sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O pastor e a princesa das terras de Monte Longo



        

Naquela manhã, Nívea, (vamos chamar-lhe assim para que o anonimato necessário se mantenha), uma minha aluna de Literatura, não estava feliz! Os seus olhos, e ao contrário do seu costume, não deixavam passar qualquer réstia de alegria e o seu rosto inquieto parecia sofrer muito, situação que me deixou preocupado e deveras curioso para o que se poderia estar a passar. Apesar de a questionar acerca do seu estado mais do que uma vez, uma sua indiferença triste nada me disse. Foi a sua colega do lado, que se sentiu na obrigação de ajudar, bem ao de leve:
- É o amor, professor! Nem só Garrett e Camões sofreram por ele!
Admirado pelo que acabava de ouvir e conduzido pelas circunstâncias do momento, afaguei com algum nervosismo o cabelo, abri a boca e disse:
- Sabem que mais, vou contar-vos uma história. Pode ser?
Claro que podia ser. Nívea dirigiu-me a sua atenção, tal como toda a turma, e eu contei:
«Há muitos séculos atrás, nas terras de Monte Longo, vivia uma linda princesa, herdeira de todo um território que aguçava a ambição de muitos pretendentes, ansiosos por desposá-la.
            A linda princesa, detentora de um forte engenho e amor pelo próximo, tinha cabelos cor de ouro, mãos de prata e o seu olhar era do tamanho do luar de agosto. O seu pai, um rei já velho e cansado, via nela uma herdeira à altura das suas vastas terras de Monte Longo. Mas, para que tudo corresse às mil maravilhas, era fundamental que sua filha casasse o quanto antes, pois a morte não deveria demorar muito.
            Muitos foram os pretendentes da princesa, mas nenhum obtivera a aprovação desta, motivo de aflição para o velho rei e toda a corte. Pelos vistos, todos aqueles rapazes, oriundos de variadas famílias nobres de todo o Portugal e até da Espanha não tinham o que ela procurava.
E agora? Como é que o rei iria resolver o grave problema?
Vivia naquelas terras de Monte Longo, num lugarejo escondido entre carvalhais e pauis, um jovem pastor, rapaz ajuizado e amante do seu trabalho de guardar ovelhas durante todos os dias do ano. Servo de um avarento fidalgo, não usufruía qualquer dinheiro em troca do seu labor, apenas uma pequena parte do leite dos animais, porção essa que mal chegava para a sua sobrevivência e de sua mãe, uma pobre mulher doente e viúva. Mas, e apesar da sua condição, era um rapaz feliz e detentor de uma grande paixão pela linda princesa, a filha do seu rei.
Consciente do seu amor impossível, o jovem pastor apenas confidenciava os seus sentimentos a um pequeno cordeirinho, que, na sua postura de animal irracional, se deixava apegar ao colo e até parecia que o escutava. Assim, e quando ele partilhava as suas palavras de amor com o cordeiro, este apegava-se ao seu dono e ali se deixava no aconchego.
Num belo dia de primavera, os campos estavam cheios de flores e de todos os cantos se faziam ouvir a chilreada alegre da passarada. E foi por cauda deste dia maravilhoso que a linda princesa decidiu dar um passeio pelo campo na companhia das suas aias.
Ora bem, o jovem pastor parece que estava com sorte, pois mal se apercebeu da presença da sua amada, as paragens onde guardava o seu rebanho, resolveu logo oferecer-lhe um presente. Como não achasse nada à altura da princesa, lembrou-se que a única coisa que poderia oferecer era o cordeirinho. Se bem o pensou, logo o executou. Pegou no animalzinho ao colo e, com todo o respeito e carinho, ofereceu-o à princesa. Esta agradeceu o seu gesto, mas nem sequer se dignou reparar no rapaz. Pegou no cordeiro ao colo, olhou-o nos olhos, correu para o palácio e fez do pequeno animal o seu maior amigo, que até dormia num pequena casota, num canto do seu quarto. Quanto ao pastor, esse resignou-se com o facto de que, pelo menos, a princesa partilhava com ele uma mesma afeição: o amor pelo cordeiro.
