domingo, 26 de janeiro de 2014

UMA TARDE DE DOMINGO EM MIRANDELA



   (Das minhas lágrimas ao sorriso de um homem velho…)

                Os domingos, às vezes, mostram-nos que as lágrimas e os sorrisos são irmãos gémeos, apesar das circunstâncias que os motivam serem diversas e nem sempre justas.
                Neste domingo de janeiro, dia 26, desloquei-me com a família a Mirandela com o objetivo de visitar uma doente muito querida, que se encontra internada no hospital desta cidade transmontana. A doente de que falo, caro leitor, é a minha madrinha, a Dona Antoninha, uma das mulheres que mais amo neste mundo e a maior doceira de Trás-os-Montes.
Vítima de um derrame cerebral, esta idosa senhora de 89 anos, a minha querida madrinha, recebeu-me numa indiferença não costumeira, apenas porque a maldita doença que a colheu assim lho permitiu. Beijei-a na testa, acariciei a sua mão esquerda com a minha mão direita, e apenas recebi, em troca, um abrir de olhos distante.
Os meus olhos choraram! O meu coração tremeu! Mas a razão, na lucidez que a define, puxou-me o entendimento e pediu-me contenção e uma postura de homem. Querendo fazer figura de forte, tentei obedecer, mas o meu sofrimento queria chorar mais!
 Durante o tempo que estive naquele quarto abafado de hospital, e sempre que olhava a quietude parada e pálida da minha amada madrinha, a minha memória de adulto descontrolava-se de vez em quando e saltava para um passado de muitos anos, e algumas recordações de renome vieram à tona da minha existência. De todas as recordações que se abeiraram de mim, a que me deu mais saudades, no meio da minha angústia, foi aquela em que a minha madrinha, no tempo em que tinha apenas nove anos, me fizera um pedido bem singular.
- Meu filho, queria tanto que fosses padre! Depois eu ia contigo… Sabes, meu filho, amanhã vais comigo arranjar o altar da igreja e…
Não aguentei mais! O tempo voltou aos minutos do domingo de 2013 e as lágrimas voltaram em força. Para que ninguém notasse, fixei a janela e deixei-me levar pelo voo de um pássaro, que não consegui determinar a espécie… Seria um estorninho?
Antes de sair do quarto onde minha madrinha jaz quase sem vida, pois a hora da visita tinha terminado, ainda tive tempo de lhe dar um outro beijo na testa. Nesta despedida já não chorei, mas disse-lhe baixinho:
- Madrinha, tens a pele tão macia… Amanhã eu volto… Sabes, Madrinha, não foi o Duarte que comeu a marmelada, fui eu… Desculpa só dizer-te a verdade, hoje, passados tantos anos, mas…
Como os meus filhos quisessem merendar, mal saímos do hospital, dirigimo-nos para o centro da cidade, calcorreando a ponte velha. O rio Tua dormia no seu leito, indiferente a tudo. No céu, o sol mostrava-se envergonhado. Num passeio, encostada à grade da ponte, uma rapariga olhava para um livro bem aberto. Umas tantas pessoas erravam pelo tabuleiro já gasto. E, sem aviso prévio, do outro lado da velha ponte começou a sentir-se um alarido musical crescente. Eu já sabia a causa daquele barulho todo. Na televisão que estava colada à parede da portaria do hospital, reparei que mostrava um programa televisivo que estava a acontecer em direto do centro de Mirandela. Era o «Portugal em festa» da SIC.
Os meus filhos e a minha mulher entraram numa pastelaria. Eu disse que não tinha fome e que ia dar uma volta. Caminhei na direção do local onde estava a acontecer o programa de televisão.
No jardim, as oliveiras já não tinham o seu fruto de eleição, as lojas tradicionais enchiam-se de «Alheiras de Mirandela», «Azeite de Mirandela», «Pão de Mirandela», «Folar de Mirandela». Não sei porquê, lembrei-me de um pormenor bem evidente em Fafe. Eu nunca vi nas ementas expostas nos restaurantes de Fafe a frase que aí devia estar - «Vitela assada à moda de Fafe». Desculpe, amigo leitor, este leve desabafo.
Bem na confusão do «Portugal em festa», reparei em muita coisa. As crianças dançavam! As mulheres estavam felizes! O apresentador da SIC José Figueiras vestia calças vermelhas. O cantor Toy limpava o rosto com um lenço e…
A dada altura, e quando já decidira regressar e ver se os meus filhos e mulher já tinham lanchado, e podermos, assim, voltar para Fafe, um homem velho, abeirou-se de mim, cumprimentou-me e, com um sorriso do tamanho do mundo, disse-me:
- Sorria, amigo. Olhe que festa bonita! As tristezas não pagam dívidas. Anime-se, homem. Quer ir beber um copo comigo?
Não fui beber um copo com o velho homem, mas, muito a custo, sempre consegui recompor a alma, apagar a leve angústia que insistia em molhar-me o rosto e SORRIR.

