domingo, 22 de maio de 2011

O vendedor de mentiras




Às vezes, a clareza dos dias nem sempre nos mostra toda a verdade, principalmente se os homens esconderem o que lhes mora na alma.
A tarde estava solarenga e uma frize de limão ajudaria, de certeza, a acalmar a sede que me percorria as entranhas. Não admira, por isso, que a minha determinação me tenha conduzido à padaria Silva e aí tenha procurado a necessário refresco. Nas mesas apenas se dispunham meia dúzia de pessoas. Atrás do balcão, uma funcionária da casa, aí pelos seus vinte e poucos anos, mexia e remexia no que lhe convinha. A frize não demorou a chegar e uma leve sensação de prazer varreu a minha postura, facto que levou a que continuasse naquele espaço simpático mais de uma hora.
Reconheço que o meu tempo anda demasiado preenchido para passar tanto tempo sentado numa mesa colocada no seu assento habitual à espera de ser ocupada. Mas, é importante que as rotinas se quebrem e se pare um pouco para reparar no que nos rodeia. E foi o que eu fiz. No exterior da pastelaria três operários trabalhavam no arranjo do pavimento da rua, enquanto um outro jazia na sua ociosidade, sentado numa máquina escavadora, à espera que alguém o solicitasse. Por entre estes azafamados trabalhadores, muito entulho, barras e cimento e demais dependências, duas raparigas, num passo que mostrava alguma pressa, tentavam arranjar carreiro para poderem seguir em frente. Se calhar iam para escola. Será que iriam chegar a tempo à aula? Levemente, o trabalhador que estava em cima da máquina fez um intencional esforço e seguiu o deambular cauteloso das alunas. O que será que lhe passou pela mente?
No interior da pastelaria cavaqueava-se livremente, ao mesmo tempo que um televisor, colado perto do teto ia dando um ar da sua graça. Por um instante, prestei-lhe a minha atenção. A dada altura, e no momento em que estava a passar no ecrã uma resenha informativa, escutei com toda a clareza do mundo uma voz convicta, que se despegou de uma mesa ali ao lado.
- Lá está o vendedor de mentiras. Mentiroso…
Sem olhar para o lugar donde advinha a voz, mas só podia ser de uma mesa encostada à parede, pois as outras pessoas estavam mais perto do balcão, reparei mais afincadamente no que a televisão transmitia. Na imagem apenas se via um nosso governante a jurar a pé junto que a culpa da crise em Portugal não era dele.

Bem! Perante tamanha convicção fiquei sem perceber as palavras que o meu colega de espaço lhe arrojara. Será que ele tinha informações de que eu não dispunha? E mais a mais, em quem é que devemos acreditar. Num determinado governante português, elegante na sua postura, de formação superior, com um olhar aguerrido e demasiado convencido e convincente, ou num comum popular que, se calhar, já estava a apanhar com a crise pela cara, e o único bem de que ainda dispunha era a liberdade de falar?
Como, no momento, não arranjei resposta para tamanha incerteza, (desculpem, mas estou a ser irónico), levantei-me da mesa, paguei o que devia, olhei de soslaio para o lugar onde estava sentado o descontente eleitor e... Coitado! Pareceu-me bastante abatido. De certeza que ele tem todos os motivos para presentear o nosso douto governante com tão lisonjeiro epíteto.
Só para terminar, e para que ninguém fique com dúvidas em relação às causas que mergulharam Portugal nesta crise avassaladora, se é que existe alguma, quero contar-vos um pormenor. No meu quintal, este ano, não há muita fartura. Esqueci-me de semear o alho francês, as ervilhas e as favas. Para além disso a erva daninha tomou conta de tão pacato espaço e é rainha e senhora daquelas paragens. Será que a culpa é dos vizinhos que não tiveram o arrojo para invadir o terreno alheio e colocar tudo nos eixos?
É evidente que a culpa é toda minha, que não estive à altura da minha obrigação.
Se calhar o meu quintal está a precisar de outro hortelão. E já que estou com as mãos na massa, penso que o meu país também.
Carlos Afonso

