Eu sei que os dias nem sempre correm de feição e as noites nem sempre conseguem mostrar a luz meiga do luar. Mas, às vezes, o céu empresta-nos a sua sina e deixa que as nossas vivências se tornem das cores perfumadas que definem a Primavera. E ainda bem que assim é, pois seria de muito má sorte vivermos, permanentemente, envoltos numa névoa invernal, à espera que os momentos desembocassem no vazio.
Para quem teve o privilégio de assistir ao espectáculo que o núcleo de patinagem artística do Grupo Nuno Álvares nos ofertou num sábado diferente de todos os outros, dia 18 de Janeiro, pode provar um pouco desse céu caridoso de que falei. E querem saber porquê? Se não se importam, ofereçam-me a vossa atenção e embarquem numa viagem com volta, a bordo de uma nau, com mais de quinhentos anos.
O Pavilhão Multiusos estava repleto, a música engalanava as atenções e as bandeiras convidavam-nas para a festa. Do ringue, espaço onde as patinadoras, e consoante a seu esquema e ordem de participação, esvoaçavam ao sabor da mestria, do esforço e de um desejo maior, levadas pela maresia e por um oceano que já foi nosso!
Que magia e toques de perfeição se soltavam dos seus gestos, posturas e atrevimentos!
O tema de todo o espectáculo assentava nos descobrimentos portugueses, facto que foi comprovado por um apresentador que se vestiu a rigor com uma roupagem igualzinha à do mítico infante Dom Henrique. Se o nosso navegador foi o pilar iniciático das nossas descobertas, este quase actor do grupo Nuno Álvares, orientou, na perfeição, tão simbólico e original espectáculo.
Como já devem ter reparado nos vários textos que tenho escrito, eu acredito piamente nos indícios dos olhares, assim como tenho a certeza de que os momentos não acontecem por acaso e de que os caminhos nem sempre começam nas partidas. Por isso, não admira que umas simples palavras proferidas por um senhor de meia-idade, que se encontrava sentado na fila atrás de mim, nesse emblemático espectáculo de patinagem, me tenham conduzido, poucas horas mais tarde, para um outro espaço, um outro tempo, na companhia de um passado ainda bem vivo na mente dos que acreditam
- Que maravilha! Estas patinadoras agem tão ligeiras nos seus patins, que até parecem impulsionadas pelos mesmos ventos que guiaram as embarcações dos nossos navegadores.
Reconheço que gostei do comentário, assim como da convicção com que foi pronunciado.
Às vezes é a forma com que dizemos as palavras que nos permite ver os destinos mais cobiçados.
Acabado o espectáculo, e já havíamos entrado na primeira hora da madrugada de Domingo, regressei satisfeito a casa. A dada altura, e quando já me embrenhava com um sono que custou a chegar, as palavras do tal senhor, o tal que estava sentado na fila atrás de mim, vieram-me à memória e, meus amigos, embarquei numa quase real aventura, de que vos vou contar só uma ínfima parte. O restante, talvez vo-lo narre numa ocasião mais propícia.
Uma leve neblina cobria toda a embarcação, facto que não impedia que todos aqueles que olhavam a distância perscrutassem algum indício de ilha ou continente que nos permitisse atracar. Esta busca parecia eternizar-se e algum desânimo começava a desenhar-se na alma, mas a dada altura, e porque Deus também o quis, o esvoaçar insistente de duas gaivotas e o grito rouco do gajeiro materializaram o desejo de toda uma tripulação, ansiosa por encontrar terra, depois de mais de um mês de viagem.
Pouco a pouco, o longe começou a definir-se aos nossos olhos e a costa que se mostrava na distância deixou que o espírito da descoberta se cravasse nas suas entranhas e começasse a vislumbrar montanhas, árvores, sons, uma extensa praia e...
Claro que durante toda a santa noite descobri um mundo novo, perfumes desconhecidos, águas translúcidas, gentes de cor negra, sabores que me criaram uma leve indigestão e costumes que me espantaram. Foi pena que no momento em que estávamos a receber das mãos das filhas do rei daquelas paragens colares de flores, um despertador, comprado já em pleno século XXI, me tenha devolvido ao meu tempo e a uma manhã nublada de Domingo.
Apenas um desabafo em forma de pergunta. O que seria do rigor acertado das horas e do real objectivo dos dias sem os devaneios desconcertados dos sonhos? Provavelmente tudo seria mais frio e as rosas jamais se mostrariam nas manhãs límpidas de Maio.
Carlos Afonso
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