domingo, 7 de novembro de 2010

O mistério da Praça 25 de Abril

Como faço quase todos os dias, nessa sexta-feira de 22 de Outubro tomei o meu café na pastelaria Peixoto, um espaço agradável e familiar, situado a pouco mais de cinquenta metros de minha casa, ao mesmo tempo que ia pousando a minha atenção no televisor que se segurava impávido e sereno à parede, bem em frente aos meus olhos. Da novela que estava a ser transmitida, nada adveio que me preenchesse o interior, situação que não se repetiu, quando peguei num jornal de Fafe, que entretanto me fora entregue por um vizinho de mesa, e li uma notícia do que aconteceu há mais de um século, mas que não estava desactualizada. Assinada por um amigo que conheço, a mesma reportava-se a uma visita do nosso rei Dom Carlos I a Fafe, em 1906, extraída do Jornal Povo de Fafe de 1906, contando alguns pormenores da sua curta permanência nesta sala de visitas do Minho, sem esquecer o copo de água que o Sr. Dr. Florêncio Monteiro oferecera ao monarca.
É curioso como certos instantes, aparentemente pequenos, nos preenchem a vida e nos conduzem para realidades maiores!
Decidido a fintar a rotina dos dias, ignorei um compromisso para a tarde dessa sexta-feira e deixei-me conduzir por uma liberdade que me oferecia as ruas da cidade e os seus jardins. Subi a rua José Cardoso Vieira de Castro, deambulei ao sabor dos instantes e pouco tempo depois um banco de pedra da Praça 25 de Abril convidou-me a sentar, e eu aceitei.
Ao longe, uma neblina inesperada ofuscou o poente anunciado. Ao perto, a correria alegre de dois miúdos fez-me olhar um tempo sem volta. É engraçado! Os anos passam, os dias correm, mas certos gestos mantêm-se firmes na sua inocência, ávidos de nunca mudarem.
Sem que o esperasse, um barulho mais estridente dum automóvel antigo, provavelmente relíquia de museu, fez-me reparar no seu trabalhar ainda acertado, assim como na buzinadela com que o mesmo brindou os miúdos de há bocado, que não tiveram o cuidado de usar a passadeira, quando passavam de um lado da rua para o outro. Depois de perder o rasto do dito automóvel, que se dissipou no seu destino, voltei os olhos para os jardins que enfeitam este coração da cidade e por ali os deixei ficar.
A dada altura, e porque os momentos nem sempre são programados, um intenso reflexo, diferente dos que já tinha visto, chamou-me para um canteiro ainda florido, apesar de estarmos em pleno Outono. «O que será aquilo?» Questionei-me, instintivamente. Curioso, fiz um leve esforço, ergui-me, sorrateiramente, e descobri a origem de tão especial brilho. Era um copo. E pelo seu formato e qualidade, imediatamente comprovei que era de cristal e que já tinha um bom par de anos.
Sem me fazer rogado, peguei nele e sentei-me num banco de pedra, o mesmo onde estivera ainda há pouco. Olhei-o contra o sol e comecei a tentar perceber a origem de tão raro achado.
Estava eu nesta inquirição interior, quando na minha frente apareceu um colega de profissão e, sem mais, logo me questionou acerca do que estava a suceder à sua frente. Sem respostas conclusivas para dar, e depois de uma breve exposição, limitei-me a dar-lho para as mãos. Ele olhou, tornou a olhar e chegou à conclusão de que o acontecido devia ser divulgado e investigado, pois o dito copo era bastante antigo, talvez do princípio do século, e estas coisas não andam aos pontapés em jardins públicos. Bem! Nesse momento, o colega pousou o copo numa berma do banco de pedra, onde, agora, ambos nos sentávamos, e após mais alguns acrescentos, mudamos de conversa, pois a cidade e o mundo eram compostos de outras novidades. Palavra para aqui, palavra para acolá, vários temas foram abordados, um ou outro mexerico evidenciado, enquanto as horas lá iam seguindo o seu ritmo.
Ao olhar para o relógio, e eles foram feitos para isso, reparei que estava na hora de regressar a casa. Assim, e depois de uma primeira despedida, o meu colega de ocasião ainda me alertou para algo que eu já sabia e que estava relacionada com o mesmo jornal de Fafe que eu havia lido na Pastelaria Peixoto. Era a tal notícia da passagem do rei Dom Carlos I, há mais dum ano também por Fafe, assim como o pormenor do Sr. Dr. Florêncio Monteiro ter oferecido um copo de água ao monarca. Nesse momento, e quando a palavra copo veio à tona, os nossos olhos entrecruzaram-se, sendo de imediato, e tal qual uma pedrada certeira, dirigidos para o meu estranho achado e que ainda permanecia impávido e sereno sobre o banco de pedra. Em simultâneo, e mais parecendo um dueto afinado, devidamente contextualizado numa récita vespertina, umas simples palavras se soltaram da nossa estupefacção:
- Será o mesmo copo?
Do horizonte desprendeu-se o anoitecer e, no meu íntimo, escutei, claramente, a mesma buzina do automóvel antigo que há mais de uma hora havia chamado à razão aqueles dois miúdos que, num tom de irreverência, ignoraram a passadeira.
Carlos Afonso

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