segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Oficina de escrita criativa VIAJAR PELAS PALAVRAS


         Com os objetivos de desenvolver, de forma lúdica, a expressão escrita, promovendo formas alternativas de expressão e de  desenvolver métodos e técnicas de planificação e produção de diferentes tipos de texto, o Núcleo de Artes e Letras de Fafe promove a oficina de escrita «VIAJAR PELAS PALAVRAS» sob a orientação do professor Carlos Afonso.
          As inscrições são limitadas e devem ser feitas ou através do número de telemóvel 964016861 ou dos endereços nalf@sapo.pt   ou carlosferreiraafonso@hotmail.com.
          Esta iniciativa que se desenvolve nos dias 3, 10 e 17 de Novembro, com as sessões "Escrever porquê e para quê", "Pega na palavras e caminha" e "Conta-me a tua história", respetivamente, das 10h às 13h, na Biblioteca Municipal, como se pode ver no programa.
        Como motivação, este evento será antecedido do sarau cultural «As palavras dizem o que sinto» como motivação. Neste sarau motivação, que tem por base um conto original de Carlos Afonso, participam os Escritores: Jorge Oliveira, Artur Coimbra, Augusto Lemos, José Rui Rocha, Pompeu Martins, Carlos Afonso, Acácio Almeida, Conceição Antunes, José Peixoto Lopes, os jovens poetas das Vozes da Secundária e a poetisa brasileira Carmen Cardin que apresentará o seu último livro «A música das estrelas». Para enriquecerem o momento, também participam os Músicos da Academia de Música José Atalaya convidados: Coro de Pais e Amigos da Academia de Música José Atalaya sob direcção de Tiago Ferreira; Ana Catarina Costa (Flauta); Giosuè Di Vincenti (piano); Eduardo Teixeira; Simão Silva; Pedro Marques e Alex Fernandes (saxofone); Filipa Daniela Leite e Tânia Carina Ferreira (Clarinete).
 
“ Escrever é também não falar. É calar-se. É gritar sem ruído”
Duras, Marguerite



 
 
 
 
 

 


 

 

 

 

 

 

 




 

 

 


                  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

      

 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A menina mais triste do mundo


  


A história que vos vou contar tem como personagem principal uma menina de cabelos pretos que um dia escreveu numa folha a fingir de carta de que era a menina mais triste do mundo.

Era o primeiro dia de outubro de 2012 e tinha acabado de lecionar a minha última aula. Sem pressas, coloquei a pasta às costas, despedi-me de dois colegas que, entretanto, encontrara, saí da escola e caminhei na direcção a Fábrica do Ferro. A dada altura, e já depois de ter passado pela Padaria Silva, encontrei uma velha senhora que trazia nas suas mãos uma pequena pasta amarela. Porque a conhecia, parei e ofereci-lhe um beijo amigo. Sorridente, a velha senhora retribuiu-me na mesma moeda e ainda me acrescentou um breve elogio:

- Ó professor, gostei de o ver na televisão e falou muito bem! Sabe, achei tão interessante o que estão a fazer em Aboim, que já disse à minha neta que num dos próximos sábados a havia de levar lá.

Depois de termos trocado mais algumas palavras, veio à conversa o facto de ela trazer nas mãos a pequena pasta amarela. Um pouco atarantada, e só depois de olhar para os lados para ver se não passava ninguém que pudesse escutar o que ia dizer, a minha amiga de encontro sempre adiantou:

- Eu nem sei que lhe diga. Acontece cada coisa às vezes que o mundo até parece que vai virar às avessas. Não quer você saber que hoje a minha neta pregou-me um susto dos grandes. O que me assossega, é que o meu homem já a encontrou e já a levou para casa da minha filha. Ai, meu Deus! Que aflição!

Perante este intróito tão inquieto, a minha atenção curvou-se totalmente perante as suas palavras, pois eu queria perceber o que se tinha passado. Sem pressas, escutei… escutei… e tudo ficou mais claro para mim.