sábado, 7 de maio de 2011

Rosa

Ela chamava-se Rosa.
Era aluna do 11º Ano e gostava de estudar. A mãe dizia, muitas vezes, não sei se por vaidade ou por vontade de meter conversa com a vizinha Ana, que a sua filha estava no quadro de excelência da escola onde estudava, o que criava, na avantajada senhora, um fio de inveja.
Antes de se deitar, Rosa gostava sempre de ler algumas páginas de um livro. Não importava o autor, tinha apenas de falar de amor. Este, que agora andava a ler, tinha como título «Uma História de Amor», o que, só por si, lhe agradava. Comprara-o na Póvoa de Varzim e falava de dois jovens namorados que viveram uma linda história de amor, durante umas férias de Verão.
Rosa tinha os cabelos da cor da terra e um sorriso imenso que permanecia agarrado ao seu rosto, o que fazia com que fosse uma rapariga alegre e muito querida por todos. Por vezes, o pai, um homem dos seus quarenta anos, pegava nas mãos níveas da filha e pousava-lhe um simples beijo no rosto, segredando-lhe algumas palavras silenciosas que faziam brilhar, ainda mais, os seus olhos lindos!
Na escola, ela sentia-se feliz, principalmente quando tinha História. Diziam, até, algumas colegas, talvez com alguma malícia, que a sua amiga sentia uma especial simpatia pelo professor Alberto, o que a fazia sorrir.
O professor Alberto já estava naquela escola do interior, rodeada de oliveiras, olmos e fragas cobertas de um musgo amarelado, há mais de cinco anos. Conhecia, como ninguém, a arte de ensinar e a melhor forma de lidar com os seus alunos. Não tinha mais de trinta anos, e, para além de ensinar a exactidão da História, gostava de ler um bom romance e de aconselhar aos alunos, dizendo-lhes que ler um livro era entrar na alma de um criador.
Não morava na vila, sentia-se mais livre na sua casa térrea, batida pelo vento de leste e acariciada pela imensidão do sol, numa pequena aldeia, tendo por companhia as andorinhas, que residiam sob os beirais. Geralmente, ia a pé para a escola, a não ser que o tempo o não permitisse. Gostava de caminhar por vinhedos, silvados e olivais, atravessando caminhos de terra batida e já gastos pelo passar do tempo, mas conhecedores de muitos segredos, que costumavam partilhar com os lírios, na Primavera.
Nesse dia, o professor perdeu as horas e chegou atrasado à aula. Os alunos esperaram, o que lhe agradou. Cumprimentou-os, amigavelmente, e, para espanto seu, reparou que trouxera a pasta vazia. E agora? Não convinha que os alunos se apercebessem do sucedido, pois, e sempre que algum deles se esquecesse do material escolar, costumava censurá-los, ternamente.
Na verdade, a experiência é uma óptima amiga. Escreveu o sumário, olhou os alunos e, numa curiosa abordagem, disse-lhes que aquela aula ia ser diferente. Um leve murmúrio espalhou-se pela sala. Mas, a cumplicidade e uma satisfação partilhada, devolveram ao professor a sua calma habitual.
- O que vamos fazer? - Perguntou a Lígia, num tom algo provocador e espampanante, como costumava fazer, quando queria dar nas vistas. – Vamos dar um passeio?
- Melhor, vamos falar de livros especiais, romances, novelas, contos, poetas, escritores e sonhar…
Após uma breve resistência, todos concordaram e, um a um, foram discorrendo ao sabor das suas leituras. Elas variavam conforme os seus gostos, umas mais intensas, outras mais reflexivas, outras cingiam-se apenas a uns meros jornais especializados em desporto, ou a revistas, interessadas apenas pelo alheio. Quando chegou a vez do Rodrigo, a sala de aula assumiu uma tonalidade mais brejeira, uma vez que o seu inconveniente humor se espalhou pelo ar, levando mesmo o professor a soltar um auspicioso reparo:
- Não é a hora de brincar com a alma de um livro. Fica sabendo que um livro, seja ele qualquer for, reproduz desabafos, sonhos, vivências, reflexões, ou meras opiniões. Humilhá-lo é desrespeitar quem o escreveu, é ofender o seu autor – e franzindo o olhar, sentou-se.
O aluno anuiu as suas extravagâncias e, após pedir desculpa, remeteu-se a um envergonhado silêncio. Convenhamos que comparar um livro a um aglomerado de folhas inúteis, que só se limitam a reproduzir meras incongruências sentimentais, para afogar os outros com discorridas tagarelices, era demais. Claro que este desfraldado comentário iria importunar o carinho que o professor nutre pelos livros. Mas a desajustada situação foi ultrapassada, no momento em que Rosa começou a falar. As palavras soltavam-se daqueles lábios cor de cereja, e todos a escutavam. A forma como falava do seu livro, que comprara na Póvoa de Varzim, e o tom carinhoso que incutia nos seus comentários, despertou a atenção do professor que, e para seu espanto, bebia todas as palavras da aluna, deliciando-se com os seus argumentos sentidos.
Quando Roaa acabou, Alberto perguntou-lhe:
- Nota-se que gostas muito desse livro. Podias emprestar-mo?
- Claro, Sr. professor. Acho que vai adorar. Fala de amor!
- Só por isso? – Perguntou Alberto.
- Haverá argumento mais belo, Sr. Professor?
- Não, Helena, o amor é linda. É ele que nos faz correr pelas estrelas.
- E abraçar o céu - respondeu Rita, num tom carinhoso e enlevado.
O professor sentiu estremecer-lhe a alma, e um fio de sangue tocou o seu rosto assustado. Olhou para ela como quem beija uma fantasia e Rita fitou-o com um olhar seguro e, ao mesmo tempo, carente.
Fez-se silêncio na sala, apenas se ouvia o respirar rouco do vento na vidraça que foi, de repente, quebrado pelo barulho estridente e apressado da campainha.
Todos se levantaram, apenas Rosa se manteve sentada. O Professor deu licença para sair, mas ela permanecia agarrada à sua determinação, o que o levou a dizer-lhe, timidamente;
- Já tocou, podes sair.
- Eu sei, apenas lhe quero emprestar o meu livro.
- Obrigado. Até amanhã - respondeu o professor, contrariando um pedido silencioso do seu coração que lhe pedia para que ela ficasse.
Ela levantou-se, deu-lhe o livro e caminhou para a porta. Num movimento instintivo, mas consentido, virou-se para Alberto e balbuciou:
- Eu gostava de caminhar consigo pelas estrelas - e, sem mais, saiu.
Rosa bateu a porta de levezinho e Alberto sentou-se. Lá fora, o sol frio de Novembro ficou indiferente aos anseios do professor, apenas o vento pareceu reagir.
No regresso a casa, não seguiu o trajecto habitual, embrenhou-se no meio dos campos e deixou-se levar pela leveza da brisa. Passou por pombais, desceu outeiros e refugiou-se debaixo de uma oliveira eterna. Colheu uma mão cheia de azeitonas, que, meigamente, se deixaram acariciar. Escutou os gracejos ingénuos de um regato que incomodava umas fragas pachorrentas e continuou a pensar nas ternas palavras de Rosa, que, confusamente, fervilhavam dentro de si «Eu gostava de caminhar consigo pelas estrelas…»
Acordado pelo voo de um bando de tordos, reparou que a noite descera e que uma névoa fina se espreguiçava no horizonte. Num esforço, arrumou os pensamentos e, num passo apressado e decidido, regressou a casa.
Nessa noite, ao embarcar rumo às estrelas, o professor Alberto sonhou com Rosa…
Carlos Afonso