Carlos Afonso




quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

E O VENTO VOLTOU E O SONHO MUDOU...





         Na vida de muitas histórias, encontramos certas palavras que, e dadas certas circunstâncias, são obrigadas a mudar de lugar na frase, para que o enredo das mesmas possa evoluir e chegar a um epílogo qualquer, ainda que nem sempre o mais acertado, subjetivamente falando, claro está.
            Ora bem! Este meu parágrafo inicial tem as letras necessárias para um qualquer introito, de uma qualquer história, inspirada num qualquer contexto, ocorrido num dia qualquer, no preciso instante em que o vento nos bate de frente e nos obriga a redefinir o caminho a seguir.


C.A

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O SORRISO DO REI…



“(…)as soluções, às vezes, estão bem perto de nós. Basta, apenas, entender a verdade que nos cerca: as raízes de um povo; a naturalidade das paisagens (…)”


Neste mundo de Deus, e de todos os que o habitam, há muitos enredos de histórias que nos dão interessantes certezas. E esta asserção é tão exata que não é preciso pedir às pedras que falem, aos rios que voem ou às flores que ignorem a primavera. O elementar é saber descortinar as soluções acertadas, a partir de indícios ou sementes que nos lançam para as mãos. Não admira, por isso, que eu queira partilhar convosco o que se me desapegou da inspiração:
«Era uma vez um rei que morava numa terra já quase sem nome, onde os seus súbditos já quase não sonhavam e onde as estações do ano já não sabiam o momento exato para se darem ao desfrute. Não era de estranhar que o monarca, que já governara esta terra no tempo das vacas gordas, agora, nestes acinzentados momentos, não tivesse paciência para escutar os conselhos inconsequentes dos seus conselheiros ou esperar, em vão, que as suas vinhas voltassem a dar suculentos cachos e os seus trigais, muito cereal. Às vezes, quase que lhe apetecia despojar-se da sua realeza e afogar-se na desistência, mas, quando voltava a si, apertava a mão direita de encontro à espada, que já tinha sido do seu avô, e só pensava em queimar a praga peganhenta, que o apertava, e voltar a erguer o seu país.
Um dia, e depois de muito penar no meio de tanta apatia existencial, decidiu por pernas ao caminho e descobrir, por sua própria conta, um final feliz para os seus desígnios. Andou, andou, mas o naco de pão, que levava na algibeira, já não tinha sabor. Andou, andou, mas o cavalo, que o transportava rapidamente, já não tinha mais força. Andou, andou, mas a lua, que lhe emprestava a luz, cegara de vez. Andou, andou, mas o sentido dos caminhos, que lhe apontava a meta, esquecera o rumo. Pobre rei!
Já gasto pela desesperança, ordenou aos seus propósitos que, se não encontrasse um fim desejável para tão insustentável situação, deixaria, e agora sim, de ser o que era e não mais se importaria com o destino dos seus súbditos ou as insígnias do seu brasão. E ponto final.
