domingo, 30 de outubro de 2011

No dia em que os cegos começaram a ver…




Neste mundo de Deus, há vários tipos de cegos: os que não veem, porque os seus olhos se cerraram para a luz; os que não enxergam, porque o seu entendimento não os autoriza; os que não contemplam, porque não lhes interessa ver; os que não descortinam, porque lhes esconderam o sol; os que não avistam, porque lhes arrancaram os destinos; e por aí fora. O que vale é que o mundo também se contempla com a alma, os gestos e o coração. Os olhos são apenas uma simples circunstância, no meio da farta paisagem, que é o mundo.
Francisco, já farto de tanta insensibilidade, e até algum desprezo insano, por parte dos colegas de administração, deu um murro na mesa, fechou o livro e disse:
- Até amanhã.
Saiu apressado da sala de reunião. Ignorou o elevador. Desceu as escadas. Atravessou o átrio. Não cumprimentou o porteiro. Virou à direita. Contornou o gradeamento da empresa. Entrou no café. Sentou-se na mesa mais afastada do balcão. Pediu um café. Esperou um pouco. Tomou o café de um só sorvo. Esperou mais um pouco. Cerrou os olhos. Ignorou o espaço que o sustinha. Olhou no escuro e, após breves instantes, sorriu.
O que será que ele via? Como se pode justificar tão estranha atitude? Será que uma demência qualquer se apoderou do seu comportamento?
Deixemo-nos de deduções e mergulhemos no seu sorriso.
Bem no fundo da sua fúria, causada pela insensibilidade dos seus colegas que não perceberam as suas reais intenções, um sol esverdeado ergueu-se no horizonte e a empresa onde trabalhava o Francisco deu sinal de si. A quase certa falência da mesma levara a que algumas hipotéticas e necessárias soluções fossem apresentadas na reunião da administração. Claro que Francisco trouxe a sua.
Ora se os brinquedos que a sua empresa produzia não estavam a ter a aceitação desejável no mercado, havia que redefinir as estratégias e promover a criatividade. Talvez assim as coisas mudassem de sentido. Foi a pensar nesta possibilidade que o nosso trabalhador da Brincogal orientou as suas disposições.
E por que não associar aos brinquedos excertos de textos de vertente literária? Por exemplo, inserir, numa face dos pequenos, comboios um excerto do poema de Fernando Pessoa que fala do comboio “E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão/Esse comboio de corda/Que se chama coração”. Ou gravar um excerto do poema “ Trova do vento que passa” de Manuel Alegre num brinquedo que sugerisse vento. Ou nos brinquedos de praia, excertos, que falassem de ambientes marítimos, de textos de Sophia de Mello Breyner, e por adiante. Assim sendo, poder-se-ia dizer que se estaria perante textos-objecto, com carácter lúdico, pedagógico, literário, carregados de pedaços de vidas. Um dia, quando o brinquedo perdesse a sua utilidade de brinquedo, poderia transformar-se em recordação de estante ou na alma de um poeta. Um dia, quando a criança já não visse no brinquedo a serventia de brinquedo, olharia para ele como a página de um livro ou um suspiro de coração.
Era este sonho todo que morava nos propósitos de Francisco, e que nesse seu cerrar de olhos conseguiu ver, numa outra realidade. Não é preciso acrescentar que nesse dia, e depois de tomar aquele café, e depois da incompreensão dos seus colegas, que o imaginativo trabalhador salvou a sua empresa. Sem sombra de dúvida que o que ele viu e constatou, bem dentro de si, cheirava a um futuro de verde pintado. E porque podia vir a ser útil, e porque eu, narrador de serviço, lho facultei, o nosso amigo roubou do seu produtivo devaneio uma pequena recordação. Era apenas um velho brinquedo, um pequeno carrinho de mão, já rachado, mas que trazia gravado bem no seu interior uma quadra de António Aleixo: “Porque a vida me empurrou/caí na lama, e então/tomei-lhe a cor, mas não sou/a lama que muitos são.” Era, sem sombra de dúvida, um excelente antigo brinquedo, carregadinho de moralidade e estilo.
Quando Francisco reabriu os olhos, a existência, a que nós lhe chamamos realidade, mostrou-se-lhe benignamente airosa. Mais convicto do que nunca, voltou para a empresa. Cumprimentou o porteiro. Subiu as escadas e foi ao encontro dos colegas de administração, que ainda se encontravam, à procura não sei do quê, no mesmo sítio onde os havia deixado.
Admirados, estranharam este voltar de hoje, e não amanhã, sorridente e, estranhamente, persuasor. Sem mais, Francisco colocou o tal carrinho de mão em cima da mesa, sentou-se e entregou-se ao silêncio.
Cada vez mais atarantados, e sem palavras para dizerem, os companheiros de sala entreolharam-se e repararam que as cadeiras se começaram a tornar incómodas. A dada altura, o colega que estava sentado à sua direita, aquele que mais o gozara na primeira reunião, prestou atenção ao objecto que Francisco trouxera, e sempre disse:
- Que interessante! Onde arranjaste isto?
Certo do que ia dizer, o nosso amigo pegou no que restava do brinquedo, e que agora acolhia a quadra de António Aleixo, e declarou para todos os cantos da sala, assim como para os presentes:
- Como não entendestes a minha proposta para salvar a empresa, e porque o vosso discernimento não vos deixou ver a real natureza do meu projecto, fui buscar a maquete a casa.
Nesse mesmíssimo momento, e tal qual o campo ressequido bebe as prenhes gotas de água, e mata a sede, os companheiros de administração do Francisco abriram os olhos e deixaram se ser cegos.