De repente um barulho mais forte que se despegou de uma motorizada que por ali passava, fez-nos aquietar a voz. Enquanto o sossego não voltava, olhei sem querer para o relógio e vi que já não era cedo. Conformados com o adiantado da hora, demos a conversa por acabada, espedimo-nos e cada um seguiu o seu caminho. Eu fui para casa e a velha avó foi levar a pasta da neta ao apartamento onde ela morava com os pais. Ao longe, o barulho da motorizada ainda era audível.

Mas afinal o que se tinha passado com a neta da minha amiga?

Caros leitores, às vezes as coisas mais simples são as que traduzem a maior verdade, e só tenho pena que a neta da velha senhora minha amiga não tenha conseguido os seus propósitos. Pois, se isso tivesse acontecido, se calhar, as coisas em Portugal poderiam levar outro rumo e talvez, quem sabe, os nossos políticos aprendessem uma grande lição.

 Ora bem, mas afinal o que aconteceu?

O que aconteceu foi o seguinte. A pobre criança estava em casa da avó, como costuma estar todos os finais de tarde, depois de vir da escola, e escutou na televisão que Portugal vivia uma crise muita profunda e que muitos pais já não podiam dar aos seus filhos certos confortos, por mais simples que eles fossem. E o que a preocupou ainda mais foi o facto de haver pais que já nem dinheiro tinham para comprar livros para os filhos.

Perante verdades tão assustadoras que escutou na televisão, a menina, que andava apenas no segundo ano da Escola Primária, não quis saber de mais nada, pegou numa folha e tratou logo de escrever uma pequena carta dirigida a quem de direito. No seu interior, apenas se lia o seguinte “Sr. do governo, não quero que os meus pais fiquem sem dinheiro. Eu preciso muito de que a minha mãe me compre aquele livro que tem na capa um ursinho a brincar com uma bola. Está a ver qual é?”. E, no final da folha, e da forma mais singela que se pode imaginar, assinava apenas assim “A menina mais triste do mundo”. Depois, e sem que a avó pudesse fazer alguma coisa, meteu a carta sem envelope debaixo do braço, desceu as escadas, abriu a porta e desatou a correr na direção dos correios.

Agora imaginem os leitores se o avô, alertado pela esposa da fuga da neta, a não tivesse encontrado já bem perto dos correios e a não tivesse impedido de enviar a tal carta dirigida ao “Sr. do governo”?

 

Carlos Afonso

 

 

 

 

        

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

UMA FLOR PARA O MEU PAÍS



 

 

 
 
 
 
 
 
 
Se do castelo jaze quase arrancado o estandarte
Daquele guerreiro sem medo estampado,
Que no campo sofrido da batalha
Jurou com o sangue arrancado pela espada
As linhas definidas do seu condado…

 

 Se do céu parece cair o derradeiro brilho
Daquela estrela que guiou a caravela
Por mares nunca dantes navegados,
Alumiando no peito arrojado do gajeiro
O grito dos Longes encontrados…

 
Se do livro já não se escuta a sonância do poema
Com aquela estância heróica e acertada
Que um dia, com génio e arte assinalados,
 O poeta arrancou da grandeza do império
Para a cantar por toda a parte…

 
Amanhã, quando abril voltar a acordar,
Pegarei no que a vontade me diz
E, no meio de todo este entristecer,
Encontrarei uma flor que perfume o meu país.


                                                                                      Carlos Afonso

sábado, 22 de setembro de 2012

«Nunca nos roubarão o sol»


 

                                                                                                   

            Amigos leitores, nesta minha crónica gostava de partilhar com a vossa compreensão um instante especial que se me apegou à existência e me trouxe à memória a beleza refrescante das madrugadas. Tudo aconteceu neste mês de Setembro e em Fafe. Não sei como estas coisas acontecem, mas, às vezes, o que vale a esta vida transitória são aqueles momentos únicos que, e sem nós dêmos por isso, nos surgem pela frente e nos mostram que um sonho lindo vale mais do que muitas realidades que magoam.

