domingo, 1 de julho de 2012

O rouxinol do rio Ferro


      

            O nosso povo diz com toda a sabedoria de que é detentor que os múltiplos momentos que se deparam aos olhos de uma comunidade, seja ela mais provinciana ou não, nunca têm o mesmo entendimento. Cada pessoa os interpreta consoante o seu ponto de vista e, por vezes, conforme as suas necessidades. É a partir desta constatação inicial que quero apresentar nesta minha crónica uma história quase real, alindada apenas por um fio ficcional bem da cor da imaginação

            O final da tarde do dia 25 de Junho convidou-me como que instintivamente a dar um passeio, não admira, por isso, que tenha pegado na minha determinação e desse uma volta pelas margens do Rio Ferro, ali bem perto de minha casa. Apetecia-me escutar o correr das águas, sentir a frescura das árvores e, quem sabe, encontrar um velho amigo que costumava visitar o meu quintal, mas que já há três dias havia desaparecido. Ele esvoaçara de certeza para o seu sítio, e que eu o procurava agora, para lá buscar o meu outro destino. Estou a falar do rouxinol do rio Ferro.  

Desde os primeiros dias de Março último e até a alguns dias atrás que a minha existência teve a curiosa circunstância de contar com a presença de um rouxinol. De facto, aquele passeio em Março pelas margens do Ferro, altura em que dei pela sua presença, num ramo florido de uma macieira, e que de imediato me fascinou e também, digamos assim, me intrigou, um sentido diferente tem tomado conta dos meus desígnios. A sua melodia era única e soava a nostalgia, até parecia que o seu canto era detentor de uma mensagem qualquer e que estava a ser lançada de propósito aos meus ouvidos. Não sei porquê, mas na altura lembrei-me de Almeida Garrett e de Bernardim Ribeiro e do sentido que a avezinha tinha no contexto das suas narrativas. Na verdade, tanto Joaninha de Viagens na Minha Terra como a menina de Menina e Moça tinham uma interligação especial com o rouxinol.

Depois do longo tempo em que estive a admirar os encantos da avezinha, reparei que a seu canto era quase infinito. Mas a dada altura começou a decrescer até que se calou. Olhei bem na direção onde estava pousada, mas apenas notei que a noite já se apoderara do horizonte. Algo entristecido, voltei para casa e não confidenciei a ninguém o sucedido. Apenas se me apegava à ideia de que no dia seguinte voltaria ao mesmo sítio onde encontrara o rouxinol.

Como prometera a mim próprio, no final da tarde do dia seguinte voltei lá, mas do rouxinol, nem um sinal. Apenas o rio, a brisa a esbarrar na folhagem e o chilrear da outra passarada que não despertava a atenção dos meus sentidos. Meio desanimado, sentei-me numa pedra meia suja que para ali estava e deixei-me levar pelo pensamento. Quando voltei a mim, dei um último olhar pelo quadro que a minha vista alcançava, limpei alguma sujidade que se me agarrar às calças e regressei. Quando estava a chegar a casa, reparei que uma rapariga estava a tocar à campainha. Apressei o passo, pois pensava que era alguma aluna que queria falar comigo, mas não. Eu não a conhecia. O que quereria ela?

 Era apenas uma bela rapariga de cabelos castanhos e com uns olhos da mesma cor. A sua postura pareceu-me, na ocasião, um pouco inquieta e, quando reparei no seu sorriso momentâneo, afigurou-se-me nele uma mágoa qualquer. Pelos vistos, e segundo me explicou, ela apenas estava ali porque me queria entregar uma carta, uma vez que o carteiro, inadvertidamente, a deixara em sua casa. Agradeci o gesto e despedimo-nos.

Depois do acontecido, e mal a rapariga se pagara na distância, senti um esvoaçar de ave a roçar-me a cabeça, para logo de seguida escutar um cantar de rouxinol, igualzinho ao que ouvira junto ao rio, vindo bem do centro do meu quintal. Sem mais, corri para o escutar e… Que surpresa!... Lá estava ele em cima da pereira, numa postura digna e sentida. Enquanto não chegou a noite e ele se calou, não arredei pé dali.

Várias dias passaram, e todos os finais de tarde, quer estivesse chuva ou sol, o rouxinol ali voltava para mostrar a sua voz afinada e melodiosa. E eu, sempre que tinha disponibilidade, ali estava para o ouvir.

No 23 de Junho último, dia de São João na Fábrica do Ferro, durante a tarde, fui ver a cascata que se localizava bem perto da Sede dos Leões do Ferro. E como já é seu hábito, ela estava maravilhosa e sempre com vistas inovadoras. De facto, as mãos que a tecem são de eleição. Espero que assim continue para gáudio do bairro e de Fafe. Ora bem, estava eu a olhar para a cascata, quando me apercebo de uma rapariga que caminhava na minha direção. De imediato a reconheci. Era a mesma que me tinha trazido a carta. Apenas trazia roupa diferente. Com surpresa, fiz um leve esforço para me afastar, não me sentia de feição para falar com ela. Se calhar era medo. Apercebendo-se do meu jeito, ela apressou o passo, estendeu a mão direita e pegou na minha. De seguida, afagou-me com carinho e sorriu. Ainda meio atrapalhado, encostei-me um pouco à sua postura, que me pareceu especial, retribui com um cumprimento nervoso e escutei o que me confidenciava:

- Desculpe, mas está na hora de o meu rouxinol regressar. Para o tornar a ouvir e finalmente perceber o seu verdadeiro cantar, terá de ser o Carlos a deslocar-se ao sítio exato onde ele sempre morou. Na tarde em que isso acontecer, eu também lá estarei para lhe dizer o meu nome, entregar-lhe uma outra carta e mostrar-lhe o seu outro destino. A propósito, o que dizia a carta que lhe entreguei na primeira vez que nos vimos?

            Sem conseguir responder ou dizer o que quer que fosse, só tive tempo de receber um pequeno beijo que a rapariga me pousou rosto e notar um perfume a rosas que me aquietou.

Quanto ao rouxinol do rio, desde que estivera com a rapariga junto à cascata, nunca mais o vi ou ouvi. Ele foi mesmo embora para o seu sítio.

            A propósito, eu nunca li a carta que ela me trouxera naquela tarde. Lembro-me apenas de a ter pousado no vaso junta à porta de casa e nunca mais a vi. O que será que ela dizia? Será que o meu destino estaria lá gravado? E agora?

Em breve o saberei, quando for à procura do verdadeiro sítio onde sempre morou o rouxinol do rio.



                                                                       Carlos Afonso

           

Sem comentários:

Enviar um comentário