Carlos Afonso (carlosehistorias.blogspot.com)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A gaivota a quem quiseram roubar o mar…



«Era uma vez uma gaivota que morava num velho rochedo, encostado a um mar sem fim. Todas as manhãs, a ave levantava voo e seguia, irrequieta, numa e noutra direcção, mas sempre a roçar a cor do oceano. A sua ligeireza advinha-lhe da amizade que tinha com os ventos norte e leste. A sua beleza foi-lhe oferecida pela maresia. A sua determinação era arrancada, todas as noites, da força das ondas e o seu fado foi-lhe desenhado pelas estrelas. Nunca em toda a sua vida de gaivota deixara de cumprir as suas rotas e desejos, mesmo que se lhe deparassem pela frente tempestades ou sois abrasadores. Mas, numa noite medonha de Setembro, o seu destino quase mudou.
Das profundezas do nada, um nevoeiro muito cerrado ergueu-se, aterrorizador, e envolveu o pobre animal, prendendo o seu fascinante voar. Durante longas horas, a gaivota se debateu com o seu terrível inimigo de cinzento vestido, mais insensível do que as pedras, e nada. A luz dos seus olhos quase se apagou. O seu coração já não sabia o ritmo acertado e as suas penas já estavam cansadas e mortas de sede.
Preocupado, o mar sem fim, que logo sentiu a falta da sua habitual companheira, convocou a força dos ventos, a luz das estrelas e o cheiro da maresia, que, de imediato, se apresentaram, e decidiram por cobro a esta situação.
Como a união faz a força e a verdade dos gestos e do querer é mais vigorosa e bela do que a apatia dos destruidores de sonhos, a ave foi solta e o seu voo foi devolvido ao mar.»
Linda história, não acham? Como é bom colher um final feliz nas histórias que nos contam, principalmente quando elas têm uma moralidade para oferecer.
E porque Deus assim o quer, a nossa vida também tem vários finais felizes, basta, para isso, saber reconhecê-los, quando eles nos aparecem bem à nossa frente, ainda que meio sufocados por nevoeiros tingidos de várias cores. No que a mim diz respeito, sempre vou enxergando alguns finais felizes, nesta minha vida repleta de pontos de partida, e brumas opressores.
A apresentação do romance A que cheiram as Giestas de Conceição Antunes, no dia 16 de Outubro, permitiu-me abrir a alma de uma personagem magnífica, a Laura, para quem os nevoeiros que lhe molhavam os dias não impediram que ela fosse em frente e descobrisse o verdadeiro cheiro das giestas. Um excelente livro, repleto de resistência, determinação, linguagem adequada, ousadias, amor e telas com história. Um autêntico hino à força da mulher. Fafe literário está mais rico.
Desde sempre, o teatro foi uma das minhas predileções. Gosto de vestir a roupagem de uma personagem e tornar-me outro, ainda que com o mesmo coração. Abre-me os horizontes e torna-me maior.
Agradeço ao Grupo de Teatro de Travassós essa oportunidade. A participação em As Mulheres de Atenas, que esta companhia amadora de teatro levou a cena, no dia 16 de Março, no Teatro/Cinema, levou-me a tocar numa história intemporal, numa luta contra os preconceitos, numa experiência única. Ao meu lado estava um grupo de excelentes atores, todos eles mais capazes do que eu. Ao Albino, à Vera, à Isabel, à Natália, ao Orlando, ao Leonel, assim como aos restantes companheiros de função, apenas digo que continuem a amar o teatro e a mostrarem, aos que só vêem nevoeiro no horizonte, que o sol também brilha ao anoitecer. Obrigado pelo vosso apoio e simpatia.
O povo diz, e com razão, que não há duas sem três. Como ele está certo. Ora vejam.
Um dos maiores orgulhos que me alimentam a alma é poder contar com a amizade e o carinho de muita gente de boa vontade. Sem o empenho de muitos braços e o sentir de muitas circunstâncias, as cidades morreriam, os rios morreriam nas nascentes e eu não passaria de uma erva seca, sem vontade de crescer. Participar activamente na visita que o bispo de Bragança/Miranda, meu grande amigo, fez à sua terra natal, que por sinal também é a minha, foi um acontecimento digno de registo.
A tarde de domingo estava amena. A aldeia estava genuinamente engalanada. O povo entoava cânticos de alegria. A passarada estava feliz. Os olivais pareciam mais verdes e as amendoeiras ignoraram as certezas do outono. Tudo estava perfeito. Até os sinos tocaram de maneira diferente…
Com passos emocionados e um sorriso que o define, D. José Cordeiro caminhava pelas velhas ruas, acenando e agradecendo. Beijos, abraços, vozes chorosas, pétalas de flores irromperam instintivamente, e Deus desceu à terra. Foi coisa linda de ver, sentir, tocar e amar. Para o meu amigo de longa data desejo todas as felicidades do mundo. Espero que a sua alma de pastor, o seu peito de amor e o seu farto engenho sejam capazes de ajudar o nordeste transmontano a encontrar as verdades de Jesus. Boa caminhada…
Caros leitores, como devem compreender, o meu texto tem de ficar por aqui, pois o Povo de Fafe tem muito mais para mostrar. Apenas quero terminar com uma frase que me ocorreu um dia, e que me surpreendeu:
O verdadeiro amigo é aquele que pega numa palavra e constrói uma ponte.

