha nenhuma matar a fome com o que é dos outros.
Depois de ter espalhado a minha atenção pelos espaços em redor e absorver os instantes que se me ofereceram, meti pés ao caminho e dirigi-me para a Escola Secundária de Fafe, onde se desenvolvia uma ocorrência do tamanho do mundo. Fazia-se a recolha de sangue no sentido de se apurar uma eventual compatibilidade de medula para o nosso aluno de 11ºAno e atleta dos Juvenis da Associação Desportiva de Fafe, Alberto Jorge, que precisa urgentemente de um transplante.
Como é difícil entender certos obstáculos que insistem em mostrar-se no início de algumas caminhadas!
A iniciativa promovida pela Escola Secundária de Fafe, e pelo Centro de Hispocompatibilidade do Norte revestia-se dum interesse sem limites e ia de encontro de dois vectores importantíssimos e que enriquecem a existência humana: a solidariedade e o amor.
Apenas uma mágoa se sobrepunha a esse meu querer estar presente nesse Domingo, no meu local de trabalho. Os meus quarenta e oito não permitiam que pudesse ofertar uma gota do meu sangue para, eventualmente, ajudar o nosso aluno a erguer o seu olhar na direcção do sol. Paciência! Se os conhecimentos médicos assim o determinam, não pode o nosso desejo inverter a situação. Mas esse facto de circunstância não me coibiu de estar presente nessa recolha de sangue e comprovar, com os olhos que Deus me deu, como as gentes de Fafe são possuidoras dum coração e duma vontade de ajudar maiores do que a imensidade do mar.
Quem passa, normalmente, aos domingos pela Escola Secundária e desvia o seu olhar para o que se passa entre muros, apenas encontra silêncios ou o esvoaçar das aves ou algumas eventualidades provocadas pelos devaneios do vento. Mas nesse Domingo de 14 de Novembro tudo foi diferente.
Por volta das quinze horas, altura em que entrei na área envolvente da escola, o céu ainda insistia em vestir-se dum acinzentado vivo, pormenor que contrastava com a claridade que advinha do polivalente, donde, num entrar e sair continuado de pessoas, se soltavam sorrisos e insistentes desejos de ser útil e ajudar.
Já dentro do polivalente da escola, vi todo aquele espaço repleto de gente, cada um dispunha-se consoante o momento, mas todos eles com um ar de dever a cumprir. Não vi caras tristes nem sorrisos sem nexo. Bem pelo contrário. Encarei confiança nos rostos e certezas nos gestos. Por lá encontrei pessoas de todas as classes sociais e de todas as fachas etárias. Também colhi algumas desilusões justificadas daqueles, que por um motivo ou outro, e tal qual como eu, não podiam ser dadores. Como foi o caso do Francisco, um aluno do nono ano, que se resignou aos seus quinze anos, com um dúzia de palavras, que escutei claramente:
- Fica para a próxima, pois, infelizmente, estas doenças nunca deixam de nos atrapalhar.
Como estava certo o Francisco! Esta vida nem sempre nos mostra a sua melhor face. Até parece que quer testar as nossas resistências. Mas, e apesar da nossa sina, não podemos deixarmo-nos levar pelas enxurradas e ventos contrários. O importante, no meio disto tudo, é olhar em frente e acreditar que a fé move montanhas e que a vontade e a esperança podem mostrar-nos o que mora para além do indefinido.
Acredito, e porque Deus existe, que o olhar carente da mãe do nosso aluno, que por ali se entrelaçava em busca de firmezas, pode gravar na sua intimidade que o Alberto irá ficar bom e seguir em frente, rumo a um futuro merecido. Não nos podemos que os anjos também habitam a terra.
Durante todo o tempo em que estive no Polivalente constatei como a força de ajudar faz bem e nos enriquece interiormente. Neste país assolado por uma crise agarradiça que teima em soterrar-nos sob o empoeirado da nossa pequenez, este imenso gesto de solidariedade e de amor em torno do Alberto veio mostrar que os bons espíritos ainda vogam em nosso redor. Jamais o descalabro das nossas finanças públicas ou incompetência dos nossos políticos estorvarão os passos dos que querem dar as mãos e partilhar.
Como é bom acreditar nos gestos que nos cercam e nas forças que nos movem!
Para ti, Alberto Jorge, dirijo este meu testemunho. Para ti, solto uma gota da seiva que me percorre a alma, para que a força da vida volte a sorrir dentro do teu querer.
Às veze,s são as adversidades da vida que nos ensinam a olhar mais além…
Carlos Afonso

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Essa nova Índia por achar.