Passada a noite, e depois a manhã, e no preciso instante em que passava entre um outeiro e um vale, o rei reparou num pequeno espaço, torneado por um insignificante muro de pedra, e que tinha, em todo o seu interior, um verdadeiro paraíso. Com os olhos, que a terra lhe há de comer, enxergou, encostado a uma cerejeira florida, um velho homem a dormir, com um corroído livro no regaço. Em redor do ancião, mas dentro do dito quintal, viu ainda outras árvores repletas de cor e vida, pedaços de terreno com fartos legumes de época, um pequeno poço de água cintilante, algumas alfaias agrícolas, um gato estendido ao sol e muita passarada pousada nos ramos a chilrear. Era, de facto, um ambiente repousante e acolhedor, que contrastava, claramente, com a sua inquietude de monarca aflito.
Num ápice, sua senhoria bateu as palmas para ver se chamava a atenção do velho, mas nada. Repetiu, tornou a repetir o jeito e só lá para quinta vez é que obteve resposta. Perseverante nas suas palavras quis logo ali saber a razão de tamanha acalmia, pureza e fartura. Calmoso, em toda a sua compostura, o velho homem, dirigiu-lhe a atenção, sorriu, abriu o livro, leu qualquer coisa, fechou-o e, sem se levantar, sempre adiantou:
- Desculpe-me a cortesia, mas estava a dormir e os meus ouvidos escutavam outras certezas.
Ainda pertinente, o rei logo contrapôs:
- Mas tu não sabes que os habitantes deste grande reino, de que eu sou o suserano, andam tristes e sem sonhos? E só tu, com essa atitude, pareces viver num mudo à parte? Qual é a razão do seu sorriso?
- Desculpe-me, real senhor, se vos ofendi. Eu moro aqui perto, este é o meu quintal, e o meu sorriso é verdadeiro. Ele vem da felicidade que me mora na alma, dos sentimentos que retiro dos livros que leio, da grandeza a que se apegam as minhas memórias, do perfume que se solta das flores, do canto que oiço das aves, da clareza que me oferece o sol, e de eu continuar a poder dormir as minhas sestas – esclareceu o velho.
O rei, agora com uma voz mais humilde, quase lhe implorou:
- Como já reparaste, eu ando preocupado com o mal que me cerca, e não encontro soluções para o meu reino. Gostaria que me explicasses melhor o que acabaste de dizer.
Perante a insistência do rei, o velho ergueu-se com agilidade, convidou-o a entrar no quintal e pediu-lhe que o acompanhasse até ao poço. Depois, pediu à passarada que chilreasse mais baixo, encheu uma pequena vasilha de água fresca e ofereceu-lha. De seguida, acrescentou:
- Sua majestade, farei o que me pedis, mas antes quero que proveis desta água e depois gostaria que sentísseis a realidade que vos cerca.
Durante algum tempo, o velho e o rei foram conversando, ao mesmo tempo que a tarde ia avançando. Já bem perto da noite, um silêncio especial começou a aproximar-se dos dois, facto que facilitou escutar e ver o que há muito tempo não se sentia: O SORRISO DO REI.»
Caros leitores, pelos vistos o nosso rei sempre encontrou a cura para os seus males. Afinal, e como foi bem percetível na pequena história, as soluções, às vezes, estão bem perto de nós. Basta, apenas, entender a verdade que nos cerca: as raízes de um povo; a naturalidade das paisagens; os ensinamentos de um livro; a espontaneidade das aves; a frescura das nascentes; a história das fachadas; o silêncio de um pôr-do-sol; a fragrância das tílias ou o saber de um velho. É aí, aí que a felicidade existe e o amor sorri…


