domingo, 13 de outubro de 2013

O MISTÉRIO DO ESPIGUEIRO DE VÁRZEA COVA...




            Nos muitos lugares que povoam a província do Minho, em Portugal, acontecem coisas de uma realidade tão misteriosa que, muitas vezes, se transformam em histórias sem tempo, que a sabedoria do nosso povo considera suas e guarda-as com muita fé. E porque o que acabei de dizer tem sentido, vou contar-vos o que aconteceu há poucos anos atrás, numa tarde de outono, em Várzea Cova, freguesia do concelho de Fafe, perto de um dos espigueiros mais belos que conheço. Convém também acrescentar que, em todos os outonos, e desde essa altura, que costumo reviver o sucedido, pois faço questão de ali me deslocar faça sol ou não.
            Tenho quase a certeza que era de manhã, quando a minha amiga Fátima Caldeira me telefonou para saber se eu queria participar na Rota da Desfolhada, organizada pelos Restauradores da Granja. Depois de me explicar por alto do que é que constava o dito evento, imediatamente acedi em participar. Como as minhas palavras do segundo período do primeiro parágrafo já indiciaram, esta conversa de amigos passou-se há uns anos atrás, penso que em 2011.
Como o outono ainda não de despegara do verão tardio, o sol bem temperadinho permitiu que eu usufruísse de todos os segundos desse dia, dia da Rota da Desfolhada: quer fosse pelos caminhos da rota, estendidos pelo denso carvalhal; quer fosse bem dentro das ruelas, encostadas ou apegadas ao eterno casario granítico de Bastelo; quer fosse já junto do tal espigueiro, habitante pedra e madeira construído de uma antiga quinta, bem no coração de Várzea Cova.
Para quem não tenha na memória, um espigueiro, também chamado canastro, ou caniço, é uma estrutura normalmente de pedra e madeira, existindo no entanto alguns inteiramente de pedra, com a função de secar o milho grosso através das fissuras laterais, e ao mesmo tempo impedir a destruição do mesmo por roedores através da elevação deste. Como o milho requer que seja colhido no outono, este precisa de estar o mais arejado possível para secar numa estação tão adversa como o Inverno.
Voltando à história, e para que o leitor não se perca, acrescento que estava eu já a deliciar-me com a recriação da desfolhada por parte do Rancho Folclórico de Fafe, e depois de usufruir do vasto merendeiro dos caminheiros de Estorãos, quando, de repente, escuto:
- Professor, se não se importa, eu queria apresentar-lhe a minha prima. Ela aprecia muito a poesia e gostaria de lhe declamar um poema.
Claro que eu não me importei…
Uma forte emoção fez-me engolir a última gota de um verde branco que ainda se agarrava à minha garganta. Bem ao meu lado, um imponente espigueiro apercebeu-se da minha admiração e estendeu-me um pouco da sua sombra. Sem mais, escutei…
A menina tinha apenas cinco anos, ainda não andava na escola primária, chamava-se Inês Alves e declamou um e depois outro poema de uma maneira tão acertada e ingénua, como eu nunca havia escutado! Os seus olhos eram vivos como a aragem que costuma varrer aqueles sítios! Os seus cabelos eram da cor do sol! O seu sorriso era lindo! A sua atitude era traquina e florida! E um dos poemas era de Fernando Pessoa! Meu Deus, que emoção e verdade!
Acabada a exposição desta douta criancinha, tingida de um brilho de tempo fino bem outonal, o atento espigueiro deu-me mais um pouco da sua sombra, chamou-me para si e segredou-me, também ele, algo que eu jamais esquecerei tanto nesta vida como na outra que, julgo eu, há de vir.
Se as poesias que a Inês Leite foram escutadas por mais ouvidos, o que o espigueiro de Várzea Cova me contou, ninguém mais escutara.
E ele, como qualquer bom contador de histórias, narrou assim:   
«Era uma vez um grande rio que desaguava todas as horas num mar imenso. Das muitas belezas de que esse rio se gabava sempre que alguém ou alguma coisa o questionava acerca do seu papel como alimentador de mares, ele respondia numa voz húmida, soberba e clara:
- Tenho um grande caudal. As minhas margens são acertadas. Os navios que nelas navegam são belos e luxuosos. Nas minhas entranhas passeiam-se saborosos peixes de prata. Em meu redor crescem cidades de muitos homens e…
Nunca, e em nenhuma ocasião, esse rio se orgulhou da singela e pura nascente que lhe dera a vida inicial ou dos seus pequenos e anónimos afluentes.
            Um dia, Deus, já farto de tanta gabarrice e orgulhos egoístas, decidiu secar-lhe a nascente e desviar-lhe os afluentes para outros sítios.
Coitado do grande rio! Morreu à sede e caiu no esquecimento.»
Amigos leitores, a mensagem que esta pequena história, contada bem ali por um espigueiro que sabia falar, pareceu-me um mistério no início, mas que, passado um bocado, eu entendi na perfeição. Na verdade o que ele me quis passar para as mãos enquadra-se perfeitamente na vivência dos homens, caso estes se esqueçam de olhar na direção de onde vieram.
            O que será de um país dito desenvolvido, quase todo online, rodeado de muito alcatrão, repleto de mentes praticamente brilhantes, frangos congelados e outros enfeites importados diretamente da China, se ignora as suas raízes? De certeza que agoniza e apodrece, enrodilhado em cheiros de plástico, pois até o esterco perderá o seu perfume.
O verdadeiro país é aquele que trepa as escadas do futuro sem se desprender das nascentes que o trouxeram ao mundo. O verdadeiro país é aquele que ainda sabe que a broa autêntica não prescinde da farinha milha e o arroz de feijão combina, na perfeição, com um bom naco de carne de porco cozida, daquela entremeada e previamente salgada.
E foi assim, e depois de escutar o que o espigueiro deixou escapar bem de dentro das suas paredes, que a minha sina me levou a tentar fazer das Jornadas Literárias de Fafe um marco bem para além da poesia e das palavras escritas por poetas com nome.
E foi assim, e depois de escutar o que o espigueiro deixou escapar bem de dentro das suas paredes, que a minha sina me levou a pedir ajuda a todas as pessoas que amam a nossa tradição e memórias, e construir nesta terra bendita, onde gosto de morar, algo, ou muito mais do que isso, que engrandeça as verdadeiras nascentes e afluentes das terras de Fafe de hoje e FAZER DO PASSADO A FORÇA VIVA DE UM PRESENTE FUTURO.

(Nota: Todos os anos, em todos os outonos, vou a Várzea Cova, freguesia de Fafe, no dia da Rota da Desfolhada, organizada pelos incansáveis Restauradores da Granja, partilhar confidências com o espigueiro que fala, e que só eu escuto…)


Carlos Afonso

1 comentário:

  1. Adorei o conto! Quem sabe se um dia poderei estar aí na Rota da Desfolhada, esta linda aldeia onde nasceu meu pai!

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