sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O gato da mulher que conheceu o seu “home” no comboio de Fafe


           O gato da mulher que conheceu o seu “home” no comboio de Fafe

            Ainda não eram quatro horas da tarde e já o dia dava indícios de se querer acabar, circunstância que era fortalecida pelo cinzento carregado que varria o horizonte em redor. De vez em quando, muitos pingos de chuva faziam-se mostrar, mas só às vezes, independentemente de serem desejados ou não.
 No momento exato em que tudo aconteceu, e na totalidade da hora que se lhe seguiu, do céu apenas escorregaram uma luz baça e húmida e um ou outro pássaro meio incomodado.
 E eu que até pensava que andava sozinho nesse meu passeio pela cidade de Fafe!
Muitos são os pormenores, bons ou maus, que me fazem parar quando ando nestas minhas demandas pela cidade. Na verdade,  gosto de sentir o que me rodeia, nem que para isso tenha de demorar horas a percorrer centenas de metros ou ainda menos. São opções, nada mais. Mas que me tornam mais completo e interventivo. Lá virá o dia em que  a idade ou outro pormenor qualquer me impedirá de ver, ouvir, cheirar, provar e tocar.
Nessa tarde de janeiro, foi a antiga estação de comboio ou, melhor dizendo, o que resta dela, que me fez parar.
Meu Deus, a que estado ela chegou! Bem, o edifício principal ainda continua digno, embora noutras funções, mas os outros acrescentos, que noutros tempos tinham tanta serventia e vida, hoje não passam de um aglomerado de restos e coisas mortas, em final de linha! E foi nesse meu visualizar de desgraças, angústias e acentuadas nostalgias, apesar de não ter o privilégio de ter conhecido esse outrora com comboios cheios de vida, e agora findo, que um gato me saltou para o entendimento e bem para a frente dos meus olhos.
Era um gato acinzentado e com uma fina coleira de onde se dependurava um refinado guiso. Que gato lindo! E que rapidez! Num ápice, e tal e qual como quem o costuma fazer muitas vezes, o esbelto animal passou por mim a correr, saltou quase em claro o gradeado, em forma de portão, que separa o fora do dentro do que resta da antiga estação. Curioso! Não é que o bendito bicho, trepou ao que sobrava de um carro abandonado, no meio de outros, e saltou para o chão. Sem querer parar, contornou, sem ignorar, uns amontoados de pedra de calçada, misturada com terra e areia, e, na sua correria, foi posicionar-se bem na minha frente como que a desafiar-me não sei bem para quê. Ou sei?
- Raio do gato, lá anda ele outra vez com as suas maluqueiras! Qualquer dia…
Quem assim dizia era uma velha senhora, meia despenteada, cosida a um casaco bem castanho e com um guarda-chuva preto na mão. Era a dona do gato.
            - Sabe, senhor, o meu gato é meio esquisito, de vez em quando, prega-me estas partidas. Foge de casa e vem para aqui. Não quer o amigo saber que sempre que chego onde agora estou, ele lá está, precisamente naquela postura. Está ver? Qualquer dia… - adiantou-me, sem papas na língua, a velha senhora.
            Mas o que o é que ela quereria dizer com tão estranha expressão e sempre incompleta? «Qualquer dia…»
            -Sabe – e sem que eu lhe perguntasse nada – eu ainda me lembro de como tudo isto era…Gente a partir, gente a chegar… Este comboio era uma riqueza, uma festa. Agora só há para aqui restos. Qualquer dia…
            - A senhora mora aqui perto! – Perguntei-lhe eu.
            - Moro ali mais abaixo, mas venho muitas vezes aqui, pois o raio do gato… Sabe, foi neste comboio de Fafe que conheci o meu “home”. Eu vinha de Guimarães, eu tinha lá uma irmã… ela já morreu, mas ainda lá tenho dois familiares e… eu acho que era uma sexta e calhou sentar-me no banco do lado esquerdo… não. Era do direito. Não interessa. O que eu sei é que ao meu lado estava um rapaz um pouco mais velho do que eu e… Não desfazendo, era um belo rapaz! A vida tem destas coisas. Só sei que cinco meses depois eu já era a mulher dele.  Coitado, já morreu há dois anos. Morreu ele, morreu o comboio e qualquer dia morro eu. Não quer você saber que o primeiro presente que ele me deu foi um gato igualzinho a este. Este malandrete, que anda sempre “prá`qui” a fugir é descendente desse gato que o meu “home” me deu. Eu às vezes até tenho medo que…
            E mais uma vez a velha senhora não acabou o que ia a dizer. Pois, e mal o gato correu na nossa direção e, com certeza voltava para donde viera, ela apressou-se a segui-lo. Ao longe, ainda consegui escutar de uma forma bem clara, o que já havia dito e redito:
            - Qualquer dia…
            Ora bem! Se o gato foi para casa e a velha senhora também, na altura, pensei para com os meus botões que estava na hora de regressar. É que da estação até ao sítio onde moro ainda era um bom pedaço.
            E porque a história não podia acabar assim, apenas acrescento que seria de bom agrado que se olhasse para o que resta da antiga estação e se desse por acabado todo aquele retrato incompreensível. Está na hora de dar melhores vistas a um espaço que já foi uma porta de excelência de Fafe. Uma porta que trazia o mundo a Fafe e que levava Fafe para o mundo.
Por que não implantar naquele lugar tão emblemático para Fafe uma locomotiva pedagógica ou um museu temático ou algo de parecido… Vá lá, nem que seja em homenagem ao “home” da velha senhora e ao amor que um dia o comboio de Fafe ajudou a nascer.
Senão… qualquer dia…
Para finalizar, e juro que não digo mais nada, amigo leitor, peço uma atenção para um excerto que, num belo dia de 1911, o “Almanaque Ilustrado de Fafe” publicou:
«Como é bom recordar! Parece que foi hontem e já lá vão três annos! Transcrevemos para aqui parte do que sobre tão grato motivo dissemos no nº 749 do Desforço de 1907 (…)
A CHEGADA
Aos primeiros silvos das locomotivas, tudo rejubila. São duas, conjugadas, que se denominam «Porto» nº 5 e «Negrellos» nº 2, a rebocarem 17 vehiculos. Ao apparecimento, na ultima curva, quando os silvos redobram e o penacho de fumo se torna mais intenso, a alegria é então dilerante, chega ao seu auge o contentamento!

