Nos muitos
lugares que povoam a província do Minho, em Portugal, acontecem coisas de uma
realidade tão misteriosa que, muitas vezes, se transformam em histórias sem
tempo, que a sabedoria do nosso povo considera suas e guarda-as com muita fé. E
porque o que acabei de dizer tem sentido, vou contar-vos o que aconteceu há
poucos anos atrás, numa tarde de outono, em Várzea Cova, freguesia do concelho
de Fafe, perto de um dos espigueiros mais belos que conheço. Convém também
acrescentar que, em todos os outonos, e desde essa altura, que costumo reviver
o sucedido, pois faço questão de ali me deslocar faça sol ou não.
Tenho quase
a certeza que era de manhã, quando a minha amiga Fátima Caldeira me telefonou
para saber se eu queria participar na Rota da Desfolhada, organizada pelos
Restauradores da Granja. Depois de me explicar por alto do que é que constava o
dito evento, imediatamente acedi em participar. Como as minhas palavras do
segundo período do primeiro parágrafo já indiciaram, esta conversa de amigos
passou-se há uns anos atrás, penso que em 2011.
Como o outono ainda não de despegara
do verão tardio, o sol bem temperadinho permitiu que eu usufruísse de todos os
segundos desse dia, dia da Rota da Desfolhada: quer fosse pelos caminhos da rota,
estendidos pelo denso carvalhal; quer fosse bem dentro das ruelas, encostadas ou
apegadas ao eterno casario granítico de Bastelo; quer fosse já junto do tal
espigueiro, habitante pedra e madeira construído de uma antiga quinta, bem no
coração de Várzea Cova.
Para quem não tenha na memória, um
espigueiro, também chamado canastro, ou caniço, é uma estrutura normalmente de
pedra e madeira, existindo no entanto alguns inteiramente de pedra, com a
função de secar o milho grosso através das fissuras laterais, e ao mesmo tempo
impedir a destruição do mesmo por roedores através da elevação deste. Como o milho
requer que seja colhido no outono, este precisa de estar o mais arejado
possível para secar numa estação tão adversa como o Inverno.
Voltando à história, e para que o
leitor não se perca, acrescento que estava eu já a deliciar-me com a recriação
da desfolhada por parte do Rancho Folclórico de Fafe, e depois de usufruir do
vasto merendeiro dos caminheiros de Estorãos, quando, de repente, escuto:
- Professor, se não se importa, eu
queria apresentar-lhe a minha prima. Ela aprecia muito a poesia e gostaria de
lhe declamar um poema.
Claro que eu não me importei…
Uma forte emoção fez-me engolir a
última gota de um verde branco que ainda se agarrava à minha garganta. Bem ao
meu lado, um imponente espigueiro apercebeu-se da minha admiração e estendeu-me
um pouco da sua sombra. Sem mais, escutei…
A menina tinha apenas cinco anos,
ainda não andava na escola primária, chamava-se Inês Alves e declamou um e
depois outro poema de uma maneira tão acertada e ingénua, como eu nunca havia
escutado! Os seus olhos eram vivos como a aragem que costuma varrer aqueles
sítios! Os seus cabelos eram da cor do sol! O seu sorriso era lindo! A sua
atitude era traquina e florida! E um dos poemas era de Fernando Pessoa! Meu
Deus, que emoção e verdade!
Acabada a exposição desta douta
criancinha, tingida de um brilho de tempo fino bem outonal, o atento espigueiro
deu-me mais um pouco da sua sombra, chamou-me para si e segredou-me, também ele,
algo que eu jamais esquecerei tanto nesta vida como na outra que, julgo eu, há de
vir.
Se as poesias que a Inês Leite foram
escutadas por mais ouvidos, o que o espigueiro de Várzea Cova me contou,
ninguém mais escutara.
E ele, como qualquer bom contador de
histórias, narrou assim:
«Era uma vez um grande rio que
desaguava todas as horas num mar imenso. Das muitas belezas de que esse rio se
gabava sempre que alguém ou alguma coisa o questionava acerca do seu papel como
alimentador de mares, ele respondia numa voz húmida, soberba e clara:
- Tenho um grande caudal. As minhas
margens são acertadas. Os navios que nelas navegam são belos e luxuosos. Nas
minhas entranhas passeiam-se saborosos peixes de prata. Em meu redor crescem
cidades de muitos homens e…
Nunca, e em nenhuma ocasião, esse rio
se orgulhou da singela e pura nascente que lhe dera a vida inicial ou dos seus
pequenos e anónimos afluentes.
Um dia,
Deus, já farto de tanta gabarrice e orgulhos egoístas, decidiu secar-lhe a nascente
e desviar-lhe os afluentes para outros sítios.
Coitado do grande rio! Morreu à sede
e caiu no esquecimento.»
Amigos leitores, a mensagem que esta
pequena história, contada bem ali por um espigueiro que sabia falar, pareceu-me
um mistério no início, mas que, passado um bocado, eu entendi na perfeição. Na
verdade o que ele me quis passar para as mãos enquadra-se perfeitamente na
vivência dos homens, caso estes se esqueçam de olhar na direção de onde vieram.
O que será de um país dito
desenvolvido, quase todo online, rodeado de muito alcatrão, repleto de mentes
praticamente brilhantes, frangos congelados e outros enfeites importados diretamente
da China, se ignora as suas raízes? De certeza que agoniza e apodrece,
enrodilhado em cheiros de plástico, pois até o esterco perderá o seu perfume.
O verdadeiro país é aquele que trepa
as escadas do futuro sem se desprender das nascentes que o trouxeram ao mundo.
O verdadeiro país é aquele que ainda sabe que a broa autêntica não prescinde da
farinha milha e o arroz de feijão combina, na perfeição, com um bom naco de
carne de porco cozida, daquela entremeada e previamente salgada.
E foi assim, e depois de escutar o
que o espigueiro deixou escapar bem de dentro das suas paredes, que a minha
sina me levou a tentar fazer das Jornadas Literárias de Fafe um marco bem para
além da poesia e das palavras escritas por poetas com nome.
E foi assim, e depois de escutar o
que o espigueiro deixou escapar bem de dentro das suas paredes, que a minha
sina me levou a pedir ajuda a todas as pessoas que amam a nossa tradição e
memórias, e construir nesta terra bendita, onde gosto de morar, algo, ou muito
mais do que isso, que engrandeça as verdadeiras nascentes e afluentes das
terras de Fafe de hoje e FAZER DO PASSADO A FORÇA VIVA DE UM PRESENTE FUTURO.
(Nota: Todos os anos, em todos os
outonos, vou a Várzea Cova, freguesia de Fafe, no dia da Rota da Desfolhada,
organizada pelos incansáveis Restauradores da Granja, partilhar confidências
com o espigueiro que fala, e que só eu escuto…)
Carlos Afonso
Adorei o conto! Quem sabe se um dia poderei estar aí na Rota da Desfolhada, esta linda aldeia onde nasceu meu pai!
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