domingo, 10 de outubro de 2010

O homem de Moscovo

Em todas as grandes cidades do mundo, muitas vidas sem rosto divagam pelas ruas e nem sempre decoram estas metrópoles com as melhores cores. Pedintes, bêbados, velhos sem rumo, mulheres que se vendem para não morrer à fome, entre outras manchas pouco amadas, que não se coadunam com os parâmetros oficiais, e sujam as fotografias, quando a curiosidade dos turistas não lhes é indiferente. Dimitri faz parte deste grupo de pessoas, apelidadas, por vezes, de marginais.
Nessa tarde de Julho de 2010, Moscovo abrasava com os seus trinta e oito graus, e com algum fumo à mistura, fruto dos muitos incêndios que a afligiam, para aflição dos muitos transeuntes que, por variadas razões, tinham de palmilhar as suas ruas e longas avenidas.
Para um português oriundo do norte de Portugal, que, por esta altura, visitava esta imensa urbe, na companhia de mais algumas dezenas de compatriotas, sedentos de descobrir a realidade russa, tudo o que se deparava aos seus olhos era motivo de admiração e reparo, principalmente, porque pisavam terras que já sentiram os mandos e desmandos de Ivan, o Terrível; Pedro, o Grande; Lenine; Estaline; Brejnev; entre outros.
Moscovo é a capital e a maior cidade da Rússia e foi fundada em 1147. É também a maior área metropolitana da Europa e está entre as maiores áreas urbanas do mundo. Esta megacidade, com mais de dez milhões de habitantes é um grande centro político, económico, cultural, religioso, financeiro, educacional e de transporte, uma cidade global.
E porque as sombras nem sempre são reflexo de bem-estar, num dia de muito calor, o que se poderá dizer daquele homem vestido de um negro sujo, que, quase sem se mexer, ali se deixava estar, encostado a um dos muros da imponente Praça Vermelha, um dos lugares mais emblemáticos de Moscovo, completamente mergulhado pela quentura dum sol devorador, que lhe cobria todo o corpo.
Este imponente sítio foi idealizado com a finalidade de existir um espaço livre junto ao Kremlin para evitar os incêndios, tão habituais na época. Toda a sua grandeza encheu-nos os olhos, e não era para menos, já que os seus 74.831 metros quadrados de superfície, 695 metros de comprimento e 130 metros de largura não eram para brincadeiras.
Sem sombra de dúvida que aquele sítio era o melhor para usufruir de alguns trocados, dados pelos turistas, que por pena, ou porque simpatizavam com um sorriso diferente que se escapava duns lábios, quase escondidos por uma barba avermelhada, ali deixavam cair, numa lata quase tão velha como a calçada que servia de assento a Dimitri.
Apenas um pormenor: na sua mão esquerda arrumava-se uma pequena cruz ortodoxa, feita dum material dourado resplandecente, que não me passou despercebida, mas que o homem escondeu num dos bolsos largos da sua túnica preta, como que receando que lha roubasse. Estranho gesto o seu!
Porque era um desses turistas que por ali se passeava, e porque esse homem me despertara a curiosidade, aproximei-me, meti as mãos ao bolso e tirei alguns rublos, que, sem receio, deslizaram até à dita caixa de lata. Quase ao mesmo tempo em que as moedas se enrodilhavam nas restantes, e que já eram muitas, um «obrigado» bateu-me nos ouvidos, arremessado pelos lábios de Dimitri.
O quê!? Questionei-me, algo desorientado, ao mesmo tempo que assentava os olhos nessa figura vestida de negro, que, em princípio, não devia ter proferido aquela simples palavra pertencente à língua de Camões, como que à espera de algumas explicações. E elas não tardaram.
- Estão a gostar de Moscovo?
- Mas, você fala português? – perguntei-lhe, estupefacto.
- Mais ou menos. Há alguns anos, durante a guerra do Afeganistão, conheci dois empresários brasileiros, pois, durante três meses, fiz parte dum grupo de soldados que olhava pela sua segurança, e aprendi a vossa língua. Como deve imaginar, naquela altura, passávamos algumas horas e até dias, dentro de casa à espera que existisse segurança para nos movimentarmos dentro de Kabul. Muitas vezes estávamos horas a fio a tentar conversar. Eles a aprofundarem o russo e eu a tentar perceber a sua língua.