            Era o meu segundo dia de aulas na Escola Secundária e o trabalho de preparação de aulas e demais afazeres de professor ainda não absorviam em demasia o meu tempo. No entanto, neste meu regresso à lida, nem tudo correra pelo melhor. Uma conversa de circunstância que havia tido nessa manhã na escola, tinha-me deixado incomodado e um pouco sem jeito. Eu sei que as coisas nem sempre correm como nós queremos e que a vida está pintada de múltiplas cores. Mas quando nos apercebemos de que um projecto que definimos como interessantíssimo e em que acreditamos, e que vemos na sua consecução uma mais-valia para as gentes da nossa terra, não ser verdadeiramente entendido por certas pessoas, isso chega a doer cá dentro! E qual a razão deste meu reagir quase instintivo? Apenas porque acho que as razões de todas as incompreensões são culpa minha. Se calhar não fui capaz de explicar o que se pretendia e as coisas não se construíram consoante o conveniente, ou então a minha ingenuidade e impreparação conduziram a um desfecho imperfeito. E foi imbuído neste estado de espírito algo acinzentado que peguei na minha vontade e fui caminhar pela cidade.

            O céu estava azul. Na aragem pressentia-se um cheiro longínquo de incêndio e as ruas insistiam num ruído chato e algo incomodativo. Sem hesitar, subi ao Jardim do Calvário e sentei-me num dos bancos que por ali se dispunha. Se o meu corpo encontrou de imediato algum repouso, o meu pensar e sentir ainda mantinham a inquietude. Nisto, uma voz conhecida dirigiu-se-me numa dimensão bem jovial:

            - Olá, professor, já uns tempos que o não via.

            Para surpresa minha, e que me deixou satisfeito, o meu olhar deu de caras um antigo aluno. Que surpresa! Ele, agora, já era um homem feito, já acabara um curso superior há uns anos e já era pai de uma menina de cinco anos, mas o seu sorriso e a sua boa disposição continuam intocáveis. A nossa conversa foi prolongada, onde o passado, o presente e o futuro se interligaram. A dada altura disse-me com uma certa naturalidade que me influenciou:

            - Sabe, professor, neste momento estou desempregado e a minha esposa trabalha num escritório em Guimarães, mas há dois meses que não lhe pagam.

            Muito preocupado, tentei saber da sua real situação e da sua disposição perante uma conjuntura tão adversa. A sua resposta foi curiosa:

            - Professor, lembra-se de uma vez eu ter feito uma composição de que o professor gostou muito e que até obrigou os outros alunos a escrevê-la no caderno? Ela tinha como título “Nunca nos roubarão o sol”, lembra-se?

            Claro que eu me lembrava. Numa de vida de professor de liceu, há certos instantes e determinados alunos que nunca se esquecem. A composição que ele fez na altura foi para mim uma agradável surpresa. Um menino de catorze anos a escrever com aquela ousadia e certeza fascinaram-me completamente.

            - Pois, professor, a vida, neste momento, não me está a correr muito bem, mas eu não sou homem de desanimar. Eu tenho um sonho lindo. É verdade, o professor falava muito em sonhos lindos. Ainda acredita neles?

            - Claro que acredito – respondi de imediato, ao mesmo tempo que um sorriso emocionado me tocou o rosto.

            -Pois, professor, eu também tenho um sonho lindo e que irá ter uma excelente serventia para a minha filha. E porque continuo a olhar para si com muita amizade, terei muito gosto em lho revelar. Eu tenho a certeza de que o vai entender e me vai dar toda a sua atenção.

            Era de facto um sonho lindo! E que forma acertada ele o apresentou! De certeza que no momento em que o currículo do meu antigo aluno chegar ao sítio certo, as portas do tão ansiado emprego se abrirão de par em par, para que a sua vida continue honrada e a sua filha venha também a acreditar em sonhos lindos.