domingo, 1 de maio de 2011

Essa nova Índia por achar.

Nasci num país repleto de sonhos de mar,
Gerados em almas da cor das manhãs
E presos à imensidade exacta dos séculos…

Ai… se as aves me emprestassem o seu esvoaçar sem fim
E a cor verde da esperança me cobrisse com o seu manto,
Tecido por mãos que fizeram os muros inquebráveis da história!

Escutem! ... Parece que ouvi gritos ávidos de risos e estrelas…
Será a voz do vento a bater nas velas claras das caravelas?

Não. Os caminhos percorridos por espíritos destruidores de medos
E de névoas sem rosto
Não rompem os portais do tempo…
Só a teimosia dos quereres, iguais aos de Vieira, Pessoa e Camões,
Podem acordar os fazedores da história
E apunhalarem a mesquinhez deste agora sem luz,
Estampado nos nossos olhos parados,
Avivando, de novo, a chama que jaz fria dentro dos corações.

Basta. A noite não pode continuar a crestar o brilho das madrugadas,
Indiferente a um passado repleto de heróis…

Ó Infante sem medo, ó Gama imortal, ó Pedro Álvares Cabral,
Não deixeis roubar as raízes pátrias que engrandecestes.
Firmes como a vontade que vos ata ao leme,
Erguei de novo a espada do império
E abatei, de novo, as máscaras do Adamastor