Carlos Afonso

sábado, 15 de outubro de 2011

Meu povo, minha alma…


«Era uma vez um grande rio que desaguava todas as horas num mar imenso. Das muitas belezas de que esse rio se gabava sempre que alguém ou alguma coisa o questionava acerca do seu papel como alimentador de mares, ele respondia numa voz húmida e clara:
- Tenho um grande caudal. As minhas margens são acertadas. Os navios que navegam nas minhas margens são belos e luxuosos. Nas minhas entranhas passeiam-se saborosos peixes de prata. E por aí fora… Nunca, e em nenhuma ocasião, esse rio se orgulhou da singela e pura nascente que lhe dava a vida ou dos seus pequenos e anónimos afluentes.
Um dia, Deus, já farto de tanta gabarrice e orgulhos egoístas, decidiu secar-lhe a nascente e desviar-lhe os afluentes para outros sítios.
Coitado do grande rio! Morreu à sede e caiu no esquecimento.»
Amigos leitores, a mensagem que esta pequena história nos oferece, enquadra-se perfeitamente na vivência dos homens, caso estes se esqueçam de olhar na direcção de onde vieram.
O que será de um país dito desenvolvido, quase todo online, rodeado de muito alcatrão, repleto de mentes praticamente brilhantes, frangos congelados e outros enfeites importados directamente da China, se ignora as suas raízes? De certeza que agoniza e apodrece, enrodilhado em cheiros de plástico, pois até o esterco perderá o seu perfume.
O verdadeiro país é aquele que trepa as escadas do futuro sem se desprender das nascentes que o trouxeram ao mundo. O verdadeiro país é aquele que ainda sabe que a broa autêntica não prescinde da farinha milha e o arroz de feijão combina, na perfeição, com um bom naco de carne de porco cozida, daquela entremeada e previamente salgada.
Para quem como eu gosta de se intrometer com o que as nossas memórias ainda guardam, de vez em quando consegue surpreender-se com momentos que nos fartam a existência. Não admira, por isso, caro leitor, que o meu fim-de-semana de 8 e 9 de outubro tenha sido de excelência. Eu explico…
No dia 8, foi um regalo enquadrar-me com os “Leões do Ferro” e participar na sua tradicional “Feira de Outono”. Que bela recriação dos tempos idos! Muito negócio se fez por aqui. Confesso que gostei de olhar, tocar e saborear todo este evento. Ainda bem que esta gente tem memória e engenho!
Se o sábado foi de se lhe tirar o chapéu, meus amigos, o dia 9 também foi impar. Antes de mais, quero agradecer às minhas amigas Etelvina e Fátima pela bela ideia de me convencerem a participar na “Rota da Desfolhada” , lá para os lados de Várzea Cova e Bastelo.
O dia esteve magnífico! O percurso pedestre emprestou-me o cheiro dos pauis, a frescura dos carvalhais, os murmúrios dos ribeiros, as conversas repletas de conteúdo, a música das concertinas, a cor das últimas flores e a fachada rústica do casario! O merendeiro do pessoal de Estorãos encheu-me a curiosidade e não só! A desfolhada foi autêntica e intensa! Os cantares estiveram afinados! As encenações e as decorações estiveram um miminho! A organização a cargo dos Restauradores da Granja, do Grupo de Folclore da Fafe e da Associação Cultural de Várzea Cova não falhou em nada! As vacas vieram engalanadas! Os participantes sorriram a sério! Um dos malhos partiu-se, quando uma senhora fina não lhe deu o melhor uso, mas não aleijou ninguém! A nogueira que estava bem por cima da minha cabeça estava carregadinha de nozes! O baile esteve animado! Mas, o fim da tarde chegou a horas, e o que era bom acabou-se…
Antes de fechar esta minha crónica, pois a minha noite de recordações já vai longa, só vos quero contar mais ma coisinha. Juro que vale a pena. Não querem vocês saber que, a dada altura, uma bela rapariga, que por sinal já fora minha aluna à noite, abeirou-se do meu entusiasmo e disse:
- Professor, quero apresentar-lhe a minha prima. Ela aprecia muito a poesia e gostaria de lhe declamar um poema.
Uma forte emoção fez-me engolir a última gota de um verde branco que ainda se agarrava à minha garganta. Bem ao meu lado, um imponente espigueiro apercebeu-se da minha admiração e estendeu-me um pouco mais da sua sombra. Sem mais, escutei…
A menina tinha apenas cinco anos, ainda não andava na escola primária, chamava-se Inês Alves e declamou um e depois outro poema de uma maneira tão acertada e ingénua, como eu nunca tinha escutado! Os seus olhos eram vivos como a aragem que costuma varrer aqueles sítios! Os seus cabelos eram da cor do sol! O seu sorriso era lindo! A sua atitude era traquina e florida, e um dos poemas era de Fernando Pessoa!
Meu povo, minha alma, como é maravilhoso saborear, de vez em quando, a rudeza das fragas, a pureza das nascentes e a verdade de uma criança!
Desculpem, mas as lágrimas não me deixam continuar…