Nasci num país repleto de sonhos de mar,
Gerados em almas da cor das manhãs
E presos à imensidade exacta dos séculos…

Ai… se as aves me emprestassem o seu esvoaçar sem fim
E a cor verde da esperança me cobrisse com o seu manto,
Tecido por mãos que fizeram os muros inquebráveis da história!

Escutem! ... Parece que ouvi gritos ávidos de risos e estrelas…
Será a voz do vento a bater nas velas claras das caravelas?

Não. Os caminhos percorridos por espíritos destruidores de medos
E de névoas sem rosto
Não rompem os portais do tempo…
Só a teimosia dos quereres, iguais aos de Vieira, Pessoa e Camões,
Podem acordar os fazedores da história
E apunhalarem a mesquinhez deste agora sem luz,
Estampado nos nossos olhos parados,
Avivando, de novo, a chama que jaz fria dentro dos corações.

Basta. A noite não pode continuar a crestar o brilho das madrugadas,
Indiferente a um passado repleto de heróis…

Ó Infante sem medo, ó Gama imortal, ó Pedro Álvares Cabral,
Não deixeis roubar as raízes pátrias que engrandecestes…
Firmes como a vontade que vos ata ao leme,
Erguei de novo a espada do império
E apontai no mapa que já foi nosso
Essa nova Índia por achar.
Carlos Afonso

Entre a vida e a morte

Nasce-se de ventres prenhes de esperança,
Donde a clareza sedenta de futuro
Se ergue por entre choros de Vida…

Depois…
Cresce-se ao sabor dos dias,
Toca-se em cristais de sonho,
Beijam-se luares claros,
Dorme-se no perfume dos lírios
Apontam-se certezas,
Colhem-se encruzilhadas,
Libertam-se passos definidos,
Erguem-se castelos de areia,
Atiram-se pedradas cinzentas,
Ouvem-se palavras sinceras,
Roubam-se momentos inocentes,
Afagam-se pores-do-sol sem volta,
Dizem-se verdades escondidas,
Semeiam-se searas ao amanhecer,
Sobem-se escadas incertas,
Comem-se frutos amargos,
Constroem-se noites sem estrelas,
Oferecem-se rosas sem espinhos,
Mergulha-se em rios parados,
Tropeça-se em caminhos de enganos
E …
Basta.

Acabou-se o tempo.
As portas cerraram-se,
O horizonte escondeu-se no ocaso,
As aves perderam-se na escuridão,
E o silêncio…
Ergueu-se por entre choros de Morte.

Um beijo no rosto

Nasci num país farto em memórias e cores de mar,
Destruidor de Adamastores e de medos sem história.
Como era vasta a vontade desse passado de horizontes!

Hoje, na alma do meu país, perfumada pelas verdades de Abril,
Esvoaçam gaivotas por entre trigais de esperança e céus de névoa,
Assentes num florir por chegar…

E amanhã?
Serão os rios capazes de mergulhar nas certezas dos seus ocasos?

Eu quero seguir por caminhos sérios,
Onde a apatia das curvas não esconda o encanto do sol
E a teimosia dos ventos não apague a verdade dos destinos.

Eu quero aprender a manobrar a imprecisão dos meus passos
E escutar o ensinamento conciso dos livros.

Eu quero que a escola me aponte a plenitude,
O futuro me deseje
E os sonhos dos poetas me movam…

Eu quero que mãos calejadas pelo tempo me mostrem a sua força
E me puxem para cima…

Escutem.
Não me façam esperar.
Emprestem-me firmezas.
Dêem-me respostas com sentido.

Como seria bom crescer por entre madrugadas
Que sabem sentir o acordar dos risos,
Tocar na clareza dos olhares
E dar um beijo no rosto!