Carlos Afonso

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

No dia em que os cegos começaram a ver…





Neste mundo de Deus, há vários tipos de cegos: os que não veem, porque os seus olhos se cerraram para a luz; os que não enxergam, porque o seu entendimento não os autoriza; os que não contemplam, porque não lhes interessa ver; os que não descortinam, porque lhes esconderam o sol; os que não avistam, porque lhes arrancaram os destinos e por aí fora. O que vale é que o mundo também se contempla com a alma, os gestos e o coração. Os olhos são apenas uma simples circunstância, no meio da farta paisagem que é o mundo.
Francisco, já farto de tanta insensibilidade, e até algum desprezo insano, por parte dos colegas de administração, deu um murro na mesa, fechou o livro e disse:
- Até amanhã.
Saiu apressado da sala de reunião. Ignorou o elevador. Desceu as escadas. Atravessou o átrio. Não cumprimentou o porteiro. Virou à direita. Contornou o gradeamento da empresa. Entrou no café. Sentou-se na mesa mais afastada do balcão. Pediu um café. Esperou um pouco. Tomou o café de um só sorvo. Esperou mais um pouco. Cerrou os olhos. Ignorou o espaço que o sustinha. Olhou no escuro e, após breves instantes, sorriu.
O que será que ele via? Como se pode justificar tão estranha atitude? Será que uma demência qualquer se apoderou do seu comportamento?
Deixemo-nos de deduções e mergulhemos no seu sorriso.
Bem no fundo da sua fúria, causada pela insensibilidade dos seus colegas que não perceberam as suas reais intenções, um sol esverdeado ergueu-se no horizonte e a empresa onde trabalhava o Francisco deu sinal de si. A quase certa falência da mesma levara a que algumas hipotéticas e necessárias soluções fossem apresentadas na reunião da administração. Claro que Francisco trouxe a sua.
Ora se os brinquedos que a sua empresa produzia não estavam a ter a aceitação desejável no mercado, havia que redefinir as estratégias e promover a criatividade. Talvez assim as coisas mudassem de sentido. Foi a pensar nesta possibilidade que o nosso trabalhador da Brincogal orientou as suas disposições.
E por que não associar aos brinquedos excertos de textos de vertente literária? Por exemplo, inserir, numa face dos pequenos, comboios um excerto do poema de Fernando Pessoa que fala do comboio “E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão/Esse comboio de corda/Que se chama coração”. Ou gravar um excerto do poema “ Trova do vento que passa” de Manuel Alegre num brinquedo que sugerisse vento. Ou nos brinquedos de praia, excertos, que falassem de ambientes marítimos, de textos de Sophia de Mello Breyner, e por adiante. Assim sendo, poder-se-ia dizer que se estaria perante textos-objecto, com carácter lúdico, pedagógico, literário, carregados de pedaços de vidas. Um dia, quando o brinquedo perdesse a sua utilidade de brinquedo, poderia transformar-se em recordação de estante ou na alma de um poeta. Um dia, quando a criança já não visse no brinquedo a serventia de brinquedo, olharia para ele como a página de um livro ou um suspiro de coração.
Era este sonho todo que morava nos propósitos de Francisco, e que nesse seu cerrar de olhos conseguiu ver, numa outra realidade. Não é preciso acrescentar que nesse dia, e depois de tomar aquele café, e depois da incompreensão dos seus colegas, que o imaginativo trabalhador salvou a sua empresa. Sem sombra de dúvida que o que ele viu e constatou, bem dentro de si, cheirava a um futuro de verde pintado. E porque podia vir a ser útil, e porque eu, narrador de serviço, lho facultei, o nosso amigo roubou do seu produtivo devaneio uma pequena recordação. Era apenas um velho brinquedo, um pequeno carrinho de mão, já rachado, mas que trazia gravado bem no seu interior uma quadra de António Aleixo: “Porque a vida me empurrou/caí na lama, e então/tomei-lhe a cor, mas não sou/a lama que muitos são.” Era, sem sombra de dúvida, um excelente antigo brinquedo, carregadinho de moralidade e estilo.
Quando Francisco reabriu os olhos, a existência, a que nós lhe chamamos realidade, mostrou-se-lhe benignamente airosa. Mais convicto do que nunca, voltou para a empresa. Cumprimentou o porteiro. Subiu as escadas e foi ao encontro dos colegas de administração, que ainda se encontravam, à procura não sei do quê, no mesmo sítio onde os havia deixado.
Admirados, estranharam este voltar de hoje, e não amanhã, sorridente e, estranhamente, persuasor. Sem mais, Francisco colocou o tal carrinho de mão em cima da mesa, sentou-se e entregou-se ao silêncio.
Cada vez mais atarantados, e sem palavras para dizerem, os companheiros de sala entreolharam-se e repararam que as cadeiras se começaram a tornar incómodas. A dada altura, o colega que estava sentado à sua direita, aquele que mais o gozara na primeira reunião, prestou atenção ao objeto que Francisco trouxera, e sempre disse:
- Que interessante! Onde arranjaste isto?
Certo do que ia dizer, o nosso amigo pegou no que restava do brinquedo, e que agora acolhia a quadra de António Aleixo, e declarou para todos os cantos da sala, assim como para os presentes:
- Como não entendestes a minha proposta para salvar a empresa, e porque o vosso discernimento não vos deixou ver a real natureza do meu projecto, fui buscar a maquete a casa.
Nesse mesmíssimo momento, e tal qual o campo ressequido bebe as prenhes gotas de água, e mata a sede, os companheiros de administração do Francisco abriram os olhos e deixaram de ser cegos.


Carlos Afonso 

sábado, 4 de janeiro de 2014

«Da ideia JORNADAS LITERÁRIAS DE FAFE ao projeto JORNADAS CULTURAIS DE FAFE



(Este texto surge da necessidade de dar algumas respostas e esclarecimentos às muitas perguntas que me têm sido dirigidas, nestes últimos tempos, por parte de professores, Presidentes de Junta, responsáveis de várias associações culturais e outras pessoas em particular, relativamente às próximas Jornadas Literárias de Fafe, a realizar em 2014.)

Um grande poeta português escreveu um dia que os MITOS não se inventam, eles nascem e crescem de acordo com a vontade e a necessidade de um povo. E se assim é, não admira, no meu modesto entendimento, que Fafe também tenha vivenciado esse destino ao longo da sua história.