            Antes da despedida, e isso só aconteceu quase no final da tarde, a nossa conversa também acabou por abordar o que nessa manhã me tinha acontecido na escola e que me havia incomodado tanto. E porque não podia ser doutra maneira, ele acrescentou num ar bem presenteiro:

- Ora, ora… não me preocupe tanto com o acontecido, pois se alguma coisa não correu bem só é preciso melhorar as circunstâncias, explicar novamente para quem ainda entendeu e continuar com o seu sonho lindo, pois a cultura de Fafe e as pessoas que habitam a nossa terra só têm a ganhar com isso. E sabe que mais, em Abril terei muito gosto em estar do seu lado no decorrer das Jornadas Literárias. Até lá, temos de nos encontrar mais vezes.

Depois de mais uns acrescentos de parte a parte, um forte abraço de despedida fez-nos sorrir em simultâneo. Quase de seguida, e enquanto começava a descer a escadaria do Jardim do Calvário, ele ainda teve tempo para me arremessar um punhado palavras que me acertaram em cheio no peito e me fizeram olhar o céu.

            - Adeus, professor, e não se preocupe, pois por muito que as circunstâncias nos queiram atrapalhar a vida, nunca nos roubarão o sol.

 

Carlos Afonso

 

           

             

sábado, 8 de setembro de 2012

O último barco


 

 



 

          Neste meu voltar de férias e neste novo regresso ao nosso Povo de Fafe, a quem desejo as melhores felicidades, quero partilhar com todos os leitores uma história quase totalmente real, onde uma das personagens sou eu próprio, ocorrida num final de tarde de Agosto, nas Caxinas, Vila do Conde, bem em frente à igreja do Senhor dos Navegantes. Eu sei que os acontecimentos, às vezes, são fruto do acaso, mas noutras vezes, provavelmente, são devidamente facultados por quem de direito e com poder para isso.

            O final de tarde estava ameno e sem qualquer vestígio daquela nortada tão usual por essas paragens. O mar estava esplêndido e oferecido para os que quisessem dar um derradeiro mergulho. Na marginal, pessoas de todas as idades passeavam-se e saboreavam os últimos raios de luz. No céu, algumas gaivotas mostravam a sua liberdade e desejos inquietos. No muro de granito pousado num amontoado de pedras, e que separa a praia do passeio, em frente à Igreja do Senhor dos Navegantes, estava uma velha senhora de olhar ausente, voltado para o horizonte que absorvia a grandeza do Atlântico. Parado, perante todo este quadro vespertino, a minha presença e curiosidade.

A senhora acima referida, e que mostrava uma atitude estranha perante o que estava ali a fazer, tinha ao seu lado uma pequena quantidade de conchas coloridas, algumas estrelas-do-mar secas, três búzios, variados objectos feitos a partir de materiais marítimos e um pequeno barco. A roupa que lhe cobria o corpo já carcomido pela muita idade era totalmente negra, à exceção de um finíssimo fio de ouro que se lhe pendurava do pescoço. O curioso disto tudo era o facto de esta vendedeira não mostrar qualquer interesse em vender a sua mercadoria. Na verdade, em vez de estar voltada para as pessoas e tentar aliciá-las e fazer negócio, mostrava uma postura oposta. Estava de costas voltadas, a sua atenção era o mar longínquo. Apenas um pormenor, a sua mão direita, onde se podiam ver as unhas algo descuidadas, estava a tocar o pequeno barco exposto, que, de vez em quando, estremecia, talvez movido por um sentimento mais profundo. Perante este cenário, não resisti e dirigi-lhe a palavra:

- Senhora, por favor, quanto custa o barco?

Como não obtive resposta, repeti novamente a pergunta e só à segunda tentativa é que obtive uma desinteressada atenção.

-Desculpe, está a falar comigo?

- Sim. Estou a perguntar-lhe o preço do barco.

