sexta-feira, 15 de abril de 2011

Aconteceu em Madrid

Por muito distantes que os países sejam ou por muito diferentes que as gentes se mostrem, há sempre um olhar ou um gesto que nos mostram a universalidade de Deus.
Depois de uma visita rápida ao museu do Prado de Madrid, tanto eu como os meus colegas e os alunos que nos acompanhavam, uma vez que os demais preferiram outros espaços, tivemos de virar as costas àquela imensidade de arte e inspiração, pois a viagem de regresso a Fafe estava para breve e ainda havia alguns pormenores a esclarecer.
Dentro do museu, ficou a promessa de voltar. No exterior, o sol quase abrasador e o chilrear de algumas aves, as poucas que se faziam ouvir, ajudavam a recompor do abandono necessário de um ambiente artístico tão especial.
Em plena avenida, os automóveis corriam consoante os mandos dos sinais luminosos, enquanto os nossos passos pareciam querer voar, tal era a pressa.
A dada altura, na fachada dum edifício, e para que pudesse ler tive de parar, facto que passou ao lado dos meus companheiros de jornada, uma frase chamou-me à atenção. Não só pelo seu sentido, que achei curioso, mas também pelo facto de cada uma das palavras estar tingida de uma cor diferente, conforme os tons da bandeira espanhola. Podia ler-se apenas o seguinte: Se me estás a ler, é porque estás em Madrid. Claro que a frase estava na língua dos nuestros hermanos e eu estava em tão real cidade.
Já nós continuávamos a maratona na direcção de um qualquer restaurante que nos aliviasse a fome, quando o telemóvel de um colega tocou. Às vezes recebemos notícias boas, o que só nos enchem de prazer, mas noutras ocasiões nem por isso. De facto o que o meu colega ouvira, e que nos transmitiu logo de seguida, preocupou-nos muito e fez-nos correr na direcção do restaurante Mcdonalds, situado bem no extremo da avenida. Pelos vistos, uma aluna nossa não se estava a sentir muito bem, depois de ter almoçado.
Chegados ao local, imediatamente nos deparamos com o drama da menina indisposta, assim como das lágrimas que lhe banhavam o rosto. Coitada! Vir a Madrid para se divertir e colher o muito que esta grande cidade lhe podia dar, e acontece logo isto. Paciência, os momentos nem sempre nos satisfazem a alma e nem nos aquecem a vontade.
Apanhados por um inesperado de que não estávamos à espera, e uma vez que a menina parecia querer piorar, tentou-se, de imediato, pedir socorro ao 112. Ainda se diligenciou algum esclarecimento numa senhora trigueira, já com alguma idade, sentada num banco em frente, mas de nada valeu. Provavelmente os cuidados desta senhora estavam direccionados para uma outra rota. Talvez o vazio.
Em redor, a cidade mexia-se e não parecia querer inquietar-se com a nossa aflição. Bem encostado a nós, um punhado de emigrantes africanos tentava vender alguns haveres, sem que a polícia soubesse, ao mesmo tempo que uma escultora, numa postura original, fazia uma recriação interessante, mas que pouco nos ofereceu, pois a nossa atenção estava noutro lugar.
Sem que nada o indiciasse ou o determinasse, um homem baixote, com pouco mais de trinta anos, com a pele levemente tisnada e uma calma que lhe dava um ar de gente boa, aproximou-se de nós e apresentou-se como médico. Provavelmente, ele era um de muitos que naquela hora passava naquele lugar, assinalado numa placa que jazia presa a uma fachada: Paseo del Prado. Admirados com o gesto deste madrileno amante dos que precisam, imediatamente uma certa calma nos afagou a alma e as suas providências não se fizeram esperar. Depois de uma primeira auscultação à sua doente ocasional, e após umas primeiras conclusões, o dito médico achou por bem chamar o 112. Enquanto a ambulância não chegava, aquele homem, a quem não perguntamos o nome, permaneceu no seu posto de acção. E, tal qual um guardião de um tesouro a preservar, ele esperava, acalentava o espírito agitado da nossa aluna, ia contornando a situação e reconfortava-nos a esperança.
Ao longe, o barulho estridente de uma sirene interrompeu, por momentos, os muitos sons típicos de uma grande cidade, àquela hora do dia. Bem ao nosso lado, os emigrantes africanos saíram de cena, não fosse a polícia alertá-los para a sua ilegalidade. Quanto à tal escultora, ela continuava na sua azáfama de se enquadrar com a sua obra de arte. Que insistente teimosia ela demonstrava!
Mal a ambulância estacionou, a nossa aluna foi de imediato vista. Conduzida ao interior da mesma, ali permaneceu algum tempo. E, porque o seu tempo chegara ao fim, e, uma vez que dera como concluída a sua tarefa de bom samaritano, o dito médico colocou a sua sacola ao ombro e desapareceu no meio da multidão. No seu rosto de dever cumprido pareceu-me ver desenhado um sorriso especial, enquanto do seu olhar eu juro que vi despegar-se um leve aroma adocicado. Da forma como se afastou, depois de ter recolhido os nossos agradecimentos, só podia levar a crer que o seu coração o encaminhava para uma outra circunstância, que exigia a sua presença. Como é bom saber que podemos contar com a boa vontade dos outros!
Quanto à nossa aluna, tudo não passou duma passageira indisposição.

Carlos Afonso

1 comentário:

  1. Na sua escrita, até o mais banal ou atribulado dos momentos ganha beleza e sentido poético. Fantástico!

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