            Desde há uns anos para cá que em Fafe está a ser construído um projeto cultural, sempre em crescendo, com objetivos claros e dignos, cuja seiva que o vai alimentando advém do suor, sonhos, alma, tempo e coração de muitos fafenses.
 Ainda me lembro a hora e o local como tudo começou. Estávamos em outubro de 2009, numa aula de Literatura Portuguesa, altura em que questionei os meus alunos acerca do que iriamos fazer no Projeto Individual de Leitura, componente obrigatória da disciplina. Numa resposta visionária, uma aluna adiantou-me que podíamos estudar os escritores de Fafe e “(…) fazer algo como umas Jornadas Literárias, professor(…)”. Bendita a hora em que a minha aluna disse o que lhe nascera no entendimento, pois, e a partir daí, a nascente do rio começou a jorrar e nunca mais deixou de correr. Assim, e logo em março de 2010, a Escola Secundária de Fafe, o ventre materno das Jornadas, interligou-se com a Câmara Municipal e, em parceria, começaram a erguer tão importante construção: as Jornadas Literárias de Fafe.

            Se no início o rosto do evento, ainda a dar os primeiros passos, era apenas literário e muito ligado aos escritores fafenses, com os anos, outras metas se foram abrindo e outras vertentes culturais vieram à luz do dia. E tudo foi acontecendo e crescendo, porque mais agentes se associaram ao projeto, concretamente, Escolas, Município, Freguesias, Associações e Instituições. Isto é, todo o Concelho de Fafe, imbuído de um só peito e amor a Fafe, ergueram a sua vontade e têm trabalhado em prol das «Jornadas Literárias de Fafe».
Quando olhamos para a bandeira que define as Jornadas Literárias podemos ler e sentir mensagens lindas, sugerindo toda uma unidade que nasce na diversidade das gentes que habitam as terras de Fafe. As suas reais cores, em forma de telhas, idênticas às que cobrem o casario de traça brasileira que enfeita as nossas ruas, mostram que a verdadeira cultura abarca o fio que ata a existência de todos os fafenses. As Jornadas Literárias abraçam e misturam todas as cores políticas, clubísticas, associativas, administrativas, bairristas, etc… derivando daí uma substância incolor e pura: AMOR A FAFE…
            Se a ideia das Jornadas me foi oferecida numa sala de aula, na Escola Secundária, a ideia de fomentar a iniciativa «Fafe dos Brasileiros» veio à luz do dia, quando numa bela tarde, descendo a escadaria da Casa da Cultura, com o livro de Miguel Monteiro, com um título bem do tamanho de dois continentes e um oceano, debaixo do braço, me foi segredado à inspiração para continuar o que tinha sido começado. Dali, fui tomar um café à Brasileira, onde, com ajuda de um papel em branco e uma caneta quase gasta, escrevinhei a intenção de colocar no programa das Jornadas Literárias uma nova visão. E foi desta forma que o passado começou a movimentar-se num presente com futuro. Uma minha participação na «Rota da Desfolhada», em Várzea Cova, ajudou a definir o que faltava.

            Nos finais do Séc. XIX e princípios do Séc. XX, muitos fafenses fomentaram a demanda entre dois povos, Portugal e o Brasil, numa torna viagem com muitos sucessos. No Séc. XX, 1991, Miguel Monteiro, um homem visionário e com muito querer, colocou em livro histórias e rumos, dando-lhe o único título possível: «Fafe dos Brasileiros». Já no Séc. XXI, e porque tinha de ser assim, tive a sorte de poder dar início a uma outra perspetiva que poderá ir muito longe e imortalizar quem de direito e por necessidade. Comecei, assim, a partir de alicerces bem assentes em factos da história e na lucidez e mestria de Miguel Monteiro, a definir uma outra vertente de «Fafe dos Brasileiros».

            Com a ajuda das escolas, freguesias e associações de todo o Concelho e Município, mais um grupo de amigos, tão enlevados pela cultura como eu, a onda branca assomou na praia e foi de ilha em continente e poderá, se os fafenses assim o quiserem, ir até ao fim do mundo. Foi o acreditar numa visão necessária por parte de todo um conjunto de pessoas com alma e crença que conduziu a que novas peças se interligassem ao projeto cultural que se está a fomentar em Fafe.

E foi assim que «Fafe dos Brasileiros» se apegou às «Jornadas Literárias de Fafe».