E’ uma hora e 20 minutos quando o comboio entra nas agulhas da estação por entre filas de povo. O enthusiasmo, a esta hora feliz para Fafe, é indescritível!
Aquelle acenar de lenços, aquella animação, aquella vivacidade, aquellas acclamações, tudo aquillo que se não pôde anotar, oh! Era sublime!!
Sublime, sim!!
Nós, que fomos uns pugnadores do caminho de ferro para Fafe, que temos anciado para o nosso torrão natal esse melhoramento indispensável, ao ver chegar o comboio inaugural, fomos apossados de tanta alegria, que quasi se nos estonteia o espírito! Ah! É que víamos triumphar uma das nossa maiores aspirações!
E as bandas fazendo ouvir os seus sons musicais, vibrantes, pareciam exprimir o que nos ia n’alma; o dynamite, estralejando nos ares, annunciou ao longe o nosso enorme contentamento.
No comboio inaugural vinha um grande numero de convidados, de que os jornaes diários teem dado nota e que por isso achamos supérfluo aqui reproduzir.
As locomotivas chegaram adornadas com bandeiras e tropheus, a gosto.
A da vanguarda, a nº 5, trazia a dirigi-la o engenheiro sr. Francisco Ferreira de Lima, que trajava de machinista, e o chefe de tracção e officinas sr. Joaquim Lopes.
Acompanhava o comboio uma banda de musica.
Na cauda vinha uma carruagem-salão, em que tomaram logar, alem do pessoal superior da Companhia e outros cavalheiros, a commissão das festas, que daqui foi a Paçô fazer a espera.

Ao apeiaren-se, o sr. Conselheiro Florencio Monteiro foi o que iniciou os vivas, que proseguiram, correspondidos sempre com ardor.
Em seguida, no estrado, onde permanecia a câmara, depois de trocados muitos cumprimentos, discursa o director da Companhia sr. Reis Porto, que, fazendo o elogio da nossa terra declara aberta á exploração a linha férrea.
Termina por levantar vivas a Fafe e ao seu povo.
Seguiu-se-lhe o presidente da câmara sr. Dr. João Leite de Castro, que discursa sobre os benefícios da linha trazidos a Fafe, melhoramento que há muito todos nós aspiramos, e attribue esse melhoramento á boa vontade do sr. Conde de Paçô Vieira e do extinto Soares Velloso, e simultaneamente, á intelligencia e actividade do sr. Reis Porto. Concluindo, saúda o povo de Fafe.
E’ depois lido o auto inaugural pelo guarda-livros da Companhia sr. Francisco Garrido Monteiro, que, cavalheiros de Fafe, Guimarães, Porto we Graga, assignam.
Depois disto, partiu a comissão das festas, pessoal da Companhia e convidados, seguidos por duas bandas de musica, para a villa. Os vivas, que tinham sido levantados no estrado, proseguem – ao sr. Reis Porto, á Companhia do Caminho de Ferro, engenheiro Lima, aos hospedes de Fafe, e outras individualidades, - que são correspondidos com indiscrptivel enthusiasmo. Immediatamente marcha a corporação dos bombeiros com a sua banda, que tinha feito a guarda d’honra.
Muito povo acompanha»

Às vezes, não entendo progresso! São coisas...


Carlos Afonso

1 comentário:

  1. Parabens pelo artigo.Lindo e esperamos que proveitoso para aquele espaço junto da estação.Abraço

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