C. A.

domingo, 7 de novembro de 2010

O mistério da Praça 25 de Abril

Como faço quase todos os dias, nessa sexta-feira de 22 de Outubro tomei o meu café na pastelaria Peixoto, um espaço agradável e familiar, situado a pouco mais de cinquenta metros de minha casa, ao mesmo tempo que ia pousando a minha atenção no televisor que se segurava impávido e sereno à parede, bem em frente aos meus olhos. Da novela que estava a ser transmitida, nada adveio que me preenchesse o interior, situação que não se repetiu, quando peguei num jornal de Fafe, que entretanto me fora entregue por um vizinho de mesa, e li uma notícia do que aconteceu há mais de um século, mas que não estava desactualizada. Assinada por um amigo que conheço, a mesma reportava-se a uma visita do nosso rei Dom Carlos I a Fafe, em 1906, extraída do Jornal Povo de Fafe de 1906, contando alguns pormenores da sua curta permanência nesta sala de visitas do Minho, sem esquecer o copo de água que o Sr. Dr. Florêncio Monteiro oferecera ao monarca.
É curioso como certos instantes, aparentemente pequenos, nos preenchem a vida e nos conduzem para realidades maiores!
Decidido a fintar a rotina dos dias, ignorei um compromisso para a tarde dessa sexta-feira e deixei-me conduzir por uma liberdade que me oferecia as ruas da cidade e os seus jardins. Subi a rua José Cardoso Vieira de Castro, deambulei ao sabor dos instantes e pouco tempo depois um banco de pedra da Praça 25 de Abril convidou-me a sentar, e eu aceitei.
Ao longe, uma neblina inesperada ofuscou o poente anunciado. Ao perto, a correria alegre de dois miúdos fez-me olhar um tempo sem volta. É engraçado! Os anos passam, os dias correm, mas certos gestos mantêm-se firmes na sua inocência, ávidos de nunca mudarem.
Sem que o esperasse, um barulho mais estridente dum automóvel antigo, provavelmente relíquia de museu, fez-me reparar no seu trabalhar ainda acertado, assim como na buzinadela com que o mesmo brindou os miúdos de há bocado, que não tiveram o cuidado de usar a passadeira, quando passavam de um lado da rua para o outro. Depois de perder o rasto do dito automóvel, que se dissipou no seu destino, voltei os olhos para os jardins que enfeitam este coração da cidade e por ali os deixei ficar.
A dada altura, e porque os momentos nem sempre são programados, um intenso reflexo, diferente dos que já tinha visto, chamou-me para um canteiro ainda florido, apesar de estarmos em pleno Outono. «O que será aquilo?» Questionei-me, instintivamente. Curioso, fiz um leve esforço, ergui-me, sorrateiramente, e descobri a origem de tão especial brilho. Era um copo. E pelo seu formato e qualidade, imediatamente comprovei que era de cristal e que já tinha um bom par de anos.
Sem me fazer rogado, peguei nele e sentei-me num banco de pedra, o mesmo onde estivera ainda há pouco. Olhei-o contra o sol e comecei a tentar perceber a origem de tão raro achado.
Estava eu nesta inquirição interior, quando na minha frente apareceu um colega de profissão e, sem mais, logo me questionou acerca do que estava a suceder à sua frente. Sem respostas conclusivas para dar, e depois de uma breve exposição, limitei-me a dar-lho para as mãos. Ele olhou, tornou a olhar e chegou à conclusão de que o acontecido devia ser divulgado e investigado, pois o dito copo era bastante antigo, talvez do princípio do século, e estas coisas não andam aos pontapés em jardins públicos. Bem! Nesse momento, o colega pousou o copo numa berma do banco de pedra, onde, agora, ambos nos sentávamos, e após mais alguns acrescentos, mudamos de conversa, pois a cidade e o mundo eram compostos de outras novidades. Palavra para aqui, palavra para acolá, vários temas foram abordados, um ou outro mexerico evidenciado, enquanto as horas lá iam seguindo o seu ritmo.
Ao olhar para o relógio, e eles foram feitos para isso, reparei que estava na hora de regressar a casa. Assim, e depois de uma primeira despedida, o meu colega de ocasião ainda me alertou para algo que eu já sabia e que estava relacionada com o mesmo jornal de Fafe que eu havia lido na Pastelaria Peixoto. Era a tal notícia da passagem do rei Dom Carlos I, há mais dum ano também por Fafe, assim como o pormenor do Sr. Dr. Florêncio Monteiro ter oferecido um copo de água ao monarca. Nesse momento, e quando a palavra copo veio à tona, os nossos olhos entrecruzaram-se, sendo de imediato, e tal qual uma pedrada certeira, dirigidos para o meu estranho achado e que ainda permanecia impávido e sereno sobre o banco de pedra. Em simultâneo, e mais parecendo um dueto afinado, devidamente contextualizado numa récita vespertina, umas simples palavras se soltaram da nossa estupefacção:
- Será o mesmo copo?
Do horizonte desprendeu-se o anoitecer e, no meu íntimo, escutei, claramente, a mesma buzina do automóvel antigo que há mais de uma hora havia chamado à razão aqueles dois miúdos que, num tom de irreverência, ignoraram a passadeira.
Carlos Afonso