            No ano de 2013, as Jornadas Literárias brilharam no campo cultural de Fafe, atingindo um patamar muito alto. E bem dentro de toda a sua abrangência e transversalidade, «Fafe dos Brasileiros» mostrou os seus princípios, e que foram muito bem entendidos e ovacionados, na sua capacidade de entrelaçar a cultura, o turismo e a riqueza económica. Mas, e porque a vida é assim, está na hora de melhorar e afinar o novo horizonte que se avizinha. A forma como «Fafe dos Brasileiros» se assumiu leva a que outros caminhos se percorram, situação que tem de conduzir a um desenhar de forma mais global a cultura que se esboça em Fafe.

            Na verdade, foram as «Jornadas Literárias de Fafe» que “pariram” «Fafe dos Brasileiros», mas, agora, está na hora do “filho” voar noutro sentido para poder crescer. Ao criar-se uma nova denominação, como já há muito tem vindo a ser defendida, leva a que não haja confusões e a que a vertente mais etnográfica não choque com a visão mais literária. Assim, as futuras «JORNADAS CULTURAIS DE FAFE» surgirão do conjunto das novas «Jornadas Literárias de Fafe» e de «Fafe dos Brasileiros», a realizar em alturas diferentes e adequadas às circunstâncias e realidades.

            Ora bem, mas para quando esta nova visão e esta diferente perspetiva?
            Quanto às novas “Jornadas Literárias de Fafe”, assentes numa vivência mais voltada para a literatura, onde a escrita, a leitura e a criatividade assumem linhas de destaque, elas realizar-se-ão nos dias 19,20 e 21 de março, englobando o «Dia Mundial da Poesia». A ligação às escolas e a organismos literários será realçada e fomentada.
            Relativamente a «Fafe dos Brasileiros», centrada numa dinâmica cultural, turística e económica, a sua concretização terá que ser desenvolvida numa altura mais propícia, permitindo uma maior utilização de espaços ao ar livre e contando com a presença dos nossos emigrantes.
        Igualmente, terão de desenvolver-se condições, para que as freguesias, associações e as pessoas responsáveis pela sua realização possam deitar mãos ao trabalho e fazerem de «Fafe dos Brasileiros» uma fonte de riqueza para as terras de Fafe. Não convém esquecer o que acontece em Santa Maria da Feira ou em Óbidos. Nesta nova caminhada, pouco ou nada pode fazer um grupo de amigos, onde eu me incluo, com muita vontade e ideias, mas sem as condições necessárias para arrancar e seguir.

            Se as entidades económicas e políticas que regem o Concelho de Fafe tiverem mais ousadia e vontade, libertas de alguns preconceitos e medos, poderão ajudar a construir uma iniciativa muita frutífera para Fafe. Não esquecer que o Município, Freguesias, Associações e muitas pessoas em particular já mostraram do que são capazes. Com mais ajudas e incentivos poder-se-á fazer muito mais e melhor.
Tenho a certeza que «Fafe dos Brasileiros», e se as pessoas que o podem ajudar a fazer quiserem, poderá ser um excelente meio de promover as tradições, a gastronomia, a música, a arquitetura e as memórias de todo um povo, associando a cultura e o turismo com o desenvolvimento económico.
NUNCA PODEMOS ESQUECER QUE O PASSADO, OLHADO COM CRIATIVIDADE E AMOR, PODE CONDUZIR A UM FUTURO MAIS BRILHANTE E FELIZ.
          


                                                                                               Carlos Afonso

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

“O Sítio Onde Moram as Cores do Arco-íris”



