O fim e o princípio
É a vontade de caminhar que enaltece o traçado dos caminhos.
Uma das muitas belezas que a cidade de Fafe nos oferece está no seu estilo muito próprio de se mostrar durante a noite, por alturas do Natal. Motivo pelo qual eu gosto de calcorrear as ruas e praças, becos e jardins desta esbelta cidade e sorver todos os instantes que se me oferecem, usufruindo, assim, de toda uma ambiência natalícia, salpicada de um misticismo mágico. Mas, às vezes, o destino ou o mero acaso surpreendem-nos, e a alma como que se une ao corpo, numa cumplicidade intencional. Foi o que aconteceu na noite de 3 de Janeiro de 2011.
A aragem estava fria e um nevoeiro agarradiço toldava as fachadas do casario dum acinzentado esquisito, mas sem conseguir retirar o brilho bastante das iluminações de Natal que se estendiam pela Praça 25 de Abril e arredores. Apesar de não ser uma rotina para mim, nessa terceira noite do ano de 2011, e depois de uma caminhada desde as redondezas do rio Ferro, onde moro, resolvi entrar na Brasileira e tomar um descafeinado. Para além de mim, só o proprietário deste sítio acolhedor e outros dois clientes constituíam os residentes do espaço. Não demorei mais de meia hora, tempo mais que suficiente para não escutar conversa alguma, pois o jogo que decorria na televisão prendia a atenção dos meus companheiros de espaço. Antes de sair, ainda tive ocasião de reparar que numa das mesas jazia um pequeno livro de capas acastanhadas. Porque o desejei, consegui ver o título, facto que me deixou um pouco curioso e com vontade de o desfolhar. O Princípio e o Fim era, na verdade, um título interessante. À sorte, abri-o e o que dizia uma frase a negrito, na página doze, levou-me a constatar que as circunstâncias podem assustar-nos: “Por vezes, a luz mais brilhante esconde o negrume mais carregado». Reconheço que não li mais nada e nem procurei saber o autor deste solitário livro, pois a frase como que me tirou o fôlego. Fechei-o e segui o meu destino.
O que é que o autor de tão estranha frase quereria dizer?
A noite continuava a braços com um intenso nevoeiro e a iluminação natalícia lá ia conseguindo ultrapassar as adversidades climatéricas, e sempre continuava a mostrar os seus propósitos. Reconheço que toda esta ambiência começava a apertar-me a vontade, e um certo mistério começou a desenhar-se em meu torno.
Senti passos. Olhei e não vi ninguém. Um leve tremer de pernas fez-me parar, e, sem que o esperasse, reparei num cão que passou por mim, olhando-me de soslaio. E porque a noite foi feita para todos, não dei muita importância ao animal. Depois, lembrei-me da frase que li no livro que encontrara na Brasileira, ganhei ânimo e retomei a caminhada.
Enquanto distendia os passos, ao longo das ruas, um breve pensamento acercou-se de mim: Será que a mensagem daquela frase gravada a negrito no livro tem algum propósito especial ou estará descontextualizada? Nesse momento senti algum remorso de não ter lido mais alguns excertos. Mas, já era tarde, a não ser que invertesse o rumo e voltasse atrás. Não o fiz e continuei.
Depois de percorrer toda a praça 25 de Abril, e quando passava bem perto do Jardim Calvário reparei num piscar insistente de umas luzes de várias cores que enfeitavam uma pequena árvore de Natal, numa montra de roupa que ali se encontrava. Não sei porquê, aproximei-me e fiquei estupefacto com o que vi. Bem no centro da montra, entre o vidro e a pequena árvore, estava um postal que tinha uma imagem indefinida e uma frase que eu já conhecia: “Por vezes, a luz mais brilhante esconde o negrume mais carregado». E, o mais estranho, e que me fez apertar o último botão do casaco, reparei que entre dois manequins, um vestido com roupa branca e um outro com roupa negra, um pequeno livro amostrava-se-me com um título, também ele já meu conhecido: O Princípio e o Fim
Meu Deus, mas o que é que se está a passar? Pensei para comigo, enquanto atirava um olhar para as redondezas. Não alcancei ninguém, apenas silêncio, nevoeiro, o brilho esforçado da iluminação, o acinzentado esbatido do casario e… Mas o que é aquilo? Gritei numa voz muda que me atordoou a lucidez.
O tal cão que ainda há bem pouco tempo havia passado por mim, estava, agora, numa postura esfíngica a olhar-me bem lá de cima, no topo da escadaria que conduz ao Jardim do Calvário, encostado ao portão.
Nesse instante, um calafrio percorreu todo o meu corpo e fiquei gélido. De súbito, o cão levantou-se, abanou a cabeça e começou a descer as escadas e, num tom ameaçador veio na minha direcção. Assustado, quis fugir dali, mas as pernas não me deixaram. E, quando o animal já se encontrava a pouco mais de dois metros da minha quietude, cerrei os olhos. Imóvel, esperei por um arremesso ou um ataque brutal ou por uma outra coisa qualquer. Esperei, esperei, e nada.
A custo, abri os olhos e…
Mas onde está o raio do cão?
Um misto de admiração, medo e alívio enrodilharam-se à minha forma de estar, e a minha questão repetiu-se e repetiu-se e repetiu-se.
À minha frente apenas a noite, as luzes, o nevoeiro, o casario, e algo mais: no mesmo sítio, pousado no asfalto, onde se encontrava o cão, estava um pequeno livro de capas acastanhadas, com o mesmo título dos anteriores: O Princípio e o Fim.