Apressadamente, agarrou com força o pequeno barco, ergueu-o e encostou-o ao peito. Depois, olhou-me com determinação e disse-me num tom zangado.

- O preço do barco? Nem pensar. Ele não está à venda. Leve o que quiser que não lhe levo nada por isso, mas o barco é meu.

Meio incrédulo com o que acabara de ouvir, e porque queria perceber o que se estava a passar, teimei mais um pouco.

- Desculpe se a ofendi, eu apenas gostava de saber o preço do barco, pois acho-o muito bonito e pensei que era para vender.

Com alguma dificuldade, a dita vendedeira alterou a sua postura. Virou-se para mim, pousou o barco com cuidado, limpou o rosto com um lenço meio engelhado, levantou-se e confidenciou-me algumas palavras.

- Senhor, perdoe-me, eu às vezes não sei o que digo. Sabe, faz hoje anos que o meu marido morreu e não me sinto de acordo com o seu entendimento.

- Não se preocupe, por favor, volte a sentar-se que eu também me sento.

Já sentados, e depois de dois sorrisos partilhados, a nossa conversa começou de mansinho e, como era de prever, foi logo de encontro ao assunto do barco. Sem qualquer senão, percebi logo o porquê do comportamento da velha senhora. Coitada! A vida, por vezes, é bem madrasta. Mas o que é que havemos de fazer?

Há precisamente vinte e cinco anos o barco do seu marido, num fim de tarde tempestuoso de Agosto, altura em que o mar e o céu se haviam unido na tormenta, naufragou, facto que causou uma grande desgraça nas gentes das Caxinas. E, ao contrário dos outros cinco pescadores que iam na embarcação, e cujos corpos haviam dado à costa já sem vida, o do seu marido perdera-se para todo o sempre nas profundezas do oceano. O barco naufragado tinha o nome «Nas mãos de Deus» e por incrível que pareça a pobre vendedeira ainda esperava que o seu homem regressasse, de uma forma ou outra, pois ele continuava nas mãos de Deus, e o que faltava, e segundo o seu acreditar, era apenas um barco que o trouxesse.

E o que é que o pequeno barco, aquele que estava ali pousado no muro ao lado das conchas e demais material tinham a ver com o que aconteceu com o verdadeiro que conduziu o marido ao naufrágio?

Caro leitor, o pequeno barco era uma imperfeita réplica da embarcação do marido. Ela tinha mandado fazer várias, e aquela era a última. Era o último barco que lhe podia trazer o marido. Na verdade, em todos os aniversários do naufrágio da embarcação do marido, ela tinha por hábito lançar a pequena réplica ao mar para que ela lhe resgatasse o que tanto esperava. Segundo ela me acrescentou, provavelmente porque reparou na minha incredibilidade, só iria fazer mais uma tentativa. Caso o seu homem não voltasse, então iria ela ter com ele.

- Sabe, o Senhor dos Navegantes esta a par de tudo e eu sei que tenho a sua aprovação. Este barco que aqui tenho é o último e se ele não me trouxer o meu marido, então vou eu ter com ele. Compreende? Agora se não se importa, siga o seu caminho, que eu tenho uma sina para cumprir.

Sem que eu quisesse, e ao mesmo tempo em que o relógio da igreja batia compassadamente as horas, percebi que estava na hora de ir. Ao longe, o sol já mergulhara de vez no seu repouso anunciado. Ao perto, senti que a roupa da senhora já não era negra. Meio confuso, aceitei uma pequena concha pintada das cores do mar que a velha vendedeira me colocou nas mãos e segui o meu caminho, sem olhar para trás.

Nos dias que se seguiram, ainda procurei a velha senhora, mas nunca mais a encontrei. De certeza que embarcou no último barco e foi ao encontro do seu homem.