Carlos Afonso

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Encontros incomuns


O que seria do homem se os caminhos apenas o conduzissem ao descolorido do óbvio ou ao enfadonho do predeterminado? Provavelmente, os dias perderiam a frescura da novidade e os sonhos negar-se-iam a surpreender.
A Páscoa estava para breve e os alunos já não precisavam de se levantar tão cedo. Na verdade, as férias escolares haviam chegado, e com elas todo aquele encanto que as define: dormir até mais tarde; algumas passeatas pelas ruas e praças; no café, as conversas prolongam-se até mais tarde; visionam-se filmes; descobrem-se novos jogos; incrementam-se alguns namoros; e por aí fora…
No que a mim diz respeito, e creio que acontece com todos os trabalhadores, também aprecio uma pausa no trabalho. Serve para retemperar as forças e para fazer certas coisas, que no comum dos dias dificilmente se efectuariam: por exemplo, passear à tarde pelas ruas da cidade na companhia da minha esposa.
Sabe bem lançar os pés ao caminho e deixarmo-nos levar pela despreocupação dos instantes, olhando para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, sempre na ânsia de colher algo de novo, ou então, encontrar um amigo que nos afague a memória e nos empreste um sorriso.
A tarde estava solarenga e quase sem dar por isso, a nossa caminhada já roçava a escadaria do Jardim do Calvário, que, lá em cima, mantinha aquela soberba postura que todos admiramos. Ainda bem que as cidades não se esquecem de preservar certos lugares emblemáticos, enfeitados de flores, lagos calmos, árvores centenárias e mil memórias. Claro que não levámos muito a ponderar. Arregáçamos as vontades e, com uma naturalidade a condizer, que causou alguma admiração em três colegas nossos que cavaqueavam numa esplanada ali em frente, fomos revisitar este velho coração de Fafe. Que sensação maravilhosa quando transpusemos os portões e reparámos no empenho de boas vindas que nos era lançado. Há um bom para de anos que não mergulhava neste protectorado na companhia da minha esposa.
Como é bom regressarmos aos sítios que nos querem bem!
Em nosso redor, os canteiros mostravam a custo as suas flores, no lago, um cisne pavoneava-se para os que reparavam nele, as árvores estavam esplendorosas, a passarada chilreava sem fim e um misto de pessoas povoava as clareiras. Nos bancos, alguns pares de namorados trocavam uns mimos não muito ousados, uma mãe tentava adormecer o seu filhinho, alguns senhores de idade relembravam o passado, dois rapazes dos seus trinta anos estavam para ali a fazer não sei o quê e duas mulheres de meia-idade jaziam quietas encostadas a um saco de compras, talvez à espera duma oportunidade de verem algo que as enchesse de pasmo, e que pudesse ser contado às amigas do bairro.
E porque a circunstância o exigia, de mãos dadas e um pouco comprometidos, a minha esposa e eu percorremos em silêncio e de uma forma pausada o carreiro de saibro que circundava o jardim. Talvez estivéssemos à espera de um segredo qualquer ou até, quem sabe de um motivo para um singelo beijo. Claro que a nossa atenção se colocou em riste, quando passamos junto do parque infantil. Ali se demorou a olhar para as crianças que, numa organização ingénua, se engalfinhavam no escorrega e nos baloiços.
Como o tempo passa! O nosso filho mais velho já tem mais de vinte anos, e era ali que o trazíamos quando era pequenino. Uma lágrima inquieta colou-se-me ao rosto e uma brisa minha conhecida disse-me para continuar.
A dada altura, e por sugestão minha, sentámo-nos no único banco de madeira disponível, e deixámo-nos por ali ficar. Do longe, sentimos chegar o som abafado do sino da Igreja nova que bateu pachorrentamente as dezassete horas. Do perto, vimos claramente o riso de uma criança de pouca mais de dois anos que corria atabalhoadamente à frente da mãe, que num esforço extra empurrava um triciclo de plástico. Nessa altura, lembrei-me do meu pai e do triciclo que ele me trouxe da feira de Alfândega da Fé. Como eu pedalava rua a baixo, sem um qualquer medo que me tirasse o jeito de criança!
