Naquela manhã, Nívea, (vamos
chamar-lhe assim para que o anonimato necessário se mantenha), uma minha aluna
de Literatura, não estava feliz! Os seus olhos, e ao contrário do seu costume,
não deixavam passar qualquer réstia de alegria e o seu rosto inquieto parecia
sofrer muito, situação que me deixou preocupado e deveras curioso para o que se
poderia estar a passar. Apesar de a questionar acerca do seu estado mais do que
uma vez, uma sua indiferença triste nada me disse. Foi a sua colega do lado, que
se sentiu na obrigação de ajudar, bem ao de leve:
- É o amor, professor! Nem só Garrett
e Camões sofreram por ele!
Admirado pelo que acabava de ouvir e
conduzido pelas circunstâncias do momento, afaguei com algum nervosismo o
cabelo, abri a boca e disse:
- Sabem que mais, vou contar-vos uma
história. Pode ser?
Claro que podia ser. Nívea dirigiu-me
a sua atenção, tal como toda a turma, e eu contei:
«Há muitos séculos atrás, nas terras
de Monte Longo, vivia uma linda princesa, herdeira de todo um território que
aguçava a ambição de muitos pretendentes, ansiosos por desposá-la.
A linda
princesa, detentora de um forte engenho e amor pelo próximo, tinha cabelos cor
de ouro, mãos de prata e o seu olhar era do tamanho do luar de agosto. O seu pai,
um rei já velho e cansado, via nela uma herdeira à altura das suas vastas
terras de Monte Longo. Mas, para que tudo corresse às mil maravilhas, era
fundamental que sua filha casasse o quanto antes, pois a morte não deveria
demorar muito.
Muitos foram
os pretendentes da princesa, mas nenhum obtivera a aprovação desta, motivo de
aflição para o velho rei e toda a corte. Pelos vistos, todos aqueles rapazes,
oriundos de variadas famílias nobres de todo o Portugal e até da Espanha não
tinham o que ela procurava.
E agora? Como é que o rei iria
resolver o grave problema?
Vivia naquelas terras de Monte Longo,
num lugarejo escondido entre carvalhais e pauis, um jovem pastor, rapaz
ajuizado e amante do seu trabalho de guardar ovelhas durante todos os dias do
ano. Servo de um avarento fidalgo, não usufruía qualquer dinheiro em troca do
seu labor, apenas uma pequena parte do leite dos animais, porção essa que mal
chegava para a sua sobrevivência e de sua mãe, uma pobre mulher doente e viúva.
Mas, e apesar da sua condição, era um rapaz feliz e detentor de uma grande
paixão pela linda princesa, a filha do seu rei.
Consciente do seu amor impossível, o
jovem pastor apenas confidenciava os seus sentimentos a um pequeno cordeirinho,
que, na sua postura de animal irracional, se deixava apegar ao colo e até
parecia que o escutava. Assim, e quando ele partilhava as suas palavras de amor
com o cordeiro, este apegava-se ao seu dono e ali se deixava no aconchego.
Num belo dia de primavera, os campos
estavam cheios de flores e de todos os cantos se faziam ouvir a chilreada alegre
da passarada. E foi por cauda deste dia maravilhoso que a linda princesa
decidiu dar um passeio pelo campo na companhia das suas aias.
Ora bem, o jovem pastor parece que
estava com sorte, pois mal se apercebeu da presença da sua amada, as paragens
onde guardava o seu rebanho, resolveu logo oferecer-lhe um presente. Como não
achasse nada à altura da princesa, lembrou-se que a única coisa que poderia
oferecer era o cordeirinho. Se bem o pensou, logo o executou. Pegou no animalzinho
ao colo e, com todo o respeito e carinho, ofereceu-o à princesa. Esta agradeceu
o seu gesto, mas nem sequer se dignou reparar no rapaz. Pegou no cordeiro ao
colo, olhou-o nos olhos, correu para o palácio e fez do pequeno animal o seu
maior amigo, que até dormia num pequena casota, num canto do seu quarto. Quanto
ao pastor, esse resignou-se com o facto de que, pelo menos, a princesa
partilhava com ele uma mesma afeição: o amor pelo cordeiro.