Carlos Afonso

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Pedaços de um Minho florido


Por muito que as invernias e as noites mais escuras assolem os espaços e as vidas, há sempre um dia primaveril, um luar repleto de afeição ou uma manhã mais doce que ajudam os incautos humanos a percorrer os caminhos ou a olhar mais longe. Se assim não fosse, as estações do ano já teriam perdido o seu sentido e a esperança já se teria afogado nas nascentes.
Para quem vê televisão, lê um jornal, escuta conversas do dia-a-dia, rege a casa, ouve os senãos dos filhos, vai ao mercado ou repara nos lojistas encostados às soleiras das portas, imediatamente sente as arestas afiadas de uma crise repleta de buracos sem fundo, olhos cobiçosos, justificações mal fundadas e desmandos fora de controlo. O que vale é o que se consegue enxergar no outro lado da moeda. O que vale é que ainda há muitas vivências preciosas e gestos do tamanho dos sonhos. E porque o que estou a dizer é verdade pura e com evidências, peguem nas minhas palavras, disponham-nas como quiserem e sigam-me.
Setembro é, por natureza, um mês de contrastes que, só por si, ajudam os homens a vestir roupagens especiais e colher experiências e momentos diferenciados. As vindimas enfeitam os nossos campos, as folhas mostram os seus queixumes, os alunos voltam à escola, as cidades exibem as suas grandezas, os contadores de histórias concluem os seus enredos, as gentes de bem oferecem os seus gestos e as palavras nem todas sabem a ranço e a vazio. Para esta circunstância só nos interessa o que eu vou contar, e que, por sinal, prova que o Minho também se enche de flores nesta época do ano. Ora vejam.
Em maneira de introdução, e antes de vos ofertar alguns pedaços do meu mês de Setembro, peço apenas um copo de água e um olhar mais atento. Obrigado
Para quem não conhece o meu amigo Albano e a sua simpática família, quero dizer-vos que não sabem o que perdem. Claro que eu poderia apresentar aqui mil e uma razões para justificar a minha asserção, mas não o vou fazer. Apenas vos quero expor um simples motivo exemplificativo, e que para mim já prova muito. Participar na sua inigualável vindima, lá para ao lados de Armil, repleta de suculentos cachos de uvas, uma paisagem serena, lautos merendeiros, dizeres castiços, um vinho de excelência produzido lá na quinta, uma organização a enaltecer e gente muito querida, é mergulhar na beleza do nosso Minho Florido. Espero viver muitos fins de verão, descer todos os anos a encosta que me leva aos terrenos do meu amigo e colher muitas graças e sentimentos a cheirar a mosto nas suas vindimas.
Outra ocorrência que fez, de igual modo, florir os meus dias foi visitar a mui antiga e famosa cidade de Guimarães por alturas da sua feira medieval afonsina. Que riqueza de iniciativa! Que evento tão cuidado! Que saborosas castanhas, ainda que algumas já parecessem da época a que reporta a iniciativa! Meus amigos, por alguma razão, esta cidade, a que chamam o berço da nacionalidade, foi escolhida como capital europeia da cultura. Como é maravilhoso um povo nunca perder a sua memória e fazer questão de a utilizar para cimentar o seu futuro!
É curioso! No momento em que olhava todo aquele contexto medieval, repleto de cor e perfumes de outros tempos, lembrei-me de algo que quero partilhar neste espaço com vocês. Quando chegará o momento de Fafe pegar na sua herança brasileira e fazer algo do género? Penso que fomentar na Sala de Visitas do Minho uma iniciativa cultural com esta amplitude só viria a enriquecer o que nos foi legado pelos antepassados. De certeza que o meu amigo Miguel Monteiro, lá do lugar etéreo onde se encontra, não levará a mal esta ousadia da minha parte. Talvez um dia, e se calhar não faltará muito tempo, todo o país ficará a saber que em Portugal há uma terra no norte, encaixilhada entre dois rios, o Ferro e o Vizela, que ama as suas origens e que tem todo o gosto em recriá-las, para que o passado não fique apenas preso às paredes dos edifícios ou colado nas páginas dos livros. Fafe dos Brasileiros poderá ser uma realidade se os responsáveis económicos e políticos deste amor de cidade assim o entenderem. Quanto ao povo que por aqui habita, alma e vontade não lhe faltarão para aderir a este grande projecto, e, finalmente, poder ressuscitar-se toda uma existência que alimenta as memórias e tinge as correntezas do tempo de cores verdes graníticas, temperadas com amor e futuro. Pensem nisto, e depois digam alguma coisa.
Todos sabemos que quantas mais flores adornarem um jardim mais pomposo e esbelto ele se torna.
Por exemplo, se prestarmos alguma atenção aos acontecimentos culturais que têm iluminado a nossa terra, uma grande satisfação percorre a aragem que nos mantém vivos. O meu amigo Artur Coimbra, um grande investigador, um fazedor de versos como poucos e um homem a quem Fafe cultural muito deve, reeditou mais uma das suas publicações centrada no Major Miguel Ferreira. A Junta de Freguesia de Antime recebeu tão importante acontecimento e eu estive lá. Também o meu estimado amigo Acácio Almeida editou mais um livro, Esvoaços 2. E tal como aconteceu nos anteriores, mas agora de uma forma mais depurada e madura, um misto de coração, natureza desenhada, versos perfumados, alma nostálgica, palavras convictas e um engenho natural enredaram-se numa teia de talento que me satisfazem completamente. Parabéns.
Para terminar, e por muita pena minha, pois ainda havia muita coisa bonita para mostrar, apenas quero evidenciar o gesto simpático dos meus antigos alunos de 12ºR que me convidaram para jantar e me deram a beber a sua forte amizade e as suas palavras, que jamais esquecerei. Para eles, o meu peito estará sempre aberto. Para eles, as minhas mãos nunca se cerrarão. (Até sempre e que as aves vos ensinem a nunca perder o rumo.)
Agora um pequeno parêntesis, mesmo sabendo que o que vos vou contar merecia mais de dez páginas, o tempo quase que suficiente para gastar todos os adjectivos que compõem a estante das palavras mais belas. A Kairos, produções culturais, dos meus amigos Celina e José Rui, promoveram uma iniciativa que começou nas salas do Museu das Migrações e das Comunidades, passou pelo auditório da Casa da Cultura e chegou até ao céu. Viagens - memórias da emigração, convidou-nos a embarcar numa viagem com destinos marcados, tendo ao nosso lado o som do acordeão de Cristiano Martins e as notas sentidas do guitarrista José Duarte. Celina Tavares emprestou-nos a sua voz e nós partimos. Que viagem maravilhosa! Para quem perdeu uma iniciativa tão original e linda como esta, apenas digo que os anjos existem, pois estiveram bem à minha frente.
Fico-me por aqui. Até breve e que o Minho continue florido.
Carlos Afonso

