sábado, 24 de agosto de 2013

NO REINO DO FOGO








(Este conto baseia-se em factos reais e escrevi-o com o objetivo de homenagear o espírito heróico e altruísta dos bombeiros que, na sua luta com o fogo, muitas vezes sacrificam as suas próprias vidas.)

                                                           “Por cada soldado romano que caia em combate, um outro imediatamente de alista. É esta a nossa força”
      General romano

            Ana Luísa nasceu numa vila de província e em criança idealizara ser bombeira (para poder apagar fogos – dizia ela), sonho que nunca se efetivou, porque os seus pais não partilhavam dessa vontade. Os anos foram passando, e agora com vinte e quatro anos, e estudante bem-sucedida de medicina, a jovem já quase não se lembrava do que quisera ser no passado. Mas, e porque o destino já tinha sido marcado há muito, um sonho arrebatador fez com que algo mudasse. Era agosto, do ano de 2013, e a praga dos incêndios massacrava Portugal. (…)
            Ana Luísa, com o caminhar dos anos, e com o sonho de ser bombeira para apagar fogos a desvanecer-se, foi desenvolvendo toda uma capacidade humana de acordo com o espírito da solidariedade e entreajuda, e que fazia dela uma rapariga amada por todos. Gostava de ajudar nos peditórios a favor dos mais desfavorecidos, era escuteira e, na sua paróquia do Minho interior, era catequista. Nossa Senhora de Fátima era a sua entidade sagrada mais querida.
Possuidora de um corpo esbelto, feminino e bem atlético, a natação era um dos seus desportos favoritos. Na verdade, ela era uma nadadora de excelência, pormenor importante que contribuiu, há dois anos atrás, para o salvamento de dois irmãos, numa praia de Vila do Conde, quando, e sem qualquer medo, se lançou às águas e humilhou a fúria repentina do grande oceano Atlântico. O obrigado comovido da família dos jovens irmãos salvos e o sorriso de quem por ali estava foram a sua paga. Ela, com os seus olhos cor de mar, claro está, achou que não fizera mais do que a sua obrigação.
É nesta cidade, onde o rio Ave se entrega ao mar, a toda a hora que passa, que Ana Luísa costuma passar as suas férias de verão. E foi também nesta terra de terra, vento e mar que conheceu o amor da sua vida, o José Luís, um rapaz de Guimarães e estudante de engenharia. Os dois viviam uma relação de namorados felizes e amantes de maresia.
            Ora bem, voltando atrás nesta história, e principalmente ao final do primeiro parágrafo, dizia eu que um sonho inquietante fez com que a vida de Ana Luísa mudasse. Como também acrescentava que estávamos em agosto, do ano de 2013, e que a praga dos incêndios massacrava Portugal.
Nessa noite de agosto a jovem até não se deitara tarde, mas algo de estranho aconteceu. Envolvida num sono profundo, um sonho soltou-se-lhe da existência e mostrou-lhe uma outra realidade que, por sinal, não lhe era totalmente estranha. Assim, e sem saber bem porquê, viu-se, na companhia de um grupo de colegas bombeiros, a digladiarem-se ferozmente contra um mar de chamas na encosta de uma serra do centro de Portugal. A dada altura, e porque o vento é um dos inimigos mais inconstantes dos bombeiros, uma mudança súbita da sua trajetória, fez com que o grupo de bombeiros ficasse cercado e tomados de um descontrole natural. Parecia mesmo que estavam no reino do fogo. O fumo era imenso, a fome das labaredas lambiam tudo à sua passagem e, de repente, Ana Luísa perdeu o contacto com os companheiros. Tomada pelo pânico ainda tentou gritar, mas a voz não lhe saiu da garganta e tudo ficou da cor do inferno e da morte. Num último ânimo, lembrou-se de Nossa Senhora e os seus olhos, como por milagre, abriram-se e… afinal tudo estava bem. Tudo não passara de um sonho bem do tamanho de um pesadelo. Levantou-se da cama, foi para o quarto de banho e meteu-se debaixo do chuveiro de água fria, como que para pagar a angústia que ainda há pouco a queimava em plena serra, rodeado de fogo e de aflição por todo o lado.
Mas como é que se pode explicar este sonho da jovem estudante de medicina? Qual será o seu real significado? Uma coisa é certa, em criança, Ana Rita quisera ser bombeira, mas os pais não lho permitiram e a ideia havia-se-lhe varrido da lembrança. Porquê agora isto?
Já recomposta do que havia acontecido durante a noite, as horas seguintes foram mais calmas, mas uma notícia da televisão, proferida por uma locutora ansiosa, fez com que Ana Luísa se erguesse repentinamente do sofá e ficasse a tremer como varas verdes.
- «Mais uma morte de um bombeiro. Desta vez foi na serra do Caramulo. Apanhados por uma mudança súbita do vento, um grupo de bombeiros viu-se rodeada pelas chamas e uma jovem bombeira da corporação de Alcabideche perdeu a vida. O seu nome era Ana Rita e…»
- Minha Nossa Senhora de Fátima, parece igual ao meu sonho. Mas o que é que está a acontecer? E a bombeira também se chama Ana, tal como eu e tem a minha idade, vinte e quatro anos – acudiu, em tom de aflição, a jovem estudante de medicina, quase petrificada com tão absurda coincidência.
Dois dias passaram, e durante a tarde, no quartel de bombeiros do seu concelho, a Ana Luísa pede licença para entrar, para quase de seguida perguntar se se pode inscrever como bombeira voluntária. O senhor que a recebera, um homem com alguma idade que, na altura estava a ouvir com uma atenção redobrada na rádio a informação do funeral da tal rapariga bombeira que havia morrido na serra do Caramulo, com um semblante entristecido, perguntou-lhe, instintivamente:
- Qual o seu nome e qual a sua idade?
- Chamo-me Ana e tenho vinte e quatro anos.
Meio confuso, o homem olhou para o rádio donde advinha a notícia do funeral, depois olhou para a candidata a bombeiro, e depois de repetir os movimentos do seu olhar vezes sem conta, ora para o rádio ora para a rapariga que estava à sua frente, deu dois passos e abraçou Ana Luísa. Com as lágrimas a banhar-lhe o rosto, disse de uma forma comovida e quase feliz:
- Seja bem-vinda, Ana. Este quartel é seu…

Carlos Afonso

Sem comentários:

Enviar um comentário