Nessa sexta-feira de Outubro, a noite não estava para brincadeiras. A chuva caía forte, o vento varria tudo à sua passagem e uma neblina insistente associava-se à escuridade da noite, quase que impedindo que os persistentes candeeiros da rua, com o seu alumiar amarelado e gasto, dessem um ar da sua graça. Dos meus olhos, escondidos por detrás da vidraça do quarto, derivava uma curiosidade esforçada, procurando aqui e ali um ponto de referência que amenizasse um pouco aquele quadro desengraçado. Perdi o meu tempo.
Ainda antes de dormir, ou porque o arfar assustadiço do temporal que vinha lá de fora não dava tréguas, nem mesmo dentro do quarto, ou porque ainda não era hora de embarcar no sono merecido, um diálogo a dois puxou-me para outras certezas.
Depois de um breve desfiar de ocorrências da véspera, que tanto eu como a minha esposa trouxemos para aquele momento de aparente insónia, uma história, ou melhor, uma conversa que ela havia tido com uma colega nossa, na escola, nessa manhã, veio relembrar-me o que já há muito tempo sei. O país parece que não consegue desenvencilhar-se da corda que lhe aperta o fôlego, e um certo desnorte começa a embrenhar-se por entre o nosso acreditar. Não admira, por isso, que a nossa colega tenha dito à minha esposa, com uma voz algo atarantada e sem remédio, que, provavelmente, teria de despedir a empregada, porque o dinheiro do seu vencimento já não chegaria para esse encargo.
Já agora, sabem o porquê desta aflição toda? Eu conto, mas juro-vos que não vai apanhar ninguém de surpresa. O nosso governo, num gesto pouco original e sem provas dadas, desenterrou do meio da rispidez que cobre Portugal uma solução que irá, em princípio, perfumar este jardim à beira mar plantado. Isto é, decidiu aumentar aos impostos e subtrair aos ordenados, sem se esquecer, também, de cortar algumas regalias que apenas eram sentidas por alguns.
Ora bem! Esta jogada de mestre, no entender de quem a arquitectou, provavelmente, irá salvar o país. Espero bem que todos estes sacrifícios exigidos não acabem por encher alguns sacos errados e que as coisas continuem na mesma. Convém não esquecer que até o caminho mais íngreme tem sempre um ponto de chegada
Só um aparte. Como é que fica a situação da empregada da minha colega, no meio disto tudo? Quem é que irá zelar pelos suas obrigações e vontades, se a desgraçada tiver de ser despedida, para que a pátria se possa erguer do nevoeiro onde a mergulharam?
Coitada! A corda quebra-se sempre do lado do mais fraco. Ai vida, vida! Talvez um dia as coisas mudem e a água deixe de correr só porque o rio a leva.
Nessa noite de temporal e de algumas angústias à flor da pele, onde não faltou o relembrar de todo um rol de negatividades que têm vindo a afectar os portugueses, até os discursos sérios e preocupados dos nossos políticos vieram à tona.
Reconheço que esta conversa entre mim e a minha esposa, à partida, não seria a melhor solução para quem precisava de uma noite bem dormida, mas o que é que se havia de fazer? Às vezes, os assuntos nem sempre são os que mais nos convêm, mas o facto é que eles surgem.
Apesar de tudo, o sono sempre acabou por chegar, arrancando-me daquelas constatações nuas e cruas, e conduzindo-me para um sonho que me afastou da clareza do óbvio.
Das profundezas do meu dormir, vi emergir do fundo dum imenso mar de cor verde, repleto de cardos sem flor, uma nau com as velas desfraldadas, e onde se podia ver, no seu interior, um homem ainda jovem, que aparentava ser uma figura importante, talvez um rei. As suas mãos estavam presas ao leme e o seu olhar estendia-se pelo horizonte. De repente, duas gaivotas, vindas do nada, desceram a pique sobre a embarcação e poisaram nos ombros de tão estranho e altivo marinheiro e um vento suave começou a fazer-se sentir, enquanto uma névoa gélida envolveu os espaços. Quase de seguida, o ribombar dum trovão assustou as aves que, num repentino esvoaçar, mergulharam por entre os cardos e desapareceram. A névoa tornou-se, ainda, mais baça. Num gesto determinado, o tal homem despegou os olhos do horizonte, apontou numa direcção precisa e a nau começou a movimentar-se nesse mesmo sentido.