Regressado ao tempo presente, deixámo-nos ficar por ali algum tempo. Conversámos sobre várias coisas, algumas banais, outras nem por isso. Comentámos certas posturas que se dispunham a nossos olhos e achámos curioso o facto de um velhote em boas condições físicas optar pelo elevador para sair do jardim, em vez de escolher o percurso normal, ocorrência pouco usual em muitos jardins de países desenvolvidos. Também não deixámos passar em claro um quadro deveras interessante que se desenhou de uma forma esplendorosa à nossa frente. Num ramo de uma árvore, estavam duas rolas pousadas numa atitude de confidência. O que diriam elas? Só Deus sabe porque as criou.
A dada altura, e num momento em que o silêncio havia tomado a minha atitude, aconteceu algo tão estranho, e ao mesmo tempo tanto especial, que nem a minha esposa deu por isso. Pelos vistos só eu é que estava destinado a ouvir as palavras que uma mulher dos seus setenta anos me atirou contra a minha estupefacção. E por quê? Deus sabe porque me criou.
- Desculpe, posso sentar-me? – Arremessou-me uma mulher vestida de escuro e com um lenço na cabeça. - Sabe, Senhor, estou um pouco cansada e os bancos estão todos ocupados.
- Por quem é, faça o favor de se sentar – respondi-lhe num tom atencioso.
Por algum tempo, a dita mulher dos seus setenta anos, pareceu fechar os olhos e dormir, mas a dada altura, virou-se para mim, e num tom tingido de ânsia e preocupação, disse-me.
- Tem filhos?
- Tenho três.
- Eu também tenho três filhos e…
Durante algum tempo fomos conversando dos filhos e não deixei de reparar em muitas coincidências nas nossas vidas, principalmente quando me mostrou o seu desespero pelo que podia estar acontecer com dois deles. Os olhos da senhora começaram a parecer-me familiares e um leve perfume a rosmaninho, misturado com outras flores do campo parecia enredar as suas palavras.
- Sabe, o meu filho mais velho, aqui há uns anos, teve um problema grave de saúde. Graças a Deus melhorou, e durante algum tempo tudo parecia correr pelo melhor. Só que agora parece que se esqueceu da sorte que teve e segue os seus dias como se nada tivesse acontecido. Assim que tal, volta-lhe a dar qualquer coisa e vai ser uma desgraça – insistia a mulher, como que querendo que eu entendesse as suas palavras.
Não sei porquê, mas o que eu estava a ouvir não me era estranho, e, muito menos, longe do percurso dos meus dias. E dado que ainda tinha mais para contar, a sua voz fez-se novamente ouvir.
- Sabe, Senhor, também tenho uma filha formada, mas as coisas nem sempre lhe correm de feição. Até parece que as forças do mal a perseguem. Muitas são as vezes em que me telefona…
A partir daqui, fui escutando muitas realidades que eu conhecia, até que a mulher achou por bem ir-se embora, como que tivesse cumprido uma tarefa de que foi incumbida. Na despedida, e por incrível que pareça, afagou-me o rosto com as suas mãos algo cansadas e disse-me que em breve a encontraria em sua casa. Ainda quis saber alguns pormenores adicionais e perceber as razões de tanta franqueza, mas as palavras insistentes da minha esposa impediram-me de o saber e trouxeram-me de volta àquela tarde solarenga e especial de Abril.
- Ó homem, tu adormeceste? Vamos embora que já é tarde.
Regressados a casa, e sem contar este meu sonho ocasional, lá fui preenchendo os minutos desse dia com outros afazeres, mas sem nunca esquecer o que me tinha acontecido. Será que é o que estou a pensar? As coincidências, às vezes, assustam-me.
Nessa noite, deitei-me mais tarde, mas mesmo assim, fui atirado para um tempo longínquo e um espaço não muito afastado do meu alcance. Sonhei que eu era uma daquelas centenas de pessoas que, com uma palmeira na mão, saudavam a Jesus Cristo, quando entrava triunfante na cidade de Jerusalém. E o mais curioso é que no preciso momento em que o redentor passava bem na minha frente, reparei que me focalizou e vi que o brilho dos seus olhos era o mesmo da mulher de setenta anos com quem havia conversado, já para não falar do perfume a rosmaninho e a flores do campo que, também, ali me circundaram. Depois disso, só me recordo da forma triste com que o filho de Deus se despegou do meu reparo, para, conformado, seguir o seu destino.
Nem sempre consigo entender o significado dos sonhos, mas pelo que pude verificar nestes meus encontros incomuns, creio que os percebi perfeitamente.
O que seria da ligeireza das abelhas se não soubessem medir a fúria das tempestades.