Naquela tarde de fim de primavera, a sala de aula mostrou-se diferente a Maria. As palavras que a professora pronunciara tinham entrado de rompante no seu entendimento, e tudo por causa da estranha pergunta que a professora havia lançado aos alunos.
- Meninos, algum de vocês conhece o sítio onde moram as cores do arco-íris?
A pergunta tão especial, e inesperada, ninguém respondeu. O silêncio tomou conta da sala e todos os lábios se aquietaram receosos. Apenas o olhar azul de Maria se remexeu na sua curiosidade. Na verdade, só a bela menina de oito anos, quase sempre irrequieta na sua forma de ser, mostrou o interesse necessário de descobrir tão mágico lugar.  
Terminada a escola, Maria regressou a casa, entrou no quarto, arrumou a pasta vermelha ao seu canto costumeiro e fitou a luz cintilante que entrava pela janela. O seu olhar continuava inquieto e à procura de uma só resposta. A pergunta que a professora havia feito continuava a percorrer-lhe o pensamento: «Meninos, algum de vocês conhece o sítio onde moram as cores do arco-íris?»
 Sem mais, a pequena Maria espreitou a ver se não havia ninguém e saiu de casa. No céu, duas pequenas aves voavam apressadas e o sol continuava bem amarelo. Ainda não eram seis horas da tarde.
 Ora correndo, ora caminhando apressada, Maria nem sequer olhava para trás. Para a frente era o seu destino. Os campos pintados de verde estendiam-se em seu redor, confortados pela brisa amena que se soltava de leste. A dada altura, e porque o cansaço também faz parte de qualquer demanda, ela sentou-se numa pedra que para ali estava, encostou o rosto ao silêncio do momento e quando já adormecia, uma voz calma e doce trouxe-a de volta.
- O que estás aqui a fazer? – perguntou um velho que, sem se saber como e de onde, ali apareceu.
Um pouco assustada, Maria ergueu-se, fitou o homem e teve medo! Como o rosto do seu interlocutor lhe manifestasse alguma confiança, aquietou o coração e sempre conseguiu dizer:
- Eu…eu ando à procura do sítio onde moram as cores do arco-íris.
Como que já estivesse à espera de tal resposta, o velho colocou um sorriso nos lábios e, com um gesto simpático, apontou-lhe a direção do norte. Entretanto, com uma disposição de perfeita simpatia, tirou de um bolso, do seu gasto casaco, um pequeno mapa, que colocou nas mãos de Maria, e onde se desenhava uma meta assinalada. Depois, sem mais, desapareceu no alaranjado do crepúsculo vespertino que naquela altura se iniciava. Maria levantou-se, agradeceu e seguiu os desígnios que o velho lhe apontara.
Se por entre vales e outeiros, Maria tentava encontrar o sítio onde moram as cores do arco-íris, em casa, seus pais viviam momentos aflitivos. Sem saberem notícias de sua filha, procuravam-na pelos lugares mais óbvios, mas nada. E foi no meio deste alvoroço todo, que um grupo de colegas de Maria decidiu também procurá-la.
Dispostos a encontrar a Maria, o grupo de amigos meteu os pés ao caminho e seguiram a direção do norte. Num dos prados por onde passaram, a cor violeta de umas flores silvestres, acomodadas em redor de um penedo antigo, ainda despertaram a sua curiosidade, mas o seu objetivo era outro e continuaram em frente. Com a noite a romper no horizonte, muitas preocupações começaram a surgir, o que levava a que nenhuma das crianças reparasse que as estrelas já começavam a despertar no céu.
Onde estaria Maria? Por onde andaria a sua colega de escola?
Com a escuridão a cobrir o horizonte e o caminho a seguir, uma gruta na encosta serviu para eles se abrigarem e passarem a noite. Como as circunstâncias não permitiram que o sono habitual chegasse a horas decentes, o contar de algumas histórias e o recordar dos passos que a sua amiga tinha dado nos dois últimos dias, antes do seu desaparecimento, ajudaram a passar o tempo. Só pela madrugada, os olhos se cerraram até ao momento exato em que um estrondo forte os acordou.
Uma invulgar trovoada de maio espraiava-se pela manhã, sem ter de esperar pela tarde, como é habitual acontecer. Se raios e trovões afligiam os espaços, uma chuva persistente obrigou os seis amigos a continuarem no seu local de abrigo. Só por volta da dez da manhã, é que tudo acalmou, e permitiu que se preparassem para continuar a procurar Maria. Mas não foi necessário fazê-lo, porque o destino se encarregou de tudo.
Quando abandonavam a gruta, e para surpresa das partes, deram de caras com Maria que, tal como eles, se abrigara ali perto, numa outra gruta, escavada mais abaixo. Afinal, eles passaram a noite quase juntos, apenas separados por poucos metros, naquele lugar, situado a norte da vila onde residiam.
E porque tinha de ser assim, muitas perguntas surgiram, para uma só resposta.
- Maria, por que fizeste isto?
- Por que não nos dissestes nada?
- Já imaginaste a confusão que arranjaste?
- Não tiveste medo?
Num tom de quem ainda não encontrara o que procurava, Maria fixou-os com o olhar e, sem mais, adiantou:
- Calma. Eu estou bem. Eu apenas vim à procura do sítio onde moram as cores do arco-íris. Qual é o problema?
- Qual é o problema? O problema é que andámos para aqui à tua procura, e agora os nossos pais também devem estar aflitos, - acrescentou um dos colegas.
Como quisessem continuar a discussão, um grito agudo, fez com que todos olhassem o céu já liberto da chuva matinal e agora pintado de beleza.
- Olhem. Lá no alto. Que bonito! É o arco-íris. Tão grande!
                Satisfeita, Maria pregou os olhos no céu, e por lá os deixou ficar por muito tempo. Depois, com um sorriso enorme, disse bem alto:
                - Encontrei-o. Este é o sítio onde moram as cores do arco-íris…

“Nunca encontrarás o arco-íris se estiveres sempre a olhar para baixo.”