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Um milagre ao amanhecer





Eu conheci a Alice há uns anos atrás, numa altura em que a sua mãe, minha aluna à noite, a trouxera à escola para que todos conhecessem a sua princesinha. Nessa época, e ainda com poucos meses de vida, os seus traços definidores já davam a entender que estávamos perante um ser humano adorável e detentor de uma beleza muito própria. Ao longo dos anos, os meus caminhos foram-se cruzando com os de Alice e restante família, ocorrência que muito estimei. O grande problema foi o destino que lhe estava traçado.
Uma das coisas que me custam a entender, e que nos magoam profundamente, é olhar para a beleza de uma rosa e verificar que todo o seu encanto é precedido de uma quantidade de espinhos desnecessários e até inconvenientes. Bem, neste caso, o problema resolve-se com o simples arrancar dos mesmos. Mais grave foi o caso da filha da minha aluna que acabou por sucumbir ao peso dos desmandos da condição humana. Talvez Miguel Torga tenha razão quando afirma que Deus nem sempre é justo.
Nestes últimos meses, Alice já não era a menina de outros tempos. Os seus olhos tingiam-se agora de um azul cansado e os seus cabelos faziam lembrar aquelas manhãs indefinidas, sem se saber ao certo se o sol continuaria a brilhar ou se a chuva estaria para chegar. O rosto esbatido pela má sorte já não tinha a cor de outrora. As suas mãos pareciam ter-se esquecido do tempo em que colhiam as flores silvestres no quintal da sua avó e apanhavam amoras bem maduras nas bordas dos pauis. As suas pernas estavam demasiado distantes da altura em que corriam alegremente no largo da aldeia, e aquela alegria natural que escorria das suas brincadeiras naturais com os colegas deixaram de colorir os dias da velha Alcina. Saliente-se que a relação de Alice com esta idosa quase da idade de um século foi-se cimentando de há uns cinco anos para cá graças aos muitos lanches que esta abençoada senhora gostava de oferecer às crianças lá da rua. Era uma forma de ela esconder a sua acinzentada solidão.
Do tempo em que ainda não lhe tinha sido detectada a doença e o seu sorriso era do tamanho da Primavera pouco restava. Agora só queria saber se a sua cadelinha Rosi já voltara a ter filhotes e se a sua amiga Filipa ainda tirava as melhores notas da escola. Tudo o resto já fora varrido do seu entendimento de menina de nove anos, devorado por uma injusta e atroz doença. Só de vez em quando, e se alguma esperança escorria do seu entendimento sob o efeito da medicação, é que pedia à sua irmã mais velha, quando esta a visitava ao domingo, que lhe lesse uma história do livro de capas cor-de-rosa, com uma borboleta de muitas cores bem ao centro. Por incrível que pareça, as outras histórias não lhe interessavam, nem as desse livro nem as dos outros que se arrumavam na mesinha de cabeceira. Queria sempre a mesma. O seu fascínio só se virava para o livro de capas cor-de-rosa e para aquela história em especial. Quando a irmã acabava, e sem se importar com mais nada, Alice tinha por hábito deixar escapar um obrigado. Depois, apertava o seu urso de peluche contra o peito e deixava que o sono lhe apagasse o sofrimento. E era nestes momentos, depois da leitura que todos os que a rodeavam se apercebiam que no seu sono havia qualquer coisa de especial. Talvez um sonho quase feliz, quem sabe!
Sentada numa cadeira, bem encostado à cama, a mãe de Alice não conseguia esconder a emoção que lhe varria o coração sempre que um ai ou uma lágrima atrapalhavam as palavras e os parcos gestos da filha. Muitas vezes, e sempre movida pela força do momento, apertava nas suas mãos de mulher do campo, crestadas pelo sol e pelos ventos, a um rosário de contas pretas que compara em tempos em Fátima. O que ela pedia a Deus todos nós sabemos.