Carlos Afonso (Carlosehistorias.blogspot.com)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Aconteceu em Madrid

Por muito distantes que os países sejam ou por muito diferentes que as gentes se mostrem, há sempre um olhar ou um gesto que nos mostram a universalidade de Deus.
Depois de uma visita rápida ao museu do Prado de Madrid, tanto eu como os meus colegas e os alunos que nos acompanhavam, uma vez que os demais preferiram outros espaços, tivemos de virar as costas àquela imensidade de arte e inspiração, pois a viagem de regresso a Fafe estava para breve e ainda havia alguns pormenores a esclarecer.
Dentro do museu, ficou a promessa de voltar. No exterior, o sol quase abrasador e o chilrear de algumas aves, as poucas que se faziam ouvir, ajudavam a recompor do abandono necessário de um ambiente artístico tão especial.
Em plena avenida, os automóveis corriam consoante os mandos dos sinais luminosos, enquanto os nossos passos pareciam querer voar, tal era a pressa.
A dada altura, na fachada dum edifício, e para que pudesse ler tive de parar, facto que passou ao lado dos meus companheiros de jornada, uma frase chamou-me à atenção. Não só pelo seu sentido, que achei curioso, mas também pelo facto de cada uma das palavras estar tingida de uma cor diferente, conforme os tons da bandeira espanhola. Podia ler-se apenas o seguinte: Se me estás a ler, é porque estás em Madrid. Claro que a frase estava na língua dos nuestros hermanos e eu estava em tão real cidade.
Já nós continuávamos a maratona na direcção de um qualquer restaurante que nos aliviasse a fome, quando o telemóvel de um colega tocou. Às vezes recebemos notícias boas, o que só nos enchem de prazer, mas noutras ocasiões nem por isso. De facto o que o meu colega ouvira, e que nos transmitiu logo de seguida, preocupou-nos muito e fez-nos correr na direcção do restaurante Mcdonalds, situado bem no extremo da avenida. Pelos vistos, uma aluna nossa não se estava a sentir muito bem, depois de ter almoçado.
Chegados ao local, imediatamente nos deparamos com o drama da menina indisposta, assim como das lágrimas que lhe banhavam o rosto. Coitada! Vir a Madrid para se divertir e colher o muito que esta grande cidade lhe podia dar, e acontece logo isto. Paciência, os momentos nem sempre nos satisfazem a alma e nem nos aquecem a vontade.
Apanhados por um inesperado de que não estávamos à espera, e uma vez que a menina parecia querer piorar, tentou-se, de imediato, pedir socorro ao 112. Ainda se diligenciou algum esclarecimento numa senhora trigueira, já com alguma idade, sentada num banco em frente, mas de nada valeu. Provavelmente os cuidados desta senhora estavam direccionados para uma outra rota. Talvez o vazio.
Em redor, a cidade mexia-se e não parecia querer inquietar-se com a nossa aflição. Bem encostado a nós, um punhado de emigrantes africanos tentava vender alguns haveres, sem que a polícia soubesse, ao mesmo tempo que uma escultora, numa postura original, fazia uma recriação interessante, mas que pouco nos ofereceu, pois a nossa atenção estava noutro lugar.
Sem que nada o indiciasse ou o determinasse, um homem baixote, com pouco mais de trinta anos, com a pele levemente tisnada e uma calma que lhe dava um ar de gente boa, aproximou-se de nós e apresentou-se como médico. Provavelmente, ele era um de muitos que naquela hora passava naquele lugar, assinalado numa placa que jazia presa a uma fachada: Paseo del Prado. Admirados com o gesto deste madrileno amante dos que precisam, imediatamente uma certa calma nos afagou a alma e as suas providências não se fizeram esperar. Depois de uma primeira auscultação à sua doente ocasional, e após umas primeiras conclusões, o dito médico achou por bem chamar o 112. Enquanto a ambulância não chegava, aquele homem, a quem não perguntamos o nome, permaneceu no seu posto de acção. E, tal qual um guardião de um tesouro a preservar, ele esperava, acalentava o espírito agitado da nossa aluna, ia contornando a situação e reconfortava-nos a esperança.
Ao longe, o barulho estridente de uma sirene interrompeu, por momentos, os muitos sons típicos de uma grande cidade, àquela hora do dia. Bem ao nosso lado, os emigrantes africanos saíram de cena, não fosse a polícia alertá-los para a sua ilegalidade. Quanto à tal escultora, ela continuava na sua azáfama de se enquadrar com a sua obra de arte. Que insistente teimosia ela demonstrava!
Mal a ambulância estacionou, a nossa aluna foi de imediato vista. Conduzida ao interior da mesma, ali permaneceu algum tempo. E, porque o seu tempo chegara ao fim, e, uma vez que dera como concluída a sua tarefa de bom samaritano, o dito médico colocou a sua sacola ao ombro e desapareceu no meio da multidão. No seu rosto de dever cumprido pareceu-me ver desenhado um sorriso especial, enquanto do seu olhar eu juro que vi despegar-se um leve aroma adocicado. Da forma como se afastou, depois de ter recolhido os nossos agradecimentos, só podia levar a crer que o seu coração o encaminhava para uma outra circunstância, que exigia a sua presença. Como é bom saber que podemos contar com a boa vontade dos outros!
Quanto à nossa aluna, tudo não passou duma passageira indisposição.

