domingo, 26 de janeiro de 2014

UMA TARDE DE DOMINGO EM MIRANDELA



   (Das minhas lágrimas ao sorriso de um homem velho…)

                Os domingos, às vezes, mostram-nos que as lágrimas e os sorrisos são irmãos gémeos, apesar das circunstâncias que os motivam serem diversas e nem sempre justas.
                Neste domingo de janeiro, dia 26, desloquei-me com a família a Mirandela com o objetivo de visitar uma doente muito querida, que se encontra internada no hospital desta cidade transmontana. A doente de que falo, caro leitor, é a minha madrinha, a Dona Antoninha, uma das mulheres que mais amo neste mundo e a maior doceira de Trás-os-Montes.
Vítima de um derrame cerebral, esta idosa senhora de 89 anos, a minha querida madrinha, recebeu-me numa indiferença não costumeira, apenas porque a maldita doença que a colheu assim lho permitiu. Beijei-a na testa, acariciei a sua mão esquerda com a minha mão direita, e apenas recebi, em troca, um abrir de olhos distante.
Os meus olhos choraram! O meu coração tremeu! Mas a razão, na lucidez que a define, puxou-me o entendimento e pediu-me contenção e uma postura de homem. Querendo fazer figura de forte, tentei obedecer, mas o meu sofrimento queria chorar mais!
 Durante o tempo que estive naquele quarto abafado de hospital, e sempre que olhava a quietude parada e pálida da minha amada madrinha, a minha memória de adulto descontrolava-se de vez em quando e saltava para um passado de muitos anos, e algumas recordações de renome vieram à tona da minha existência. De todas as recordações que se abeiraram de mim, a que me deu mais saudades, no meio da minha angústia, foi aquela em que a minha madrinha, no tempo em que tinha apenas nove anos, me fizera um pedido bem singular.
- Meu filho, queria tanto que fosses padre! Depois eu ia contigo… Sabes, meu filho, amanhã vais comigo arranjar o altar da igreja e…
Não aguentei mais! O tempo voltou aos minutos do domingo de 2013 e as lágrimas voltaram em força. Para que ninguém notasse, fixei a janela e deixei-me levar pelo voo de um pássaro, que não consegui determinar a espécie… Seria um estorninho?
Antes de sair do quarto onde minha madrinha jaz quase sem vida, pois a hora da visita tinha terminado, ainda tive tempo de lhe dar um outro beijo na testa. Nesta despedida já não chorei, mas disse-lhe baixinho:
- Madrinha, tens a pele tão macia… Amanhã eu volto… Sabes, Madrinha, não foi o Duarte que comeu a marmelada, fui eu… Desculpa só dizer-te a verdade, hoje, passados tantos anos, mas…
Como os meus filhos quisessem merendar, mal saímos do hospital, dirigimo-nos para o centro da cidade, calcorreando a ponte velha. O rio Tua dormia no seu leito, indiferente a tudo. No céu, o sol mostrava-se envergonhado. Num passeio, encostada à grade da ponte, uma rapariga olhava para um livro bem aberto. Umas tantas pessoas erravam pelo tabuleiro já gasto. E, sem aviso prévio, do outro lado da velha ponte começou a sentir-se um alarido musical crescente. Eu já sabia a causa daquele barulho todo. Na televisão que estava colada à parede da portaria do hospital, reparei que mostrava um programa televisivo que estava a acontecer em direto do centro de Mirandela. Era o «Portugal em festa» da SIC.
Os meus filhos e a minha mulher entraram numa pastelaria. Eu disse que não tinha fome e que ia dar uma volta. Caminhei na direção do local onde estava a acontecer o programa de televisão.
No jardim, as oliveiras já não tinham o seu fruto de eleição, as lojas tradicionais enchiam-se de «Alheiras de Mirandela», «Azeite de Mirandela», «Pão de Mirandela», «Folar de Mirandela». Não sei porquê, lembrei-me de um pormenor bem evidente em Fafe. Eu nunca vi nas ementas expostas nos restaurantes de Fafe a frase que aí devia estar - «Vitela assada à moda de Fafe». Desculpe, amigo leitor, este leve desabafo.
Bem na confusão do «Portugal em festa», reparei em muita coisa. As crianças dançavam! As mulheres estavam felizes! O apresentador da SIC José Figueiras vestia calças vermelhas. O cantor Toy limpava o rosto com um lenço e…
A dada altura, e quando já decidira regressar e ver se os meus filhos e mulher já tinham lanchado, e podermos, assim, voltar para Fafe, um homem velho, abeirou-se de mim, cumprimentou-me e, com um sorriso do tamanho do mundo, disse-me:
- Sorria, amigo. Olhe que festa bonita! As tristezas não pagam dívidas. Anime-se, homem. Quer ir beber um copo comigo?
Não fui beber um copo com o velho homem, mas, muito a custo, sempre consegui recompor a alma, apagar a leve angústia que insistia em molhar-me o rosto e SORRIR.

Carlos Afonso




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