Aquele dia de outubro estava apático, cinzento e a ameaçar chuva. Na cidade, os hábitos eram os mesmos e os carros seguiam consoante as intenções dos seus donos. Era uma segunda-feira de manhã e eu vinha da piscina municipal, espaço bem definido de Fafe, e onde costumo ir às segundas e sextas, das onze ao meio dia, mais ou menos, fazer o exercício necessário. Ao passar junto do Palacete encostado ao Centro de Emprego, algo me impeliu para ver e escutar o que agora lhe conto, caro leitor, num tom ainda de encantamento. Acrescento, desde já, que nem tudo o que vou gravar nesta história aconteceu tal e qual, mas um decoro mais ficcional e a condizer fica sempre bem em qualquer enredo, principalmente quando mora no seu íntimo uma moralidade clara.
Determinado a chegar a casa o mais rápido possível, saí da piscina e emprestei aos meus passos uma dinâmica mais ágil e esclarecida, pormenor que esbarrou, sem eu querer, numa vontade estranha de parar e de me encostar ao muro do Palacete para o poder mirar mais em pormenor e ver não sei o quê. Juro, amigo leitor, que este meu gesto não estava nos meus intentos iniciais. Surgiu bem ali, naquela hora, num a segunda de manhã.
A casa de que estou a falar foi mandada construir por Manuel Rodrigues Alves, natural do Porto, casado com Soledade Summavielle Soares, neta paterna do "brasileiro" José Florêncio Soares e de Maria Teresa da Costa, no princípio do Séc. XX. Depois de passar por outros donos, hoje pertence ao estado e encontra-se devoluta e em avançado estado de degradação. No contexto das casas brasileiras de Fafe é, e em razão também da data da sua construção, a única casa com predominância de elementos arte nova. Segundo outras informações que me foram prestadas, o edifício terá sido construído a partir de uma planta importada de França.
O problema é que hoje em dia o aspeto estragado do exterior do Palacete, e de certeza que acontece o mesmo com o interior, causa-nos uma angústia no olhar e nos sentimentos. Não entendo como se deixam arruinar as memórias de todo um povo! Se calhar foi por causa disso que tudo aconteceu.
Apegado ao muro, e no preciso instante em que tentava esforçadamente ver as paredes com suas cores desbotadas e as janelas que nada deixavam ver, que uma voz feminina se fincou nos meus ouvidos e disse claramente:
- Está ver o mesmo que eu?
- Como disse? – Acrescentei eu, ao mesmo tempo que lhe atirava com a minha atenção.
- Está ver ao que as coisas chegam? Isto está a precisar de um empurrão, senão, qualquer dia, tudo desaparece. Desculpe, posso roubar algum do seu tempo?
Claro que eu estava a ver. Claro que aquela voz feminina tinha dono e tinha toda a razão do mundo. Claro que ela me podia roubar algum do meu tempo. A idade de quem me falava já era muita, mas de uma lucidez perfeita.
A senhora que falava comigo estava de branco vestida e os seus olhos não tinham cor. As mãos estendiam-se e movimentavam-se de acordo com as frases proferidas. O rosto mostrava algumas rugas, mas não muitas. A cor do cabelo era quase cinzenta. Minto. Era quase branca.
A conversa entre mim e a dita senhora, senhora esta que me apareceu ali de repente e me confidenciou o que de seguida vos transmitirei, durou o tempo suficiente para que dos seus lábios pálidos, pudesse derivar o relato de um sonho que já a perseguia há algum tempo, e que, desde essa altura me persegue a mim. Eu digo sonho, mas ele é muito mais do que isso. Ai isso é que é.