Carlos Afonso

sexta-feira, 25 de março de 2011

O homem que encontrou a flor mais bela do mundo

Há muito pouco tempo atrás, numa das mais belas terras do Minho, vivia um homem que passava a maior parte do seu tempo à procura de três coisas: uma certeza que lhe tirasse todas as dúvidas; um caminho que lhe mostrasse todos os pontos de chegada e uma flor que fosse a mais bela do mundo.
Por muito que procurasse, por muitos esforços que fizesse, um certo desânimo começava a adensar-se no seu peito e os seus olhos já não sabiam ao certo de que lado vinha a luz. Na verdade, era difícil encontrar todo o possível no meio do impossível. E muito mais complicado seria descortinar a perfeição no meio do acinzentado das hipocrisias. Se uma certeza se aproximava do seu entendimento, dezenas de dúvidas choviam em seu redor. Se um caminho lhe indicava um rumo, logo a seguir ficava sem saber de que lado estava o norte, e se o sul estaria nesta ou naquela direcção. O único objectivo que ainda lhe restava colher nas suas mãos, e para que tudo não fosse em vão, era encontrar a flor mais bela do mundo.
Os muitos jardins e quintais, hortas e prados, montes e vales que rodeavam a terra onde morava esse homem eram de muita beleza, tingidos de muitas cores e aromas, sempre enquadrados por um verde muito típico e o azul do céu. Mas, se uma rosa que vira num jardim qualquer lhe parecia a mais bela, mal olhava para o lírio perfumado que adornava um recanto mais além, já não sabia o que achar. Se uma ameixeira em flor lhe adoçava a alma, um cravo rubro que despontava numa sacada arejada baralhava-lhe o acreditar. E por aí fora.
E agora?
Será que esse homem teria de desistir do seu sonho e da sua procura, que começava a parecer inglória?
Estávamos num mês um pouco diferente dos outros meses e num dia em que o sol fez questão de se mostrar mais brilhante. O homem, e tal como fazia muitas vezes, cumpriu algumas obrigações profissionais na escola onde trabalhava, calcorreou algumas ruas e praças da cidade onde morava, subiu a um jardim com nome (do Calvário), olhou o casario disposto lá em baixo e deixou-se levar por um ténue instante.
Não se sabe se o pardal que lhe passou ao de leve pelo olhar lhe disse algum pormenor ou se a criança que o fixou, bem lá do fundo da rua, o inspirou, o certo é que o tal homem, que por sinal era professor, sentou-se num dos bancos que por ali se dispunha, tirou um caderno da pasta, escreveu qualquer coisa, manteve o caderno aberto, olhou o céu e, depois, sorriu.
Será que encontrou o que procurava? Será que a flor que ansiava há tanto tempo lhe apareceu nos seus desígnios?
Como que quisesse que todas as pessoas que habitam o seu amor de cidade partilhassem aquele momento de deleite, levantou-se, deu alguns passos firmes em direcção ao portão que serve de entrada ao centenário jardim, abriu o caderno e mostrou a razão do seu contentamento.
Bem no centro estava um tosco desenho, mas muito claro na mensagem que queria transmitir.
Era, sem sombra de dúvida, a flor mais bela do mundo, (pelo menos para ele).
As pétalas representavam todas as escolas do concelho onde o homem morava. O caule, e tal qual o elo de ligação entre toda a componente da flor, simbolizava o município que rege os desígnios daquelas paragens. As raízes, e porque não podia deixar de ser, mostravam, claramente, a escola onde ele trabalhava.
Por baixo desta flor tão especial estava escrito com letras bem destacadas: 2ªs Jornadas Literárias de Fafe.
Será que algum dia este singelo desenho, a precisar de alguns acertos, irá florir a sério e enfeitar alguma realidade a precisar de decoro?
Eu penso que sim. Basta apenas que a alma dos homens entenda que é na educação e na cultura, e na força que as sustenta e move, que está o encanto das madrugadas e o caminho do futuro.
Carlos Afonso