O tempo foi passando e o cordeirinho
foi crescendo, sem nunca perder o afeto da princesa. Numa tarde de muita chuva,
daquelas que nos fazem ter medo, chegou ao castelo um alto rapaz, em cima de um
forte cavalo, filho dos abastados condes de Basto, com o objetivo definido de
pedir a princesa em casamento, pedido este que foi logo aceite pelo rei, mas
não pela princesa. E porque os maus instintos também afetam as gentes de bem, o
velho rei tratou logo de arranjar uma estratégia para obrigar a filha a casar
com o recém-pretendente. Assim, e em segredo,
o rei e o filho dos condes de Basto decidiram simular o rapto da princesa e,
desta forma, arranjarem um estratagema para que se pudessem casar.
A noite estava escura, e tal como o
combinado, um vulto silencioso subiu por uma escada e, quando se preparava para
entrar no quarto da princesa pela janela, o cordeiro, que se havia apercebido
do que estava a acontecer, tratou logo de, com uma marrada certeira, atirar da
janela abaixo o raptor da princesa.
Na manhã seguinte, o filho dos condes
de Basto, mal se podia mexer, até parecia que tinha caído de uma alta parede.
Claro que tinha sido ele o fracassado raptor, que, e mal se havia recomposto da
queda jurou acabar com a vida do cordeiro. Pelo menos o maldito animal não se
voltaria a meter entre ele e a princesa. Assim, e com a concordância do rei, o
cordeiro foi levado para muito longe, para um sítio onde ninguém o encontrasse.
Este desaparecimento do animal deixou muito triste a princesa, que se via agora
sem o seu fiel companheiro.
E porque uma vez não tira a segunda,
a infeliz princesa, numa outra noite de breu, sempre acabou por ser levada
pelos braços malévolos do filho dos condes de Basto, acoberto da ajuda de
alguns compinchas. Satisfeito por ter na sua posse tão valiosa prenda real,
tratou logo, no matagal mais próximo, sob a proteção do escuro, de prosseguir
com os seus intentos e de fazer da linda donzela, e ali mesmo, sua mulher. Mas
nada correu como o pretendido, porque, alertado pelos gritos abafados da
princesa, o jovem pastor acorreu rapidamente e salvou-a das garras do seu
algoz. Com a cabeça a sangrar da forte paulada do cajado do pastor, o filho dos
condes de Basto meteu as pernas ao caminho e desapareceu, para nunca mais
voltar.
Satisfeito com o seu ato de coragem,
pegou na princesa e, encostando-a peito, levou-a de volta para o palácio do
rei, para desilusão de tão insensato pai.
Já arrependido do que havia
conspirado com o filho do conde, quis recompensar o corajoso pastor,
dizendo-lhe que podia pedir o que ele quisesse como recompensa, pois ser-lhe-ia
dada. O pastor, não tendo força bastante para pedir a mão da princesa, limitou-se
a solicitar o cordeiro de volta, pedido que não foi atendido, uma vez que
ninguém mais o vira, apesar de ter sido procurado no lugar onde tinha sido
escondido.
No outro dia, e já recomposta o
sucedido, a princesa apareceu deslumbrante e sorridente no banquete em honra do
pastor, sentando-se sem qualquer cerimónia a seu lado. Instintivamente, os dois
olharam-se intensamente e, apesar de ser a primeira vez que o faziam, a
princesa reconheceu no olhar doce do rapaz uns olhos seus conhecidos. Depois,
voltando-se para o velho rei disse:
- Meu pai, é meu intento casar com
este valente pastor, se ele assim o desejar e você mo permitir.
Claro que o pastor aceitou tão real
pedido. Claro que o pai atendeu ao rogo da filha, e pouco tempo depois, os dois
casavam-se com pompa e circunstância para gaudio de todo o reino.»
Terminada a história, os alunos sentiram-se
agradados com a mesma, apreciação que Nívea também partilhou.
No final da aula, e com o seu sorriso
costumeiro e já afastada da indisposição angustiante do início da aula, deixou
sair todos os colegas, abeirou-se de mim e ofereceu-me quatro pequenas frases
que não esquecerei.
- Obrigado, professor, já me sinto
melhor. Eu percebi a moralidade da sua história. A esperança é a última a
morrer. Se nós acreditarmos a sério nos nossos sonhos, eles realizar-se-ão.
Carlos Afonso
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