domingo, 22 de abril de 2012

Ó Senhor, dá força ao meu coração…


            Naquela manhã, o despertador não quis tocar e Manuel, um viúvo de pouco mais de setenta anos, por sorte, dormiu até que a sua disposição o acordou. Lá fora o vento forte já fazia das suas e na rua que levava ao centro de Fafe algum frenesim parecia igualar os afazeres de uma cidade maior. No emprego onde o Manuel dera sempre o seu melhor, já ninguém se lembrava dele. A reforma tinha chegado na altura própria e o mundo continuara a rodar. Como o passar do tempo é cruel!
Desde que uma maldita dor no peito lhe indiciara um mal que nunca mais lhe daria tréguas, Manuel só colocava o despertador quando tinha de ir à feira ou a um encontro ocasional. Por exemplo, um passeiozito até Cabeceiras onde tinha uns parentes ou até Guimarães. Noutros tempos não era bem assim. Às 6 horas em ponto tocava o despertador, 10 minutos depois comia as torradas molhadas em leite que a mulher lhe preparava e passados mais vinte minutos já estava na sua labuta diária. Mas quem é achacado aos azares, pouco lhe vale lutar na vida, a não ser que uma fé bem forte lhe arranje algum conforto e meia dúzia de sorrisos. A morte do único filho em França apenas lhe arrancou um punhado de lágrimas e uma resignação que meteu dó. Um malvado AVC roubou-lhe a companheira de mais de quarenta anos e também lá foi suportando o contratempo. Mas agora o raio do coração é que entornou um ódio compreensivo. Ora bem, nem sempre se consegue suportar tudo e esconder alguns dizeres mais descontentes.
- Ó meu Deus, porquê tanto tribulação? Bem podias olhar mais por mim, raios – desabafou ele, sem que ninguém o ouvisse, depois de ter escutado o que o médico lhe dissera. – E agora como vai ser isto? Que vida a minha!
Bem, voltando ao início da história, o Manuel acordara mais tarde naquela manhã e já não foi à feira. O tempo também não estava grande coisa e o que ele queria comprar podia ficar para a semana seguinte. E mais a mais não adianta plantar nada na horta, pois o frio ainda atrapalha bastante este mês de Abril.
Levantou-se, cumpriu as recomendações do médico, comeu o de costume, mas agora sem a ajuda da esposa, e sentou-se em frente à televisão. No canal 1 falava-se de viagens e férias. Satisfeito com o que ia escutando, começou a pensar que o pouco dinheiro que tinha era capaz de dar para ir a um sítio que há já algum tempo gostava de visitar. Sempre prometera à falecida companheira que a havia de levar a Sagres, no Algarve, mas ou o tempo ou o dinheiro nunca o ajudaram. Talvez fosse agora o momento de cumprir essa promessa, ainda que só restasse ele para o efeito. Vamos lá a ver…
A vontade de visitar Sagres residia no facto de Manuel gostar da grandeza do passado marítimo português, e de considerar o Infante Dom Henrique um visionário, um sonhador, um lutador e uma personagem impar da história de Portugal. Sempre que podia, nas suas idas à Biblioteca Municipal, lá estava ele à volta dos livros que falassem dos descobrimentos portugueses. Não foi uma nem duas vezes em que se pegara com alguns amigos, apenas porque a opinião acerca dos homens célebres portugueses não era comum a todos.
Decidido em avançar no seu propósito, foi consultar o extracto do banco, fez umas contas, sorriu e olhou de encontro a uma pequena mesa que, impávida e serena, jazia encostada a uma parede. Bem no seu centro espraiava-se uma fotografia da sua falecida que olhava na sua direção. Nela, Manuel focou os seus olhos e por aí se deixou ficar algum tempo. Depois, com vigor e satisfação, disse:
-Mulher, eu sei que estás num sítio lindo a descansar. Muito em breve, eu sei que irei para junto de ti, mas antes disso eu quero cumprir um sonho antigo. Vou dar a tal volta até ao sul e visitar Sagres. Claro que te levo no pensamento e no coração, pois eu sei que também tinhas esse desejo.
Durante algum tempo Manuel focou a foto e fez alguns projetos. Só um forte aperto no peito é que o fez estrabouchar, trincar os dentes e desviar a atenção do retrato. Quase a custo tentou erguer-se para acudir a si próprio, mas desistiu. Apenas deixou escapar meia dúzia de palavras e muito sofrimento:
-Será que ainda não é desta que vou a Sagres? Ó Senhor, dá força ao meu coração e deixa-me cá em baixo mais uns dias. Ai…
Sem que ele contasse, uma luz forte fechou-lhe a vida e, algo de extraordinário aconteceu. Vindo do centro da luz, Alcina, era assim que se chamava a sua esposa, caminhou para Manuel. Depois, e já quando estava bem perto, pegou-lhe nas mãos e conduziu-o para um novo destino. Admirado, o nosso amigo voltou a arregalar os olhos e sentiu um vento forte a bater-lhe no rosto. Bem à sua frente o mar do Algarve remexia-se repleto de uma névoa indefinida, e no longe uma caravela balançava-se ansiosa. Reconhecendo o lugar onde estava, e sem pressentir o que lhe poderia acontecer, seguiu a companheira. Desceram uma falésia menos ingreme, deixaram que uma gaivota esvoaçasse em seu redor, molharam ao de leve os sapatos, entraram num pequeno bote e não se importaram de ser guiados por um homem ainda jovem, vestido de negro e com um globo terreste nas mãos. Sem curiosidade em fazer uma simples pergunta que fosse, Manuel pegou nas mãos da esposa, encostou-se mais um pouco e disse o que o momento lhe emprestou:
- A maré está propícia e novos mundos nos esperam. Vamos para a caravela, marujo.
O Infante Dom Henrique, que era nem mais nem menos o marinheiro condutor do pequeno barco, olhou de soslaio e acenou afirmativamente.
Ao longe, a estrela polar mostrou-se farta no horizonte. Ao perto, um sentimento da confidência apegou-se bem forte a Manuel e à esposa, e quase que de imediato, e com toda a clareza que Deus permitiu, ouviu-se um último desabafo:
- Afinal sempre fizemos a nossa viagem, Alcina. E isto está a correr melhor do que eu imaginava.
                                                                                              Carlos Afonso

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