 

                                                                       Carlos Afonso

domingo, 19 de agosto de 2012

De Viana do Castelo para Fafe, com amor e tradição






Como tem sido hábito, ao longo dos últimos anos, nas minhas necessárias férias de verão, Vila do Conde e o seu imenso Atlântico repleto de azul e outros tons frescos têm a sina de emergir do sítio encantado onde habitam e mostrarem-se aos meus olhos e à minha alma de uma forma acolhedora e espraiada. Muitos são os momentos agradáveis e, por vezes, inesperados que este período de descanso me proporciona. Muitos são os amigos que reencontro. Muita é a maresia que se me oferece todas as manhãs. Muitas são as gaivotas que me levam no seu voar. Muito é o vento desassossegado que nem sempre me aborrece e muitos são os espaços que aproveito para visitar. E é no meio de toda esta intensidade e dias cheios de cor e mar que as festas da Sr.ª da Agonia de Viana do Castelo me convidam com muito amor.

Na companhia da minha esposa Liana, do meu cunhado Lourenço, dos meus compadres Nanda e Pedro e dos amigos Antonieta e Zé Manuel, peguei na curiosidade e na vontade de presenciar o que é belo e genuíno, e fui assistir ao majestoso desfile etnográfico do dia 18 de Agosto, acontecimento enquadrado nas festividades, e que este ano tinha como tema a doçaria.

As ruas da Princesa do Lima estavam condignamente engalanadas. As pessoas estavam completamente integradas no verdadeiro espírito de Viana, evidência que se constatava nas suas roupas tradicionais. As camisas bordadas e os lenços típicos eram aos milhares. Os sorrisos carregados de orgulho e beleza eram incontáveis. A Igreja de Santa Luzia, bem lá no alto do monte, fazia-se notar por todo o lado, facto que decorava o casario e as praças com um tom de respeito e fé.

Como era de prever, o evento cultural foi um esplendor, onde a História de toda uma região se entrelaçava com o tipicismo, as memórias, a doçaria, a recriação, a música, os trajes, os bailaricos, os usos e as tradições ao longo dos tempos. Sem sombra de dúvida que o que os meus olhos presenciaram foi duma dimensão cultural que nos torna pequenos perante a vontade e a alma do povo de Viana.

Para além das muitas associações culturais e recreativas da cidade e de todas as freguesias do concelho participantes nesta mostra etnográfica, e que o fizeram com zelo e saber, tive o imenso prazer de ver desfilar o Grupo de Bombos de St. Estêvão de Regadas. Fiquei muito feliz com o facto, pois os nossos fafenses apresentaram-se com estrondo e muita beleza, ou não fossem eles de uma das aldeias mais ricas em tradição do concelho de Fafe.

Como eu gostava que um dia Fafe conseguisse organizar uma mostra idêntica à de Viana! Gente, desejo e tradições não faltam nas terras de Fafe, como já se pode vislumbrar nas recentes Jornadas Literárias de Fafe, e mais concretamente na mostra que decorreu no Fafe dos Brasileiros. Mas penso que ainda conseguimos fazer muito mais e, quem sabe, igualar Viana do Castelo.  Por mim, tudo farei para que isso aconteça. Por isso, espero que muitos outros fafenses se juntem a este meu sonho e façamos da nossa terra também um exemplo de cultura e tradição.

Foi, sem sombra de dúvida, uma tarde de sábado especial. De facto, Viana do Castelo é rica e única na sua forma de encarar as memórias e os usos. Mas, se Viana é amor, Fafe é também um amor de cidade.

                                                                       Carlos Afonso

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Para o meu amigo, o Sr. Zé do “Talho”





          Lembro-me como se fosse hoje, o dia em que conheci o Sr. Zé do “Talho”, um homem simpático, alegre e muito prestável. Um homem que eu conheci há mais de vinte anos e que Deus, há poucos dias atrás, achou por bem levá-lo para junto de si.