Carlos Afonso

                 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Um conto de Natal ... « UMA VELA PARA JESUS»



            Na aldeia onde morava, Alcina era a menina mais sorridente e a mais atenciosa para com todas as pessoas. Com apenas sete anos, esta simpática criança de cabelos pretos, e de olhos quase da mesma cor, tinha por costume oferecer gestos meigos e de ajudar a velha Luísa do Largo a dar de comer às suas pombas, que habitavam às dezenas no pombal do Cabeço. As pernas da senhora de setenta anos já não eram o que em tempos foram e a ajuda de Alcina vinha mesmo a calhar. Claro que a velha Luísa não gostava de ficar a dever favores a ninguém, e muito menos à pequena Alcina que, infelizmente, tinha o seu pai desempregado e o dinheiro lá em casa não abundava. Retribuía-lhe a ajuda com bolachas, roupa, alguns trocos que sobravam da reforma, para além de outras pertenças sempre de grande utilidade.
            Com a mãe a trabalhar na vila e o pai à procura de emprego longe da aldeia, quando acabava a escola, Alcina corria para casa, lanchava, dizia olá à vizinha que morava na casa ao lado da sua e depois corria para ajudar a velha Luísa. Os deveres que trazia da escola ficavam para a noite, à espera da ajuda preciosa do pai. E eram assim quase todos os seus dias.
            Com a chegada das férias de Natal, o tempo de Alcina ficou mais sobrado e as suas brincadeiras de criança espalhavam-se por toda a aldeia. Era um regalo ver a felicidade estampado no rosto que Deus lhe deu.
Chegada a noite de vinte e três de dezembro, um pedido de ajuda da catequista Rosa fez com que Alcina ficasse mais feliz. Na verdade, a catequista pediu à criança que, nessa noite, a fosse ajudar a fazer o presépio.
Claro que ela foi, e com muito gosto!
Ainda o relógio da torre não tinha dados as dez horas e todo o presépio já estava prontinho. Diga-se de passagem que nunca o presépio da aldeia tinha ficado tão original e bonito. De certeza que todo aquele bom gosto tinha partido de Alcina. Para além de todas as imagens que enfeitavam a gruta do menino Jesus e encostas em redor, destacava-se, bem lá no alto, um castiçal dourado com uma vela já meia usada. Como não havia estrela, foi o que se conseguiu arranjar.
Será que daria um belo efeito? Só experimentando. E foi o que a despachada Alcina fez.
Com a catequista e as outras ajudantas sentadas no banco em frente ao presépio, coube à pequena o gesto inaugural. Mas, e porque uma vontade, vinda lá do fundo do coração, se espalhou bem à sua frente, a simpática criança, antes de acender a vela, virou-se para a catequista e perguntou:
- Antes de acender a vela, será que posso pedir um desejo ao menino Jesus?
- Claro que podes, Alcina:
E ela… ajoelhou-se, benzeu-se e pediu:
- Menino Jesus, por favor, pede ao teu pai que arranje um emprego ao meu. De certeza que ele, como está no céu, conhece muitos patrões. Obrigado e desculpa!
Depois de se voltar a benzer, levantou-se, acendeu a vela e sentou-se no banco, ao lado das outras, para ver o efeito da vela.
Que maravilha! Como a luz da vela brilhou! Nunca o rosto de Jesus, Maria e José ficaram tão iluminados…
Na manhã seguinte, o telefone tocou, o pai atendeu e...
- Alcina, Alcina, acorda. Tenho de sair já. Por favor, ajuda-me. Tenho de estar daqui a uma hora no emprego, pois amanhã é Natal e eles, hoje, fecham à uma da tarde. Uma empresa de construção civil aceitou-me como carpinteiro. Ai! Quando a mãe souber…
Alcina, levantou-se, abriu a janela e olhou o céu. Depois, baixinho disse:
- Obrigado, Jesus. Agora tenho de ir…


Carlos Afonso