- Mas, nós somos portugueses.
- Eu sei. Mal o vosso grupo entrou na Praça Vermelha, imediatamente reparei na bandeira que aquele rapaz de calções azuis trazia nas mãos.
Claro que o rapaz de calções azuis era o Pedro, um companheiro especial, que tem por hábito trazer consigo uma bandeira nacional, sempre que este grupo de portugueses se aventura, durante o Verão, e já alguns anos a esta parte, a viajar por este mundo de Deus.
A nossa conversa prolongou-se por mais de uma hora, tempo mais que suficiente para saber que depois da guerra foi guia em Moscovo, durante três anos, acompanhando grupos de turistas portugueses e brasileiros, mas que um acidente o havia atirado para o desemprego, e que a partir dessa altura o que lhe valia era aquele cantinho da Praça Vermelha para lhe dar o sustento. Também me segredou, e porque era um fascinado pelas grandes aventuras marítimas, que um dia gostava de vir a Portugal, para poder ver com os seus próprios olhos o lugar donde Vasco da Gama partira para a sua longa viagem para a Índia.
A dada altura, e no momento em que os sinos da Catedral de São Basílio, mandada construir pelo Zar Iván, o Terrível, ou porque alguma necessidade ou compromisso o obrigaram a levantar-se e seguir o seu rumo, ergueu-se a custo, pegou na sua caixa de lata, que até estava bem composta, limpou meia dúzia de lágrimas que teimavam em molhar-lhe o rosto e virou-me as costas. Depois, e como quem se despede de alguém que se estima, Dimitri, olhou-me fixamente, e disse:
- Até breve, meu amigo.
- Até breve - respondi-lhe eu, no mesmo instante em que as minhas mãos tentaram tocar nas dele. Já não foram a tempo.
É curioso! Não sei porquê, mas no instante em que ele se afastava, lembrei-me dum pequeno texto que li num prospecto relativo a este majestoso monumento, um ex-líbris arquitectónico de Moscovo, e que fazia referência a uma lenda que ajuda a compor na perfeição o cognome de quem o mandara construir. Parece que Ivan ficou tão fascinado com esta catedral que não quis que se fizesse outra igual. Para que isso acontecesse, e porque o seu ímpeto maquiavélico lho ditara, mandou furar os olhos do arquitecto que a projectara.
Num coxear que metia impressão, Dimitri contornou a entrada que dava acesso a tão distinta praça e desapareceu. Ao longe ouviu-se a sirene abafada, vinda dos lados do rio Moscou, e que me estremeceu o peito. Quase em frente, o Mausoleú de Lenin manteve-se indiferente e num silêncio absoluto, reflexo de um passado quase esquecido e com poucos seguidores.
No dia seguinte, ainda arranjei algum tempo para voltar à Praça Vermelha e procurei o nosso amigo da véspera. Queria conversar mais um pouco e saber outros pormenores, aqueles que ficam sempre em aberto. Mas foi em vão. No seu lugar, encostado a um dos muros que cercam a Praça Vermelha, dormitava, agora, uma velhota vestida de azul, cor de mar. À sua frente estendia-se uma toalha, também ela azul, sarapintada de tons brancos, e que servia de base a uma dúzia de pequenos barcos feitos de conchas, para turistas comprarem. Por coincidência ou não, a cruz ortodoxa, feita dum material dourado resplandecente, igual à que vira nas mãos de Dimitri, ocupava o centro da toalha. O que estava ela ali a fazer?
Como que levado por um pressentimento repentino e mais que justificado, apenas uma ideia me veio à cabeça. Se calhar o nosso homem, arranjou vaga num navio qualquer e fez a sua última viagem. Talvez tenha ido ver com os seus próprios olhos o lugar donde Vasco da Gama partira para a Índia.
«Às vezes, não são os caminhos traçados pelos homens que nos levam às metas tão ansiadas. São os desejos, aqueles que nos remexem a vontade, que, e tal qual o esvoaçar natural do vento mais forte, nos agarram nas mãos e nos arremessam contra a infinitude do nosso destino.»
Carlos Afonso

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