Infelizmente os minutos e as horas da pobre criança da nossa história, e que eu conheci muito bem, limitavam-se a um quarto de hospital, aos custosos tratamentos e ao carinho insistente de seus familiares, amigos e pessoal médico. Mas um belo dia algo muito incomum aconteceu.
Ainda bem que os lírios do campo são possuidores de um perfume sem rival, caso contrário, o mês de Maio não teria tanto encanto.
Era domingo e tal como era habitual, Alice pediu mais uma vez à irmã que lhe lesse a tal história que englobava o livro de capas cor-de-rosa, e com uma grande borboleta ao centro. Sem demoras, a irmã começava:
«Era uma vez uma linda menina muito pobre que morava numa terra distante, e que já não tinha mãe. Esta menina tinha poucos brinquedos, mas tinha muitos sonhos lindos. Um dos que mais a fazia sorrir e lhe ocupava a imaginação era de um dia ser uma princesa. (…) Uma bela tarde viu pousada numa velha macieira uma grande borboleta pintada de mil cores, (…). Devagarinho subiu para as costas fofinhas da borboleta e deixou-se levar por entre montes e vales, sempre acompanhada pelas brisas mais meigas e o cantar acertado das andorinhas. (…). A borboleta transformou-se numa bela fada e a menina pode finalmente realizar o seu sonho. (…). A pobre menina, a partir desse momento, passou a ser chamada por todos a Princesa das Flores.»
Mal a irmã acabou de ler a história que tinha por título a Princesa das Flores, Alice, e ao contrário do que costumava fazer, sorriu alegremente, chamou pela mãe, que a olhava ansiosa, e disse.
- Mãe, só agora percebi a história que a mana me leu tantas vezes. Eu também vou ser muito feliz, tal qual a pobre menina que se transformou numa princesa. Sabes que mais, amanhã bem cedo podes vir-me buscar, pois eu já vou estar boa. Não te esqueças de me trazer a pasta, pois antes de ir para casa eu tenho de passar na escola para explicar à senhora professora o que se passou comigo. Só mais uma coisa, traz também a minha cadelinha, pois tenho muitas saudades dela, e aquela fita amarela para pôr no cabelo.
Alice, nessa tarde, não parecia a mesma. Falou, falou e o seu quarto de hospital parecia uma sala de convívio. Até sumo de laranja a enfermeira Maria trouxe para animar mais o momento. Terminada a hora da visita, ninguém se lembrou de chorar e uma esperança divina pareceu enfeitar o coração de todos.
Nessa noite Alice adormeceu mais tarde e foi apanhada num sonho encantado. No preciso instante em que colhia um punhado de amoras, viu pousada no cimo de um velho carvalho uma grande borboleta. Alegremente, Alice correu na sua direcção, ofereceu-lhe as amoras que havia colhido e pediu-lhe que a levasse a um sítio onde houvesse muitas flores. Sem demoras, a borboleta mandou-a pular para as suas costas e atendeu ao pedido da menina. Passado pouco tempo, a borboleta desapareceu e Alice viu à sua frente um campo imenso cheio de flores e a um canto, encostado a uma macieira florida, viu um senhor ainda jovem que a chamava. É evidente de Alice logo reconheceu aquele rosto. Convém que se diga, e antes de avançar, que ela tinha uma excelente memória visual. Não admira, por isso, que de Imediato identificou quem estava à sua frente. Era a mesma pessoa que estava pintada naquele santinho que o Senhor padre havia dado num Domingo depois da missa. Era Jesus. Como ela ficou feliz!
Nessa madrugada de segunda-feira, Alice encontrou a paz que precisava, e naquela cama de hospital apenas ficou o que o céu não quis.
Carlos Afonso