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

El Rei Dom Sebastião regressou do meio dos cardos

Nessa sexta-feira de Outubro, a noite não estava para brincadeiras. A chuva caía forte, o vento varria tudo à sua passagem e uma neblina insistente associava-se à escuridade da noite, quase que impedindo que os persistentes candeeiros da rua, com o seu alumiar amarelado e gasto, dessem um ar da sua graça. Dos meus olhos, escondidos por detrás da vidraça do quarto, derivava uma curiosidade esforçada, procurando aqui e ali um ponto de referência que amenizasse um pouco aquele quadro desengraçado. Perdi o meu tempo.
Ainda antes de dormir, ou porque o arfar assustadiço do temporal que vinha lá de fora não dava tréguas, nem mesmo dentro do quarto, ou porque ainda não era hora de embarcar no sono merecido, um diálogo a dois puxou-me para outras certezas.
Depois de um breve desfiar de ocorrências da véspera, que tanto eu como a minha esposa trouxemos para aquele momento de aparente insónia, uma história, ou melhor, uma conversa que ela havia tido com uma colega nossa, na escola, nessa manhã, veio relembrar-me o que já há muito tempo sei. O país parece que não consegue desenvencilhar-se da corda que lhe aperta o fôlego, e um certo desnorte começa a embrenhar-se por entre o nosso acreditar. Não admira, por isso, que a nossa colega tenha dito à minha esposa, com uma voz algo atarantada e sem remédio, que, provavelmente, teria de despedir a empregada, porque o dinheiro do seu vencimento já não chegaria para esse encargo.
Já agora, sabem o porquê desta aflição toda? Eu conto, mas juro-vos que não vai apanhar ninguém de surpresa. O nosso governo, num gesto pouco original e sem provas dadas, desenterrou do meio da rispidez que cobre Portugal uma solução que irá, em princípio, perfumar este jardim à beira mar plantado. Isto é, decidiu aumentar aos impostos e subtrair aos ordenados, sem se esquecer, também, de cortar algumas regalias que apenas eram sentidas por alguns.
Ora bem! Esta jogada de mestre, no entender de quem a arquitectou, provavelmente, irá salvar o país. Espero bem que todos estes sacrifícios exigidos não acabem por encher alguns sacos errados e que as coisas continuem na mesma. Convém não esquecer que até o caminho mais íngreme tem sempre um ponto de chegada
Só um aparte. Como é que fica a situação da empregada da minha colega, no meio disto tudo? Quem é que irá zelar pelos suas obrigações e vontades, se a desgraçada tiver de ser despedida, para que a pátria se possa erguer do nevoeiro onde a mergulharam?
Coitada! A corda quebra-se sempre do lado do mais fraco. Ai vida, vida! Talvez um dia as coisas mudem e a água deixe de correr só porque o rio a leva.
Nessa noite de temporal e de algumas angústias à flor da pele, onde não faltou o relembrar de todo um rol de negatividades que têm vindo a afectar os portugueses, até os discursos sérios e preocupados dos nossos políticos vieram à tona.
Reconheço que esta conversa entre mim e a minha esposa, à partida, não seria a melhor solução para quem precisava de uma noite bem dormida, mas o que é que se havia de fazer? Às vezes, os assuntos nem sempre são os que mais nos convêm, mas o facto é que eles surgem.
Apesar de tudo, o sono sempre acabou por chegar, arrancando-me daquelas constatações nuas e cruas, e conduzindo-me para um sonho que me afastou da clareza do óbvio.
Das profundezas do meu dormir, vi emergir do fundo dum imenso mar de cor verde, repleto de cardos sem flor, uma nau com as velas desfraldadas, e onde se podia ver, no seu interior, um homem ainda jovem, que aparentava ser uma figura importante, talvez um rei. As suas mãos estavam presas ao leme e o seu olhar estendia-se pelo horizonte. De repente, duas gaivotas, vindas do nada, desceram a pique sobre a embarcação e poisaram nos ombros de tão estranho e altivo marinheiro e um vento suave começou a fazer-se sentir, enquanto uma névoa gélida envolveu os espaços. Quase de seguida, o ribombar dum trovão assustou as aves que, num repentino esvoaçar, mergulharam por entre os cardos e desapareceram. A névoa tornou-se, ainda, mais baça. Num gesto determinado, o tal homem despegou os olhos do horizonte, apontou numa direcção precisa e a nau começou a movimentar-se nesse mesmo sentido.
Numa força concertada, os cardos começaram a remexer-se, enrodilhando-se, por vezes, uns nos outros, como que querendo impedir que a nau seguisse o seu rumo. Não lhes valeu de nada, porque uma força maior guiava o querer daquele homem que continuava com o dedo apontado numa direcção precisa.
A dada altura, a névoa, como que num gesto de magia, dissipou-se e uns quantos relâmpagos começaram a cruzar tudo em redor. Como que vinda não sei de onde, uma voz estridente e firme começou a ouvir-se:

«Levando a bordo El-Rei Dom Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto, o pendão
Do Império,
A última nau, ao sol da esperança
Regressa às praias de Portugal,
Na ânsia de erguer da noite
Um povo com alma
E que quer voltar a ser grande.»

Num esvoaçar aflito, as gaivotas assomaram à tona da água, ergueram-se no ar e seguiram o balouçar determinado da nau, ladeando-a, numa postura que mais parecia a de uma guarda de honra.
Meu Deus! Nessa altura um só pensamento me surgiu: «Afinal o nosso fatídico rei, não morreu nos campos de batalha de Alcácer-Quibir! Isto quer dizer que os bruxos, os adivinhos e o nosso grande poeta, que escreveu o seu livro “… à beira mágoa”, sempre tiveram razão, quando diziam que ele havia de regressar numa manhã de nevoeiro, para salvar Portugal.»
Sem que a minha vontade o desejasse, uma música descontextualizada trouxe-me para a realidade do quarto, fazendo com que o sonho que me envolvia se desvanecesse. Era o previdente despertador.
Reparei nas horas, levantei-me, abri a persiana e olhei o exterior. Da chuva diluviana da noite, apenas o molhado da vegetação em redor o indiciava, porque o amanhecer azulado do céu dava a entender que o dia iria trazer outro esplendor.
Ainda absorto no que advinha do meu dormir, não deixei de reparar no que os olhos me traziam lá do fundo daquele horizonte que acabara de acordar: uma nuvem em forma de barco, ladeada de duas aves que, num movimente lento, se moviam na minha direcção.
Claro que, na altura, da minha cabeça só podiam ter discorrido aquelas palavras, e que ainda guardo no entendimento: «Que estranho! Será que é o que estou a pensar?
Talvez a empregada da minha colega esteja com sorte.»

Carlos Afonso

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Ser Professor…

Ser professor é crescer no meio de verdes prados que anseiam pelo sol de Maio!
Ser Professor é caminhar por montes e vales, onde a braveza dos momentos se mistura com os encantos da paisagem!
Ser professor é semear sonhos e estrelas em corações famintos e tenros!
Ser professor é ajudar a construir castelos, onde a areia é mais fina!
Ser professor é saber encontrar certezas onde reinam os silêncios!
Ser professor é palmilhar caminhos difíceis e ir ao encontro do sol!

Ser professor é ser pai, mãe, amigo, confidente, resistente, sonhador, actor, orientador, companheiro, lutador, conselheiro, sofredor, acrobata, pintor, escultor, doutor, músico, psicólogo, palhaço, fragmento, ciência, tolerância, acção, guia, rumo, névoa, luz…

Ser professor é dar, abrir, erguer, encarar, cuidar, amar, subir, sorrir, encontrar, resistir, viver…

Ser professor é ser gente.