O tempo foi passando e o cordeirinho foi crescendo, sem nunca perder o afeto da princesa. Numa tarde de muita chuva, daquelas que nos fazem ter medo, chegou ao castelo um alto rapaz, em cima de um forte cavalo, filho dos abastados condes de Basto, com o objetivo definido de pedir a princesa em casamento, pedido este que foi logo aceite pelo rei, mas não pela princesa. E porque os maus instintos também afetam as gentes de bem, o velho rei tratou logo de arranjar uma estratégia para obrigar a filha a casar com o recém-pretendente.  Assim, e em segredo, o rei e o filho dos condes de Basto decidiram simular o rapto da princesa e, desta forma, arranjarem um estratagema para que se pudessem casar.
A noite estava escura, e tal como o combinado, um vulto silencioso subiu por uma escada e, quando se preparava para entrar no quarto da princesa pela janela, o cordeiro, que se havia apercebido do que estava a acontecer, tratou logo de, com uma marrada certeira, atirar da janela abaixo o raptor da princesa.
Na manhã seguinte, o filho dos condes de Basto, mal se podia mexer, até parecia que tinha caído de uma alta parede. Claro que tinha sido ele o fracassado raptor, que, e mal se havia recomposto da queda jurou acabar com a vida do cordeiro. Pelo menos o maldito animal não se voltaria a meter entre ele e a princesa. Assim, e com a concordância do rei, o cordeiro foi levado para muito longe, para um sítio onde ninguém o encontrasse. Este desaparecimento do animal deixou muito triste a princesa, que se via agora sem o seu fiel companheiro.
E porque uma vez não tira a segunda, a infeliz princesa, numa outra noite de breu, sempre acabou por ser levada pelos braços malévolos do filho dos condes de Basto, acoberto da ajuda de alguns compinchas. Satisfeito por ter na sua posse tão valiosa prenda real, tratou logo, no matagal mais próximo, sob a proteção do escuro, de prosseguir com os seus intentos e de fazer da linda donzela, e ali mesmo, sua mulher. Mas nada correu como o pretendido, porque, alertado pelos gritos abafados da princesa, o jovem pastor acorreu rapidamente e salvou-a das garras do seu algoz. Com a cabeça a sangrar da forte paulada do cajado do pastor, o filho dos condes de Basto meteu as pernas ao caminho e desapareceu, para nunca mais voltar.
Satisfeito com o seu ato de coragem, pegou na princesa e, encostando-a peito, levou-a de volta para o palácio do rei, para desilusão de tão insensato pai.
Já arrependido do que havia conspirado com o filho do conde, quis recompensar o corajoso pastor, dizendo-lhe que podia pedir o que ele quisesse como recompensa, pois ser-lhe-ia dada. O pastor, não tendo força bastante para pedir a mão da princesa, limitou-se a solicitar o cordeiro de volta, pedido que não foi atendido, uma vez que ninguém mais o vira, apesar de ter sido procurado no lugar onde tinha sido escondido.
No outro dia, e já recomposta o sucedido, a princesa apareceu deslumbrante e sorridente no banquete em honra do pastor, sentando-se sem qualquer cerimónia a seu lado. Instintivamente, os dois olharam-se intensamente e, apesar de ser a primeira vez que o faziam, a princesa reconheceu no olhar doce do rapaz uns olhos seus conhecidos. Depois, voltando-se para o velho rei disse:
- Meu pai, é meu intento casar com este valente pastor, se ele assim o desejar e você mo permitir.
Claro que o pastor aceitou tão real pedido. Claro que o pai atendeu ao rogo da filha, e pouco tempo depois, os dois casavam-se com pompa e circunstância para gaudio de todo o reino.»
Terminada a história, os alunos sentiram-se agradados com a mesma, apreciação que Nívea também partilhou.
No final da aula, e com o seu sorriso costumeiro e já afastada da indisposição angustiante do início da aula, deixou sair todos os colegas, abeirou-se de mim e ofereceu-me quatro pequenas frases que não esquecerei.
- Obrigado, professor, já me sinto melhor. Eu percebi a moralidade da sua história. A esperança é a última a morrer. Se nós acreditarmos a sério nos nossos sonhos, eles realizar-se-ão.

Carlos Afonso

  


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