sábado, 10 de setembro de 2011

Viagens na Minha Terra



Uma das muitas maravilhas que a vida terrena ainda nos pode oferecer, sem que os empecilhos dos homens a afoguem nas canseiras dos dias, é o encanto de regressar a espaços que nos querem bem e aí, aquecidos pela seiva das manhãs, partilhar momentos com amigos e conhecidos.
Após umas necessárias férias de Verão, que me ajudaram a revitalizar o corpo e alma, aqui estou mais uma vez nas folhas do nosso querido Povo de Fafe para um novo ano de convívio, confidências e encontros. Ao seu director dirijo o meu apreço e gratidão por esta oportunidade. Espero estar à altura de tão destinta publicação e contribuir positivamente para o bom nome de Fafe e das coisas que alindam os destinos.
Depois de uma semana em Paris, nos finais de Julho, o norte de Portugal foi o destino dos meus dias de Agosto. Fafe, Aboim, Vila do Conde, Viana do Castelo, Vila Nova de Cerveira, Póvoa de Varzim, Ponte de Lima, Alfândega da Fé e Parada, o doce lugar onde eu nasci, foram os espaços que me seguraram à vida e me emprestaram os encantos do oitavo mês do ano. Foi uma espécie de périplo encantado por entre montes e vales, mares e rios, aldeias e cidades, olivais e pinheirais, fragas e jardins, igrejas e capelas, arraiais e praças, corações e sonhos, sabores e afectos, foguetes e beijos, entre outras dicotomias pintadas de cores meigas.
Se Almeida Garrett viajou de Lisboa a Santarém e daí escreveu uma das novelas mais bonitas que compõem a esplendorosa estante literária Portuguesa, as Viagens na minha terra, reflexo do que os seus olhos viram, sentiram e pressentiram, eu limitar-me-ei apenas a soltar alguns arrufos repletos de paladar e perfume das minhas viagens.
Sem a obrigatoriedade e rotina das aulas, as férias fizeram com que o meu singelo quintal de bairro usufruísse mais do meu tempo. É deveras interessante mexer na terra, regar o que é preciso regar, subir à figueira e tentar vislumbrar um figo em condições, colher os legumes e sentir o resultado da nossa atenção. Jamais ignorarei o prazer de colher um simples tomate já maduro e a fresca alface, cheirar a hortelã mourisca e reparar no atrevimento dos melros. Sentir o perfume das rosas também é um dos meus deleites, faz-me lembrar outros tempos e outros encontros.
Fafe, para mim, é um daqueles lugares que nos enchem o peito sempre que os finais de tarde e princípios de noite de Agosto se mostram. Não admira por isso que um passeio pela cidade por essas alturas do dia é divinal. Podemos usufruir da calmaria das ruas, escutar aqui e ali os nossos emigrantes, tocar na frescura que se levanta e encontrar amigos. Gosto imenso de ser levado pela leviandade dos passos e não marcar as horas do regresso.
A pouco mais de quinze quilómetros de Fafe desponta uma das aldeias mais típicas do Minho. Aboim, a terra da minha esposa, é um dos espaços que nos enchem de pasmo e afeição. As pessoas são especiais. Os campos cheiram a paz e eternidade. Os carvalhos orgulham-se da sua originalidade e não se importam com a minha presença. O arroz de frango da minha sogra é único. As águas dos ribeiros são cristalinas. O Moinho de Vento tem por hábito emprestar-me o seu carácter ao passo que a Poça de Mesio gosta de me contar histórias. Um dia, e tal como fez Garrett na sua novela quando nos narrou os amores impossíveis de Joaninha e Carlos, também vos darei a conhecer uma ocorrência que teve o seu início nesta Poça tão especial. É engraçado, a pedra que esteve na origem de tudo ainda lá está impávida e serena.
Claro que uma passagem por Vila do Conde já se tornou um hábito para mim e para a minha família. Digo mesmo que um verdadeiro mês de Agosto tem de cheirar a mar. Nesta cidade onde o rio Ave se entrega ao Atlântico e o vento norte gosta de se enrodilhar, encontro, também, algum sossego e inspiração. Gosto de me passear pelas avenidas à beira mar. Aprecio os momentos em que vou comprar sardinhas na lota e converso com as peixeiras. É um costume meu usufruir dos eventos que por esta altura florescem em Vila do Conde, olhar o rumo incerto das gaivotas, e tentar entender como no Séc. XV e XVI conseguimos ser os senhores dos mares, quando reparo na imponente nau atracada no porto da cidade. É evidente que não prescindo de uma visita à Casa Museu de José Régio e um encontro sentido com o Senhor dos Navegantes nas Caxinas. Mergulhar no frio mar que por aqui se espraia é o único problema que ainda não consegui resolver. Já que estou por estas bandas, uma ida à Póvoa de Varzim em busca de algumas memórias de Eça de Queirós, e não só, é muito importante para mim.
Uma vez que as horas não estão rigidamente marcadas e os caminhos gostam de ser percorridos, o finado mês de Agosto teve o mérito de me ter agraciado com outros mimos: mais uma exposição em Vila Nova de Cerveira; um encontro encantado com os jardins de Ponto de Lima; a participação nas festas de Viana do Castelo, levando-me a mergulhar a atenção nos usos e costumes desta antiquíssima terra, banhada pelas águas plenas de memória do rio Lima.
Como bom transmontano que sou, não prescindi de visitar as terras que me viram nascer e beber na rudeza das fragas a força necessária para um novo ano de muito trabalho. Na minha querida Parada, uma singela aldeia de Alfândega da Fé, tive o prazer de encher o meu coração de coisas boas e necessárias para a minha sobrevivência: colhi os afectos da minha madrinha e mãe; comi uvas bem madurinhas; escutei os queixumes do rio Sabor, aprisionado na sua revolta contra uma barragem que lhe quer roubar as margens; saboreei um óptimo queijo de cabra; fui à festa do Santo; apanhei a minha amêndoa; revi vários amigos; cumprimentei os velhos zimbros da minha alada infância e abracei tudo o que me abriu o peito.
Uma vez que no preciso momento em que estou a escrever esta crónica já é Setembro, e tenho uma reunião na escola daqui a uma hora, vou terminar e entregar-me à rotina dos dias.
Por muito que os momentos nos queiram sujar o rosto, não caiamos no vazio. Peguemos nos encantos que se escondem nas nossas certezas e caminhemos repletos de alegria.