quinta-feira, 3 de março de 2011

Fafe nos caminhos da Literatura

A menos de quinze dias das 2ªs Jornadas Literárias, que decorrerão entre os dias 14 de Março e 21 de Março, altura em que os criadores literários de Fafe terão um papel de destaque numa multiplicidade de iniciativas espalhadas por todo o concelho, Vozes da Secundária entendeu por bem recuperar uma pequena parte de um trabalho realizado pelos alunos de Literatura Portuguesa da Escola Secundária para as anteriores jornadas, denominado De Fafe com Amor, e que mereceu o aplauso de várias entidades. Tendo consciência de que não foi possível estudar todos os escritores, esta primeira tentativa de mostrar um pouco do que alguns criadores têm produzido ao longo dos anos, visto pelo olhar ingénuo dos alunos, teve o mérito de trazer à luz do dia o muito que Fafe tem dado à Literatura Portuguesa.
Sabendo nós que o caminho ainda não tinha chegado ao seu término, a primeira tentativa, iniciada o ano passado, está a ter seguimento neste ano lectivo. Na verdade, e porque o trabalho não podia parar, os alunos de Literatura Portuguesa do 11º Ano continuam a aprofundar o estudo de certos autores fafenses, assim como começaram a estudar outros, pois a paisagem literária que nos rodeia é riquíssima.
Como corolário desta segunda iniciativa, realizar-se-á no dia 14 de Março, pelas 17h30, na Escola Secundária, no âmbito das 2ªs Jornadas Literárias, um encontro de escritores fafenses, apelidado de Fafe nos caminhos da Literatura, e que está aberto a todos aqueles que amam o sentir das palavras.
E porque Deus existe e os homens são do tamanho do seu querer, acreditamos que, num futuro próximo, todo este trabalho de dois anos possa ter os seus frutos merecidos com a publicação de uma Antologia Literária a que podíamos chamar (e porque não?) Fafe, meu Amor.

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“A nossa terra é formosa
Como ela não há igual
É a mais perfeita rosa
Das terras de Portugal.”
Hino de Fafe



A cidade de Fafe acolhe-se sob outeiros expostos ao sol, onde cinzentos graníticos emergem de um extenso manto verde, serpenteado por joviais ribeiros. Dependurados das encostas, frondosos pinheirais abraçam velhos carvalhos, que permanecem agarrados à rudeza do tojo bravio e acolhem nos seus ramos os queixumes das ervas bravas e os murmúrios dos ventos do norte.
Esta terra minhota, apelidada de sala de visitas do Minho, veste-se de asseados jardins, perfumados de poesia, que adocicam os nossos ouvidos e alimentam a alma. Quem passa, pode sentir toda uma envolvência, onde o aroma das flores mais belas se entrelaça com os versos mais sentidos de alguns poetas fafenses.
O espaço urbano veste-se de todo um casario, onde a imponência das casas dos Brasileiros ombreia com estilos arquitectónicos diversos, gravando na pedra e no cimento toda a história de um povo.
Qualquer visitante que percorra as ruas de Fafe, ou fale com as suas gentes, compreende que se encontra num espaço aprazível e acolhedor, enfeitado de praças, arreigados costumes e um amor à cultura, que brota da calma das tílias.

À sua volta, os rios Ferro e Vizela espraiam-se livremente, avivando o verde dos pauis e espargindo uma leve frescura pelos espaços, que dá de beber às aves e pinta toda esta paisagem de um bucolismo romântico e ameno.

Desde os primeiros tempos da sua existência que Fafe se orgulha de ser uma terra de poetas e de prosadores. Do seu seio têm brotado homens e mulheres que se servem das palavras para exprimirem uma multiplicidade de sentimentos, crenças e sonhos. Ruy Monte, Soledade Summavielle, Artur Coimbra, Pompeu Martins, Augusto Lemos, Salgado Leite, Nuno Bastos, José Peixoto Lopes, Valdemar Gonçalves, João Ricardo Lopes, Tiago Magalhães, Acácio Almeida, José Augusto Gonçalves, entre muitos outros, fazem parte dum dourado corpo literário que adorna as estantes da cultura fafense.
Sempre possuidores de uma visão atenta, umas mãos destemidas e um coração tremente, os vários autores fafenses, e como se pode comprovar nos vários textos analisados, gravam, nas suas criações, temáticas variadas, tingidas por sentimentos, anseios, dúvidas, certezas, gritos, paisagens, amores, desamores, liberdade, recusas, risos e (…)»

Carlos Afonso