Numa força concertada, os cardos começaram a remexer-se, enrodilhando-se, por vezes, uns nos outros, como que querendo impedir que a nau seguisse o seu rumo. Não lhes valeu de nada, porque uma força maior guiava o querer daquele homem que continuava com o dedo apontado numa direcção precisa.
A dada altura, a névoa, como que num gesto de magia, dissipou-se e uns quantos relâmpagos começaram a cruzar tudo em redor. Como que vinda não sei de onde, uma voz estridente e firme começou a ouvir-se:
«Levando a bordo El-Rei Dom Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto, o pendão
Do Império,
A última nau, ao sol da esperança
Regressa às praias de Portugal,
Na ânsia de erguer da noite
Um povo com alma
E que quer voltar a ser grande.»
Num esvoaçar aflito, as gaivotas assomaram à tona da água, ergueram-se no ar e seguiram o balouçar determinado da nau, ladeando-a, numa postura que mais parecia a de uma guarda de honra.
Meu Deus! Nessa altura um só pensamento me surgiu: «Afinal o nosso fatídico rei, não morreu nos campos de batalha de Alcácer-Quibir! Isto quer dizer que os bruxos, os adivinhos e o nosso grande poeta, que escreveu o seu livro “… à beira mágoa”, sempre tiveram razão, quando diziam que ele havia de regressar numa manhã de nevoeiro, para salvar Portugal.»
Sem que a minha vontade o desejasse, uma música descontextualizada trouxe-me para a realidade do quarto, fazendo com que o sonho que me envolvia se desvanecesse. Era o previdente despertador.
Reparei nas horas, levantei-me, abri a persiana e olhei o exterior. Da chuva diluviana da noite, apenas o molhado da vegetação em redor o indiciava, porque o amanhecer azulado do céu dava a entender que o dia iria trazer outro esplendor.
Ainda absorto no que advinha do meu dormir, não deixei de reparar no que os olhos me traziam lá do fundo daquele horizonte que acabara de acordar: uma nuvem em forma de barco, ladeada de duas aves que, num movimente lento, se moviam na minha direcção.
Claro que, na altura, da minha cabeça só podiam ter discorrido aquelas palavras, e que ainda guardo no entendimento: «Que estranho! Será que é o que estou a pensar?
Talvez a empregada da minha colega esteja com sorte.»
Carlos Afonso
Ainda antes de dormir, ou porque o arfar assustadiço do temporal que vinha lá de fora não dava tréguas, nem mesmo dentro do quarto, ou porque ainda não era hora de embarcar no sono merecido, um diálogo a dois puxou-me para outras certezas.
Depois de um breve desfiar de ocorrências da véspera, que tanto eu como a minha esposa trouxemos para aquele momento de aparente insónia, uma história, ou melhor, uma conversa que ela havia tido com uma colega nossa, na escola, nessa manhã, veio relembrar-me o que já há muito tempo sei. O país parece que não consegue desenvencilhar-se da corda que lhe aperta o fôlego, e um certo desnorte começa a embrenhar-se por entre o nosso acreditar. Não admira, por isso, que a nossa colega tenha dito à minha esposa, com uma voz algo atarantada e sem remédio, que, provavelmente, teria de despedir a empregada, porque o dinheiro do seu vencimento já não chegaria para esse encargo.
Já agora, sabem o porquê desta aflição toda? Eu conto, mas juro-vos que não vai apanhar ninguém de surpresa. O nosso governo, num gesto pouco original e sem provas dadas, desenterrou do meio da rispidez que cobre Portugal uma solução que irá, em princípio, perfumar este jardim à beira mar plantado. Isto é, decidiu aumentar aos impostos e subtrair aos ordenados, sem se esquecer, também, de cortar algumas regalias que apenas eram sentidas por alguns.
Ora bem! Esta jogada de mestre, no entender de quem a arquitectou, provavelmente, irá salvar o país. Espero bem que todos estes sacrifícios exigidos não acabem por encher alguns sacos errados e que as coisas continuem na mesma. Convém não esquecer que até o caminho mais íngreme tem sempre um ponto de chegada
Só um aparte. Como é que fica a situação da empregada da minha colega, no meio disto tudo? Quem é que irá zelar pelos suas obrigações e vontades, se a desgraçada tiver de ser despedida, para que a pátria se possa erguer do nevoeiro onde a mergulharam?