Carlos Afonso

Um olhar diferente

Nessa tarde de Novembro, em plena Avenida 25 de Abril, bem no coração de Fafe, até os carros, os poucos que se davam ao trabalho de correr para o seu destino, pareciam mais cabisbaixos e soturnos. As pessoas, essas então, nem diziam sim nem não, apenas se deixavam levar por alguma conveniência, escondida bem no fundo das suas vontades.
Aqui para nós, e em tom de “mea culpa”, eu era um desses macambúzios que caminhava de mão dada com esta apatia geral. Mas, na verdade, nesta tarde acinzentada, até os jardins circundantes, e que noutras ocasiões têm dado tanto nas vistas pela sua perfumada beleza poética, se escondiam, agora, por detrás de um escorregadio e enfadonho nevoeiro, que envolvia todo aquele passar de horas.
Com as mãos escondidas dentro dos bolsos e os olhos à procura não sei do quê, os meus passos lá faziam o favor de me levar pelos passeios desta extensa avenida, que tem no seu nome, há mais de trinta anos, o rubro vivo da liberdade. E, apesar deste quadro sem muita graça, o meu pensamento, no momento em que esbarrou na abrangência dum espaço tão central de uma cidade de província, deixou-se levar por um leve devaneio, que acabaria por partilhá-lo com a minha disposição. Sentei-me num dos bancos de pedra, que por ali se dispunha, e errei no memorial desta terra, por entre ricos brasileiros, poetas caminhantes, viscondes, morgados, ajustes de contas, e muitos outros momentos da história deste burgo.
Nisto, e no instante em que ouvia, entusiasmado, o discurso de inauguração da chegada do comboio a Fafe, em 21 de Julho de 1907, um grito, aparentemente lúcido, devolveu-me ao meu tempo e a uma tarde que, afinal, e depois de todo um intróito que deixava muito a desejar, valeu a pena viver.
(- Ó Costinha, sai da minha frente, se não eu desfaço-te.)
De imediato, os meus olhos, guiados pela estridência do som, colaram-se num vulto que corria, de uma forma desconjuntada, em frente ao café Bar da Praça, na direcção do autor do grito, que, entretanto se esquivara por entre a indefinição da obscuridade da tarde.
Para quem não tem o costume de se entrecruzar por estes sítios, provavelmente, ainda não entendeu o que se passou. Mas esta ocorrência, e é com mágoa que o digo, até é bem comum por aqui. Na verdade, a provocação soletrada com malícia e atirada como uma pedra contra o Costinha, agora vou chamar-lhe assim, mas, mais tarde, convém que se diga Sr. Célio Costa, foi mais um dos muitos impropérios lamentáveis, de que este «homem de dom» é vítima. E, ainda antes de mudar de parágrafo para continuar a narrativa, apenas uma certeza em que acredito: é mais lúcido este nosso Costinha, que se move numa involuntária e rija inconsciência, que não o belisca como homem, do que aquele atirador de frases recheadas de uma injuriosa e douta malignidade, e que faz parte desta seita que contamina os carreiros do respeito humano.
Aquela figura de meã estatura, cabelo de um escuro debotado e com um rosto sumido e encardido, corria, assim, numa desorientação turvada, em direcção ao seu agressor, que, entretanto se sumira. Os seus olhos tingidos, de um castanho inconsciente, giravam, estonteados, em torno da sua parca parecença e, que de repente, estacaram na minha atenção, fazendo com que a sua correria parasse. Após algum tempo, deixou de me focar e mirou um relógio, que se escondia na manga de um casaco comprido azulado, demorando-se, aí, alguns segundos. ( Que horas seriam no seu bendito relógio?) Depois, ao de leve, ergueu o seu olhar, agora mais calmo, voltou-o para mim e sorriu, ao mesmo tempo que proferia um atabalhoado murmúrio, que não percebi. Sem mais, fixou, novamente, o dito relógio, que continuava escondido no tal casaco cumprido azulado, e desapareceu no acinzentado da tarde.
Enlevado com o que acabara de presenciar, olhei o meu relógio, que não estava escondido debaixo do meu casaco, que não era cumprido nem azulado, e reparei que as horas tinham passado. E, após um leve reflectir, fixei o espaço por onde o Sr. Célio Costa se havia sumido e sorri também.
Ao longe, o esvoaçar de uma ave mostrou-me que o nevoeiro se esquivara e que as tardes mais enfadonhas não duram eternamente.

