
«Era uma vez um grande rio que desaguava todas as horas num mar imenso. Das muitas belezas de que esse rio se gabava sempre que alguém ou alguma coisa o questionava acerca do seu papel como alimentador de mares, ele respondia numa voz húmida e clara:
- Tenho um grande caudal. As minhas margens são acertadas. Os navios que navegam nas minhas margens são belos e luxuosos. Nas minhas entranhas passeiam-se saborosos peixes de prata. E por aí fora… Nunca, e em nenhuma ocasião, esse rio se orgulhou da singela e pura nascente que lhe dava a vida ou dos seus pequenos e anónimos afluentes.
Um dia, Deus, já farto de tanta gabarrice e orgulhos egoístas, decidiu secar-lhe a nascente e desviar-lhe os afluentes para outros sítios.
Coitado do grande rio! Morreu à sede e caiu no esquecimento.»
Amigos leitores, a mensagem que esta pequena história nos oferece, enquadra-se perfeitamente na vivência dos homens, caso estes se esqueçam de olhar na direcção de onde vieram.
O que será de um país dito desenvolvido, quase todo online, rodeado de muito alcatrão, repleto de mentes praticamente brilhantes, frangos congelados e outros enfeites importados directamente da China, se ignora as suas raízes? De certeza que agoniza e apodrece, enrodilhado em cheiros de plástico, pois até o esterco perderá o seu perfume.
O verdadeiro país é aquele que trepa as escadas do futuro sem se desprender das nascentes que o trouxeram ao mundo. O verdadeiro país é aquele que ainda sabe que a broa autêntica não prescinde da farinha milha e o arroz de feijão combina, na perfeição, com um bom naco de carne de porco cozida, daquela entremeada e previamente salgada.
Para quem como eu gosta de se intrometer com o que as nossas memórias ainda guardam, de vez em quando consegue surpreender-se com momentos que nos fartam a existência. Não admira, por isso, caro leitor, que o meu fim-de-semana de 8 e 9 de outubro tenha sido de excelência. Eu explico…
No dia 8, foi um regalo enquadrar-me com os “Leões do Ferro” e participar na sua tradicional “Feira de Outono”. Que bela recriação dos tempos idos! Muito negócio se fez por aqui. Confesso que gostei de olhar, tocar e saborear todo este evento. Ainda bem que esta gente tem memória e engenho!
Se o sábado foi de se lhe tirar o chapéu, meus amigos, o dia 9 também foi impar. Antes de mais, quero agradecer às minhas amigas Etelvina e Fátima pela bela ideia de me convencerem a participar na “Rota da Desfolhada” , lá para os lados de Várzea Cova e Bastelo.
O dia esteve magnífico! O percurso pedestre emprestou-me o cheiro dos pauis, a frescura dos carvalhais, os murmúrios dos ribeiros, as conversas repletas de conteúdo, a música das concertinas, a cor das últimas flores e a fachada rústica do casario! O merendeiro do pessoal de Estorãos encheu-me a curiosidade e não só! A desfolhada foi autêntica e intensa! Os cantares estiveram afinados! As encenações e as decorações estiveram um miminho! A organização a cargo dos Restauradores da Granja, do Grupo de Folclore da Fafe e da Associação Cultural de Várzea Cova não falhou em nada! As vacas vieram engalanadas! Os participantes sorriram a sério! Um dos malhos partiu-se, quando uma senhora fina não lhe deu o melhor uso, mas não aleijou ninguém! A nogueira que estava bem por cima da minha cabeça estava carregadinha de nozes! O baile esteve animado! Mas, o fim da tarde chegou a horas, e o que era bom acabou-se…
Antes de fechar esta minha crónica, pois a minha noite de recordações já vai longa, só vos quero contar mais ma coisinha. Juro que vale a pena. Não querem vocês saber que, a dada altura, uma bela rapariga, que por sinal já fora minha aluna à noite, abeirou-se do meu entusiasmo e disse:
- Professor, quero apresentar-lhe a minha prima. Ela aprecia muito a poesia e gostaria de lhe declamar um poema.
Uma forte emoção fez-me engolir a última gota de um verde branco que ainda se agarrava à minha garganta. Bem ao meu lado, um imponente espigueiro apercebeu-se da minha admiração e estendeu-me um pouco mais da sua sombra. Sem mais, escutei…
A menina tinha apenas cinco anos, ainda não andava na escola primária, chamava-se Inês Alves e declamou um e depois outro poema de uma maneira tão acertada e ingénua, como eu nunca tinha escutado! Os seus olhos eram vivos como a aragem que costuma varrer aqueles sítios! Os seus cabelos eram da cor do sol! O seu sorriso era lindo! A sua atitude era traquina e florida, e um dos poemas era de Fernando Pessoa!
Meu povo, minha alma, como é maravilhoso saborear, de vez em quando, a rudeza das fragas, a pureza das nascentes e a verdade de uma criança!
Desculpem, mas as lágrimas não me deixam continuar…
Carlos Afonso
Sem comentários!!!
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