Coitada! A corda quebra-se sempre do lado do mais fraco. Ai vida, vida! Talvez um dia as coisas mudem e a água deixe de correr só porque o rio a leva.
Nessa noite de temporal e de algumas angústias à flor da pele, onde não faltou o relembrar de todo um rol de negatividades que têm vindo a afectar os portugueses, até os discursos sérios e preocupados dos nossos políticos vieram à tona.
Reconheço que esta conversa entre mim e a minha esposa, à partida, não seria a melhor solução para quem precisava de uma noite bem dormida, mas o que é que se havia de fazer? Às vezes, os assuntos nem sempre são os que mais nos convêm, mas o facto é que eles surgem.
Apesar de tudo, o sono sempre acabou por chegar, arrancando-me daquelas constatações nuas e cruas, e conduzindo-me para um sonho que me afastou da clareza do óbvio.
Das profundezas do meu dormir, vi emergir do fundo dum imenso mar de cor verde, repleto de cardos sem flor, uma nau com as velas desfraldadas, e onde se podia ver, no seu interior, um homem ainda jovem, que aparentava ser uma figura importante, talvez um rei. As suas mãos estavam presas ao leme e o seu olhar estendia-se pelo horizonte. De repente, duas gaivotas, vindas do nada, desceram a pique sobre a embarcação e poisaram nos ombros de tão estranho e altivo marinheiro e um vento suave começou a fazer-se sentir, enquanto uma névoa gélida envolveu os espaços. Quase de seguida, o ribombar dum trovão assustou as aves que, num repentino esvoaçar, mergulharam por entre os cardos e desapareceram. A névoa tornou-se, ainda, mais baça. Num gesto determinado, o tal homem despegou os olhos do horizonte, apontou numa direcção precisa e a nau começou a movimentar-se nesse mesmo sentido.
Numa força concertada, os cardos começaram a remexer-se, enrodilhando-se, por vezes, uns nos outros, como que querendo impedir que a nau seguisse o seu rumo. Não lhes valeu de nada, porque uma força maior guiava o querer daquele homem que continuava com o dedo apontado numa direcção precisa.
A dada altura, a névoa, como que num gesto de magia, dissipou-se e uns quantos relâmpagos começaram a cruzar tudo em redor. Como que vinda não sei de onde, uma voz estridente e firme começou a ouvir-se:
«Levando a bordo El-Rei Dom Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto, o pendão
Do Império,
A última nau, ao sol da esperança
Regressa às praias de Portugal,
Na ânsia de erguer da noite
Um povo com alma
E que quer voltar a ser grande.»
Num esvoaçar aflito, as gaivotas assomaram à tona da água, ergueram-se no ar e seguiram o balouçar determinado da nau, ladeando-a, numa postura que mais parecia a de uma guarda de honra.
Meu Deus! Nessa altura um só pensamento me surgiu: «Afinal o nosso fatídico rei, não morreu nos campos de batalha de Alcácer-Quibir! Isto quer dizer que os bruxos, os adivinhos e o nosso grande poeta, que escreveu o seu livro “… à beira mágoa”, sempre tiveram razão, quando diziam que ele havia de regressar numa manhã de nevoeiro, para salvar Portugal.»
Sem que a minha vontade o desejasse, uma música descontextualizada trouxe-me para a realidade do quarto, fazendo com que o sonho que me envolvia se desvanecesse. Era o previdente despertador.
Reparei nas horas, levantei-me, abri a persiana e olhei o exterior. Da chuva diluviana da noite, apenas o molhado da vegetação em redor o indiciava, porque o amanhecer azulado do céu dava a entender que o dia iria trazer outro esplendor.
Ainda absorto no que advinha do meu dormir, não deixei de reparar no que os olhos me traziam lá do fundo daquele horizonte que acabara de acordar: uma nuvem em forma de barco, ladeada de duas aves que, num movimente lento, se moviam na minha direcção.
Claro que, na altura, da minha cabeça só podiam ter discorrido aquelas palavras, e que ainda guardo no entendimento: «Que estranho! Será que é o que estou a pensar?
Talvez a empregada da minha colega esteja com sorte.»
Carlos Afonso
Sem comentários:
Enviar um comentário