Carlos Afonso, 14/11/2009

domingo, 10 de outubro de 2010

O homem de Moscovo

Em todas as grandes cidades do mundo, muitas vidas sem rosto divagam pelas ruas e nem sempre decoram estas metrópoles com as melhores cores. Pedintes, bêbados, velhos sem rumo, mulheres que se vendem para não morrer à fome, entre outras manchas pouco amadas, que não se coadunam com os parâmetros oficiais, e sujam as fotografias, quando a curiosidade dos turistas não lhes é indiferente. Dimitri faz parte deste grupo de pessoas, apelidadas, por vezes, de marginais.
Nessa tarde de Julho de 2010, Moscovo abrasava com os seus trinta e oito graus, e com algum fumo à mistura, fruto dos muitos incêndios que a afligiam, para aflição dos muitos transeuntes que, por variadas razões, tinham de palmilhar as suas ruas e longas avenidas.
Para um português oriundo do norte de Portugal, que, por esta altura, visitava esta imensa urbe, na companhia de mais algumas dezenas de compatriotas, sedentos de descobrir a realidade russa, tudo o que se deparava aos seus olhos era motivo de admiração e reparo, principalmente, porque pisavam terras que já sentiram os mandos e desmandos de Ivan, o Terrível; Pedro, o Grande; Lenine; Estaline; Brejnev; entre outros.
Moscovo é a capital e a maior cidade da Rússia e foi fundada em 1147. É também a maior área metropolitana da Europa e está entre as maiores áreas urbanas do mundo. Esta megacidade, com mais de dez milhões de habitantes é um grande centro político, económico, cultural, religioso, financeiro, educacional e de transporte, uma cidade global.
E porque as sombras nem sempre são reflexo de bem-estar, num dia de muito calor, o que se poderá dizer daquele homem vestido de um negro sujo, que, quase sem se mexer, ali se deixava estar, encostado a um dos muros da imponente Praça Vermelha, um dos lugares mais emblemáticos de Moscovo, completamente mergulhado pela quentura dum sol devorador, que lhe cobria todo o corpo.
Este imponente sítio foi idealizado com a finalidade de existir um espaço livre junto ao Kremlin para evitar os incêndios, tão habituais na época. Toda a sua grandeza encheu-nos os olhos, e não era para menos, já que os seus 74.831 metros quadrados de superfície, 695 metros de comprimento e 130 metros de largura não eram para brincadeiras.
Sem sombra de dúvida que aquele sítio era o melhor para usufruir de alguns trocados, dados pelos turistas, que por pena, ou porque simpatizavam com um sorriso diferente que se escapava duns lábios, quase escondidos por uma barba avermelhada, ali deixavam cair, numa lata quase tão velha como a calçada que servia de assento a Dimitri.
Apenas um pormenor: na sua mão esquerda arrumava-se uma pequena cruz ortodoxa, feita dum material dourado resplandecente, que não me passou despercebida, mas que o homem escondeu num dos bolsos largos da sua túnica preta, como que receando que lha roubasse. Estranho gesto o seu!
Porque era um desses turistas que por ali se passeava, e porque esse homem me despertara a curiosidade, aproximei-me, meti as mãos ao bolso e tirei alguns rublos, que, sem receio, deslizaram até à dita caixa de lata. Quase ao mesmo tempo em que as moedas se enrodilhavam nas restantes, e que já eram muitas, um «obrigado» bateu-me nos ouvidos, arremessado pelos lábios de Dimitri.
O quê!? Questionei-me, algo desorientado, ao mesmo tempo que assentava os olhos nessa figura vestida de negro, que, em princípio, não devia ter proferido aquela simples palavra pertencente à língua de Camões, como que à espera de algumas explicações. E elas não tardaram.
- Estão a gostar de Moscovo?
- Mas, você fala português? – perguntei-lhe, estupefacto.
- Mais ou menos. Há alguns anos, durante a guerra do Afeganistão, conheci dois empresários brasileiros, pois, durante três meses, fiz parte dum grupo de soldados que olhava pela sua segurança, e aprendi a vossa língua. Como deve imaginar, naquela altura, passávamos algumas horas e até dias, dentro de casa à espera que existisse segurança para nos movimentarmos dentro de Kabul. Muitas vezes estávamos horas a fio a tentar conversar. Eles a aprofundarem o russo e eu a tentar perceber a sua língua.
- Mas, nós somos portugueses.
- Eu sei. Mal o vosso grupo entrou na Praça Vermelha, imediatamente reparei na bandeira que aquele rapaz de calções azuis trazia nas mãos.
Claro que o rapaz de calções azuis era o Pedro, um companheiro especial, que tem por hábito trazer consigo uma bandeira nacional, sempre que este grupo de portugueses se aventura, durante o Verão, e já alguns anos a esta parte, a viajar por este mundo de Deus.
A nossa conversa prolongou-se por mais de uma hora, tempo mais que suficiente para saber que depois da guerra foi guia em Moscovo, durante três anos, acompanhando grupos de turistas portugueses e brasileiros, mas que um acidente o havia atirado para o desemprego, e que a partir dessa altura o que lhe valia era aquele cantinho da Praça Vermelha para lhe dar o sustento. Também me segredou, e porque era um fascinado pelas grandes aventuras marítimas, que um dia gostava de vir a Portugal, para poder ver com os seus próprios olhos o lugar donde Vasco da Gama partira para a sua longa viagem para a Índia.
A dada altura, e no momento em que os sinos da Catedral de São Basílio, mandada construir pelo Zar Iván, o Terrível, ou porque alguma necessidade ou compromisso o obrigaram a levantar-se e seguir o seu rumo, ergueu-se a custo, pegou na sua caixa de lata, que até estava bem composta, limpou meia dúzia de lágrimas que teimavam em molhar-lhe o rosto e virou-me as costas. Depois, e como quem se despede de alguém que se estima, Dimitri, olhou-me fixamente, e disse:
- Até breve, meu amigo.
- Até breve - respondi-lhe eu, no mesmo instante em que as minhas mãos tentaram tocar nas dele. Já não foram a tempo.
É curioso! Não sei porquê, mas no instante em que ele se afastava, lembrei-me dum pequeno texto que li num prospecto relativo a este majestoso monumento, um ex-líbris arquitectónico de Moscovo, e que fazia referência a uma lenda que ajuda a compor na perfeição o cognome de quem o mandara construir. Parece que Ivan ficou tão fascinado com esta catedral que não quis que se fizesse outra igual. Para que isso acontecesse, e porque o seu ímpeto maquiavélico lho ditara, mandou furar os olhos do arquitecto que a projectara.
Num coxear que metia impressão, Dimitri contornou a entrada que dava acesso a tão distinta praça e desapareceu. Ao longe ouviu-se a sirene abafada, vinda dos lados do rio Moscou, e que me estremeceu o peito. Quase em frente, o Mausoleú de Lenin manteve-se indiferente e num silêncio absoluto, reflexo de um passado quase esquecido e com poucos seguidores.
No dia seguinte, ainda arranjei algum tempo para voltar à Praça Vermelha e procurei o nosso amigo da véspera. Queria conversar mais um pouco e saber outros pormenores, aqueles que ficam sempre em aberto. Mas foi em vão. No seu lugar, encostado a um dos muros que cercam a Praça Vermelha, dormitava, agora, uma velhota vestida de azul, cor de mar. À sua frente estendia-se uma toalha, também ela azul, sarapintada de tons brancos, e que servia de base a uma dúzia de pequenos barcos feitos de conchas, para turistas comprarem. Por coincidência ou não, a cruz ortodoxa, feita dum material dourado resplandecente, igual à que vira nas mãos de Dimitri, ocupava o centro da toalha. O que estava ela ali a fazer?
Como que levado por um pressentimento repentino e mais que justificado, apenas uma ideia me veio à cabeça. Se calhar o nosso homem, arranjou vaga num navio qualquer e fez a sua última viagem. Talvez tenha ido ver com os seus próprios olhos o lugar donde Vasco da Gama partira para a Índia.
«Às vezes, não são os caminhos traçados pelos homens que nos levam às metas tão ansiadas. São os desejos, aqueles que nos remexem a vontade, que, e tal qual o esvoaçar natural do vento mais forte, nos agarram nas mãos e nos arremessam contra a infinitude do nosso destino.»
Carlos Afonso

