Depois de receber um telefonema que
me ajudara a confirmar que ventos estranhos, vindos de outros propósitos,
tinham, no seu intento, um certo querer em quebrar um sonho real, nascido todo
ele nas cercanias de Fafe, e que me é muito querido, senti um amargo de alma e
uma vontade imensa de dizer basta. Mas, as minhas boas maneiras e a forma
correta como gosto de lidar com as pessoas que acreditam nas minhas palavras,
limitei-me, apenas, a desabafar com o cinzento do fim de tarde. Mais tarde, e
só depois de me aperceber que, no dia seguinte, podia percorrer caminhos que
aceitam de bom agrado os meus intentos, decidi seguir os passos de Miguel Torga
e procurar, no colo das fragas que me viram nascer, o afago e as forças de que
muito precisava. Eu carecia de revisitar o reino encantado de Trás-os-Montes.
A manhã acordara fria e apática,
pormenor que não ajudava a minha forma de estar. Assim, apressei o início da
viagem e corri, sem transgredir regras, na direção do meu destino. Eu sei que as
paisagens de Fafe são únicas, belas e minhas amantes, mas, às vezes, só o leite
materno é que nos acalma o peito e alimenta a inquietação.
Os quilómetros iam passando, os
pinheiros e eucaliptos deram lugar às torgas e carrascos e depois surgiram os
olivais e depois os zimbros e depois as estevas e… de repente, nascidas das
entranhas da terra as fragas e as amendoeiras, algumas já floridas, começaram a
sorrir-me na pouca distância que nos separava. O céu e os que nele moram
deram-se conta do meu pensar e arrumaram para um dos lados mais a jeito aquelas
nuvens molhadas e fartas, que só se tornam incomodativas nas alturas em que os
campos não precisam de mais chuva.
Ao chegar a Parada, um pequena aldeia
de Alfândega da Fé, disposta de uma forma acomodada na borda de um outeiro,
mergulhei, devagarinho, o carro pelas ruas apertadas, para não ferir o dormitar
das casas quase sem gente, ou assustar algum garoto meio distraído. Mal parei o
carro bem ao lado da casa que me esperava, espaço modesto e asseado onde moram
a minha mãe e madrinha, encontrei o meu amigo e primo Luís, que, e depois de me
cumprimentar, me disse que dali a pouco me levaria um garrafão de vinho a casa,
para eu almoçar à maneira e levar o resto para Fafe.
Quando a abri a porta, a minha mãe
esperava-me feliz, com o coração aberto, mas muito ocupada, pois ainda não
tinha metido os grelos na panela. A minha madrinha, uma bela senhora de 88 anos
e que ainda há bem pouco tempo estivera muito doente, atirou-me logo o seu
meigo olhar, mostrou-me as suas mãos perfeitas e sorriu na sua beleza. No ar
distendia-se um aroma bem gravado nas minhas memórias de criança. Meu Deus, cheira-me
a arroz doce!
Eu sei que podia gastar todas as
frases do mundo para descrever e narrar o que me aconteceu nesta terça de
Carnaval, dia 12 de fevereiro. Mas não o vou fazer, pois os meus leitores não
têm tempo para me aturar e, mais a mais, também não convém sermos demasiados
linguarudos, como costumava dizer a minha falecida avó Alcina. Apenas quero
acrescentar que comi pé de porco guisado, que a minha mãe faz como ninguém,
fartei-me de arroz doce, feito pela minha madrinha, bebi dois copos de vinho,
encantei-me com o pormenor alegre dos caretos, naquele carnaval que também era
meu, parti um punhado de amêndoas e comi-as, relembrei momentos, colhi
memórias, fui à horta dos «Espoios» e da «Portela» aos nabos, grelos e couves,
mirei o Santo Antão de longe, coloquei parte da conversa em dia com as minha
primas Betinha, Goreti e Lizinha, visitei o meu irmão Albino e a minha cunhada
Elvira, brinquei com o Sabor, um cão que é pertença da minha afilhada
Margarida, cumprimentei pessoas do meu imaginário e deslumbrei-me com a
eternidade do paraíso da minha alada infância!
Pronto para regressar a Fafe, não sei
porquê, lembrei-me dos tais ventos contrários de que falei no início desta
história e cocei a inquietação. Sem mais, liguei o carro, comentei qualquer
coisa com a minha esposa, que também me acompanhara nesta demanda e seguimos. Ainda
antes de entrar na IC5, uma via rápida recentemente inaugurada, e que nos leva
e traz mais depressa, reparei num arranjo belíssimo de amendoeiras floridas,
dispostas todas a jeito que me piscavam incessantemente os seus muitos olhos de
um branco rosado. Parei o carro bem junto ao seu peito floreado, encostei-me
com todas as minhas forças nos seus braços perfumados e doces e ali me deixei
ficar algum tempo, o tempo suficiente para complementar a minha postura,
determinação e alento, para enfrentar os tais ventos meios contrários que parecem
ter, no seu intento, a vontade de quebrar o tal sonho real que tanto prezo e em
que acredito. Vamos lá ver como as coisas correm. Em meu redor, o frio voltara
em força.
Valha-me Deus! Esqueci-me de trazer o
garrafão do vinho!
Carlos
Afonso
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