É com uma mão cheia de lágrimas a escorrerem-me pelo rosto que estou a escrever este artigo, todo ele direcionado para o meu amigo, o Sr. Zé do “Talho”, como forma de lhe prestar uma sincera homenagem. Eu sei que a morte tem por costume afastar-nos, visualmente, de pessoas de quem gostamos. O que vale é que o coração e a memória são mais abrangentes, e guardam para todo o sempre o que nos é querido. De facto, a morte apenas nos torna levemente invisíveis. Por isso, para mim, nada mudou. Continuarei a conviver com aquele sorriso convicto e positivo que, habitualmente me era oferecido pelo meu amigo, quando nos cruzávamos ao acaso ou de propósito na rua. Só lamento, com toda a veemência que é possível, o sofrimento e a dureza que acompanharam os seus últimos passos neste mundo material e nem sempre apetecível. Não era necessário tanto padecimento só porque estava na hora de uma viagem diferente. Mas que havemos de fazer? Os caminhos nem sempre nos levam onde nós gostaríamos de chegar, e Deus, às vezes, tem por hábito mostrar os seus desígnios de uma forma que nos dá que pensar.

Conheci o Sr. Zé do “Talho” na altura em que morava na rua Monsenhor Vieira de Castro, num apartamento junto ao campo de futebol do Fafe, por cima da actual Escola de Bailado de Fafe. Tomei contacto com ele, porque, nesse tempo, ele trabalhava num talho mesmo em frente do sítio onde eu morava, e, porque me era conveniente, tornei-me seu cliente. Sempre me serviu com qualidade e respeitosamente, facto que me levava a ir ao seu estabelecimento não só para fazer compras como também para conversar e por ali ficar algum tempo.

Muitos episódios podia colar neste artigo para mostrar a minha rica convivência com o Sr. Zé, mas, para já, não é relevante contá-los todos. Por isso, vou limitar-me a fazer referência a dois casos, e que ajuda em muito a retratar o grande homem que o meu amigo foi e que continua a ser.

A sua grande generosidade levou-o múltiplas vezes a convidar-me para assistir da varanda de sua casa, situada no Lombo, no lugar onde a lenda diz que apareceu Nossa Senhora, para assistir às cerimónias religiosas do regresso da Nossa Senhora da Misericórdia a Antime. Nunca usufrui desse préstimo porque não quis, mas o convite hospitaleiro foi-me direcionado, como referi, várias vezes.

Recordo, também, o momento em que lhe contei que ia mudar de casa, e que ia morar para os lados da Fábrica do Ferro, acrescentando-lhe de seguida de que a minha filha gostaria de ter um cão, pois o espaço assim o permitia. Se bem lhe disse a intenção a minha filha Ana Teresa, melhor foi o resultado da nossa conversa. Pois, meus caros leitores, mal a tarde desse mesmo dia chegou, e por intercessão do Sr. Zé, a sua esposa, uma mulher formidável e que também muito admiro, estava a bater à minha porta com um pequeno e fofo cachorrinho, filho de uma cadela que morava com eles. Foi uma grande alegria lá em casa. Colocámos o nome de Póli ao cachorro e que ainda hoje é vivo. Tem 15 anos e continua fino com um alho, como costuma dizer a minha madrinha.

Eu sei que as circunstâncias nem sempre são o que parecem e o acaso ocorre sem que a racionalidade humana o entenda, mas, caros leitores, o que vos vou revelar é tão verdeiro como serem os lírios do campo as flores mais perfumadas que conheço. Tenho tido, ao longo destes anos da minha existência, muitos amigos que já fizeram a sua última caminhada para Deus e que me foram especiais, mas só alguns é que tiveram um merecimento especial. Um merecimento que me levou à necessidade partilhar com o leitor algumas ocorrências que não quero que fiquem na posse apenas de quem já partiu e de mim próprio, que ainda ficou mais algum tempo neste lugar de passagem.

Meu amigo Sr. Zé do “Talho”, obrigado pelas suas palavras, simplicidade, convivência e amizade. Até breve.

Carlos Afonso