Em terras de Trás – os – Montes

Em terras de Trás-os-Montes,
Nasceram das raízes das figueiras
Histórias de certos homens
Que nas veias têm fontes,
Nos olhos agrestes montes
E nas mãos, muitas palavras,
Arrancadas das pedreiras
Que na vida se formaram.

Em terras de Trás-os-Montes,
Nasceram da correnteza das ribeiras
Histórias de certos homens
Que nas dores têm sangue,
Nas alegrias, quentes verões
E nos sonhos, rios de mosto
Bebidos em madrugadas
Que na esperança desaguaram.

Em terras de Trás-os-Montes,
Nasceram da força dos ventos
Histórias de Certos homens
Que no corpo têm o verde agarradiço das estevas,
Nos passos, a ânsia dos pardais
E na alma, a limpidez do azeite,
Colhida em Invernos
Que na terra crestada se afogaram.

Em Terras de Trás-os-Montes
Nasceram da rudeza dos carrascos
Histórias de certos homens
Que no peito têm o voo do tempo,
Na boca, os ais dos fraguedos
E no rosto, a fartura das sementes,
Enterradas em tardes de névoa
Que em doces flores se transformaram.

Carlos Afonso

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Quem sou eu?

Chamo-me Carlos Alberto Ferreira Afonso, nasci em Parada, Alfândega da Fé, licenciei-me em Humanidades e sou professor de Português e Literatura Portuguesa na Escola Secundária de Fafe.