Carlos Afonso

sábado, 20 de agosto de 2011

Do outro lado do espelho




Às vezes, os lugares tornam-se especiais devido a pormenores que quase passam despercebidos, e não pelas grandezas em que todos reparam. Não admira, por isso, que, para algumas pessoas, a imensidade do mar se torne irrelevante perante a limpidez duma pequena nascente.
Em pleno coração do Vale do Lima, a beleza genuína e peculiar da vila mais antiga de Portugal esconde raízes profundas e lendas ancestrais. Foi a rainha D. Teresa quem, na longínqua data de 4 de Março de 1125, outorgou carta de foral à vila, e foi numa tarde de Agosto que Francisco descobriu nesta vila, uma terra afável e orgulhosa do seu passado, como um espelho pode conseguir mudar uma vida.
Antes de avançar, apenas duas explicações que, provavelmente, seriam desnecessárias, se tivermos em conta as evidências que vão sendo apresentadas. A vila de que estou a falar é Ponte de Lima, a quem chamam também a princesa do Lima. A personagem principal desta história, o Francisco, é apenas uma personagem, e pronto.
A tarde estava solarenga, mas, e apesar de estarmos em Agosto, o calor costumeiro desta época do ano não se fazia sentir. Assim, e porque o momento se propiciava, Francisco e mais um grupo de amigos decidiram visitar uma exposição diferente, e ao mesmo tempo especial, que decorria por essa altura em Ponte de Lima. Era uma exposição de jardins. Sem sombra de dúvida que, e eu posso ter toda esta certeza porque já tive o prazer de a visitar, o que aqueles amigos viram e sentiram jamais sairá das suas memórias, principalmente para Francisco.
As flores com as suas mais variadas formas, cores e perfumes, assim como diversos tipos de arbustos, árvores e demais materiais decorativos espalhavam-se por toda uma área restrita, subdividida em pequenas parcelas ajardinadas bem ao gosto dos seus criadores. Cada um destes fragmentos ornamentais tinha algo de ímpar e até peculiar, mas todos eles estavam bem contextualizados num espaço maior, onde também se podiam ver típicas ramadas de videiras, carregadas de uvas quase maduras, avenidas de limoeiros com os seus frutos tingidos de um amarelo esverdeado, espaços relvados, alguns pontos de água plenos de frescura e outros detalhes a condizer. Em redor deste sítio sazonal, construída pelas mãos de homens com gosto, e sem que o ciúme os tenha afectado, desenhavam-se, no seu tom altivo, as nativas cores desta zona minhota e a calmaria esplêndida do rio Lima. Tudo parecia perfeito. Até o azul do céu tinha mais cor, e a passarada mal se fazia ouvir, para não dividir atenções.
Eu sei que esta vila do Minho é detentora de uma rara beleza, derivada de raízes romanas e medievais, esculpida em rostos com memória e amassada em sabores de qualidade, para além de muitos outros pormenores contemporâneos. Mas nessa tarde, o que mais se evidenciou aos olhos de Francisco, a personagem evidenciada nesta história, foi esta exposição, e mais concretamente um dos pequenos jardins que compunha esta combinação de arte e cor. Um jardim que, e para além do que é habitual encontrar em sítios como este, tinha plantado nas suas bermas espelhos. Não eram espelhos normais, daqueles que mostram as certezas dos homens ou ajudam a reparar as imperfeições das formas. Eram espelhos que alteravam as aparências, tornando-as mais disformes ou menos disformes. Tornando os mirones, e dependendo da sua posição, mais gordos ou mais magros, mais altos ou mais arrochados, e por aí fora. Quer isto dizer que este jardim, de que não memorizei o nome do seu autor, mostrava o contexto conforme o ponto de auscultação. Quer isto dizer que este jardim, de que não memorizei a nacionalidade do seu autor, mostrava a conjuntura consoante o sítio de observância. Francisco também reparou nesta leviandade criativa tão fora de propósito e gostou do que viu.
Antes de continuar, e porque me sinto na obrigação de o fazer, quero evidenciar que nem todos somos iguais, e que os gostos se podem ou não discutir. O que para um de nós pode ser natural e vir a propósito, para outro pode ser fútil e sem qualquer sentido. Voltemos à história.
Tanto Francisco como os amigos acharam interessante aquela maneira diferente de esboçar um jardim, envolto na singularidade dos seus espelhos E divertiram-se imenso com o que eles reflectiam. Muitas posturas se lhes ofereceram e o resultado roçava sempre o sorriso e até a gargalhada. E curioso como a intelectualidade humana se reduz, por vezes, ao caricato dos instantes!
A primeira imagem do Francisco foi assustadora e ao mesmo tempo engraçada. A sua estatura de um metro e sessenta e cinco, acompanhada de um peso de noventa e tal quilos, o que nos parece demasiado, tendo em conta a sua altura e idade, mostrava-se, agora, ainda mais descomunal e até aterradora. Algum tempo foi passando e muitas outras posturas se experimentaram. O pasmo e a alegria iam sendo gerais e, por momentos, as flores iam perdendo o seu perfume.
A certa altura, e porque já estava escrito no destino da tarde, do outro lado do espelho surgiu um reflexo encantado que imobilizou Francisco. Bem do outro lado do espelho assomou uma figura esbelta e de porte quase atlético, mas com um rosto de traços conhecidos, mas demasiado sério para a ocasião. A nossa personagem principal ficou algo atarantada com o que os seus olhos lhe estavam a evidenciar. Instintivamente, escondeu-se no adormecimento que escorreu do seu íntimo, e nem reparou no chilreio espontâneo de um pardal, pousado num ramo qualquer, que não interessa determinar. Passados um ou dois minutos, pegou no seu olhar e atirou-o para a realidade quase obesa do seu corpo, e não disse nada. Depois, voltou a reparar na irrealidade que o espelho lhe ofertava e, numa atitude envergonhada, espetou com o seu silêncio na face do espelho, e disse:
- Eu podia ser igual a ti, mas …
No preciso instante em que estas palavras iam ter continuidade, a voz de um dos amigos que acompanhavam Francisco nesta visita à exposição dos jardins de Ponte de Lima, alertou-o para a necessidade de continuar, pois já se fazia tarde. Como era de esperar, do outro lado do espelho tudo se apagou.
Será que esta história acaba aqui?

Carlos Afonso