Por incrível que pareça, esta situação, aparentemente repetida, não me espantou, até me pareceu óbvia. Não admira, por isso que eu tenha pegado no livro e, sem qualquer temor, o tenha colocado debaixo do braço. Não o abri, isso ficaria para mais tarde, mas, nesse preciso momento, uma leve brisa começou a afagar-me o rosto e a iluminação natalícia pareceu-me mais brilhante. Ao longe, ouviu-se, claramente, o latir cadenciado dum cão, logo seguido de um badalar abafado de um sino, enquanto um leve dissipar do nevoeiro deixou que uma estrela assomasse lá do alto.
Sem querer perceber mais nada, tentei relevar todas aquelas ocorrências que me tinham assaltado durante este passeio nocturno e dispus-me a regressar a casa, pois dali até à Urbanização Salgueiro Maia ainda era uma boa esticada. Segui em direcção aos correios, passei junto ao hospital e só parei junto aos semáforos, porque o sinal vermelho para peões assim o exigiu.
Quando já me preparava para retomar o regresso, e porque o sinal devia estar mesmo a mudar, as luzes intensas de um automóvel que vinha dos lados do campo de futebol encadearam-me e fizeram com que continuasse parado à espera não sei do quê, sem poder ver absolutamente nada.
Senti o carro a parar, uma porta a abrir-se e passos a dirigirem-se na minha direcção. Depois, e após breves instantes de um certo vazio e alguma ansiedade, escutei a voz de minha esposa:
- Carlos, o que estás aqui a fazer? Anda para a cama que já é muito tarde.
Algo atarantado, abri os olhos e olhei-a por instantes, e pouco disse:
- O que é que queres? Parece que adormeci.
Tudo me pareceu estranho. Afinal foi apenas um sonho.
Às vezes as circunstâncias mostram-nos o quanto é estreita a linha que separa o concreto do inexistente.
Verifiquei o meu estado e analisei as circunstâncias que me circundavam: a lareira já estava apagada; a televisão ainda permanecia ligada e, no meu relógio, passavam três minutos das quatro da manhã.
Levantei-me do sofá e quando ia a desligar a televisão, reparei no que o ecrã me mostrava. Uma Jornalista ainda jovem trocava umas impressões com uma convidada acerca de um livro que havia sido apresentado nessa manhã na livraria Lello do Porto. O que elas diziam pareceu-me banal até ao instante em que pronunciaram o título: O Princípio e o Fim.
Mas… o que é isto? Matutei atabalhoadamente.
O que aquelas duas interlocutoras disseram a partir daí absorveu-me cada vez mais o espírito, e, no final da conversa, pareceu-me perceber o que se passara naquela noite de três 3 de Janeiro.
O livro de que se falava na televisão contava a história de um homem que fazia dos seus dias um permanente desafio ao respeito, à solidariedade e ao humanismo. E, certa vez, depois de ter cumprido à risca mais um dos seus esquemas de malvadez, acabou por se que perder na noite. Era altura do Natal e estava um nevoeiro cerrado. Assim, e quando caminhava na companhia dos seus pensamentos, num dos seus passeios solitários, pelas ruas da cidade onde morava, debateu-se com um estranho encontro. Um cão, vindo não sei de onde e num tom ameaçador, apareceu no caminho, para o atormentar. Depois de algumas peripécias, mal-entendidos e receios, este homem descobriu que esse animal era especial. Ele era especial, pois tinha sido enviado por Deus, para o proteger dos muitos enganos e imposturas que moravam na sua alma, e da forma fria e injusta como costumava lidar com o seu semelhante.
A boa figura e o sorriso forte e claro com que este homem se apresentava perante os outros, não eram mais do que uma luz traiçoeira que acompanhava a sua forma de agir e que servia, apenas, para esconder o mal e a hipocrisia que reinava no seu coração. E foi aquele cão, vindo a mando de Deus, e que não era mais do que um anjo de Natal encarnado, que lhe mostrou que o princípio de uma nova vida implica o fim de uma vida plena de pecado e transgressão. Foi aquele cão, e depois de algumas cenas que a jornalista e a sua convidada resumiram por alto, que mostrou à personagem principal do livro que o princípio de um homem novo exige o fim de um caminhar por entre escuridões e vendavais.
A dada altura, e no momento em que a jornalista de acabava de ler a última frase do livro, fui tomado por um impulso que me acelerou o coração. Então, a frase que eu já tinha lido em outras circunstâncias, dentro do meu sonho, servia apenas para constatar aquilo que eu entendi na perfeição: as aparências iludem.
Aquele homem, a personagem principal, fartara-se de enganar e ludibriar, e foi preciso um encontro diferente numa noite, por altura do Natal, para que o rumo da sua vida se alterasse. Deste modo, a frase “Por vezes, a luz mais brilhante esconde o negrume mais carregado” tinha e tem todo o sentido.
Afinal, o que aconteceu no meu sonho, naquela noite, uma noite muito idêntica à da personagem do livro, foi muito mais do que um sonho. Foi um comprovar de que as coisas nem sempre são aquilo que parecem, e que o coração do homem nunca é velho para mudar e saber entender a verdade que se solta dos carreiros claros de algumas manhãs de Maio, quando o feno dos prados mostra a sua verdadeira cor.
Como é evidente, e logo que se propicie, irei comprar o livro. Não que eu não saiba já o seu enredo e envolvência, mas, e só por isso, querer perceber, melhor, apenas dois pormenores: o meu verdadeiro papel no meio disto tudo e o porquê de tão estranhas similitudes.
Carlos Afonso
Não gostei... Adorei.
ResponderEliminarObrigado, Daniel
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