E o sonho era assim… e continua a ser assim:
De dentro do dormir daquela senhora, e agora de dentro do meu dormir, à mesma hora, assinalada pelo mesmo relógio antigo, preso a uma mesma parede que nunca se mostrou, surge, bem na frente de quem o enxerga, um menino que brinca ininterruptamente com uma bola, fazendo-a bater nas paredes do Palacete de que vos falei. No sonho, as paredes estão pintadas de um preto feio como a noite mais feia. O menino, em calções e descalço, e ao mesmo tempo que atira com a bola que depois volta a agarrar, soluça um soluçar melancólico e monocórdico. As suas faces não se conseguem enxergar, mas as suas mãos estão sujas de um sujo também ele escuro. E, depois de alguns minutos passarem, um estremecer súbito das vidraças cerradas do Palacete fazem com que o menino pare de atirar a bola e comece a esgravatar na direção dos alicerces do edifício. Desde o início de todo este quadro que um frio insuportável cerca o menino, sem que a sua forma de vestir o estranhe. E esgravata e continua a esgravatar, sem parar de soluçar, até ao instante em que todo o edifício desaparece, engolido pelo buraco que o menino cavou. Assim, e sem mais nada, o sítio do palacete desaparece e com ele o menino, restando apenas, preso a um punhado de ervas secas, que ali nasceram do nada, uma bola, um livro, que ainda não tinha aparecido no sonho, e o soluçar do menino. Na capa do livro, e muito a custo, veem-se apenas duas palavras meias gastas, parecendo faltar uma outra, presentemente ilegível, apagada não sei por quem ou porquê. Com esforço para quem tenta ler com os olhos cerrados que alimentam os sonhos de qualquer dormir, lá se vai vislumbrando as palavras «Fafe dos…», e mais nada. Depois, um grito mais audível da criança, vindo não sei de onde, acorda quem sonha e… a noite continua acordada…
Depois, primeiro a senhora e agora eu, com os olhos bem abertos, questionamos: Que sonho é este? Que fantasma é aquele? Porquê a bola? E o livro? Qual é a palavra que falta?
Ainda não consegui obter respostas nem entender o significado de tantas perguntas. Se o leitor deduzir o sentido de tudo isto, por favor esclareça-me, para ver se o sossego retorna ao meu dormir e ao da senhora de branco vestida.
Bem! Pelo menos, quanto à palavra… eu penso que sei qual é a que está em falta. Deve ser... ou não… «Brasileiros». É isso: «Fafe dos Brasileiros». Tal qual como o Miguel Monteiro a escreveu um dia. Soa bem e tem todo o sentido. Mas por que motivo não está visível?
Carlos Afonso
minha infância e parte da adolescência foi vivida aí, nesse Palacete, nesse lugar que nos foi "roubado" e que, agora, está votado ao abandono...nesse lugar que não fala palavras de vida, como outrora...nesse lugar que criou tanta humanidade e que, quem ignora, continua falando em quem construiu ou quem vendeu a quem, mas esquece quem a lá deu vida...e a vida...sinceramente, não entendi a narrativa, mas se a ideia foi acirrar a curiosidade, a minha teve....e mais digo..GRAÇAS A DEUS QUE OS FANTASMAS NÃO CONTAM NEM 1/1000 DO QUE EU VI....
ResponderEliminarAmigo, Miguel, de facto a ideia é mesmo essa. Sempre que ali passo, fico triste. Como é que se deixa ao abandono um edifício tão belo e fascinante? O que eu pretendo, de uma forma ficcionada, claro está, é para a necessidade de o reconstruir e alertar a quem de direito para que tome medidas para que Fafe não perca um dos seus exemplares arquitetónicos mais belos e se respeitem todos os que ali viveram, como foi o teu caso.Só assim, a criança voltará a ser feliz, o livro terá o título completo e, com certeza, tu ficarás mais em paz. Obrigado pela tua atenção. Digo-.te mais, que o que aqui escrevi é apenas uma pequena crónica, mas a ideia é escrever mesmo um romance. Um dia gostava de falar contigo. Abraço
ResponderEliminarMuitos parabéns por mais este lindo conto Professor Carlos.
ResponderEliminarAbraço
Ex-Aluno
Vasco Neves
Tanto dinheiro investido para deixar ao abandono.
ResponderEliminarPodiam ao menos alugar o palacete aos pobres para viverem.