Ora bem! O enredo que hoje quero
partilhar com o leitor amigo tem como pano de fundo dezembro, mais precisamente
o seu primeiro domingo. O espaço onde tudo aconteceu centra-se bem no coração
de Fafe, no Jardim do Calvário, lugar que procuro muitas vezes para me
encontrar comigo mesmo e sentir um pouco daquela paz que nos recompõe a
existência.
Ainda não eram quatro horas da tarde
e por toda a envolvência do jardim apenas se viam não mais de uma dezena de
indivíduos com consciência, porque ao sabor das águas do lago, dois cisnes, a quem
roubaram a descendência, deslizavam saudosos na sua monotonia. A aragem outonal
e a folha persistente de algumas árvores faziam ignorar o parco sol que ainda
se desprendia do horizonte. Do longe, escutei o toque estridente de uma
ambulância. Quem será o desafortunado ou a desafortunada que ela transporta?
Não sei bem porquê, mas passou-me pela cabeça que muito provavelmente devia ser
algum homem dos seus quarenta anos que fora colhido por algum AVC.
No parque infantil, do lado esquerdo do
Jardim do Calvário, se tivermos em conta a minha orientação, duas crianças
brincavam, vigiadas atentamente pelas respetivas mães. Num banco mais encostado
ao muro, um par de namorados, entrelaçados numa azáfama ousada, deslocavam-se
noutras dimensões. Bem perto de um canteiro, duas senhoras de meia-idade,
sentadas e com sobretudos quase da mesma cor, falavam nervosamente e sem
preconceitos. Não sei porquê, mas pareceu-me que estavam a relembrar algo que
lhes acontecera na feira, mas, se calhar, foi apenas impressão minha. Mais à
frente, por cima da pequena ponte, que nunca se cansa da sua intemporal e incómoda
postura, um senhor, que me pareceu conhecido, olhava para um tempo que não
consegui enxergar, enquanto rodopiava o chapéu nas mãos levemente viradas para
a esquerda. Finalmente, e agora preciso de o evidenciar, pois estou a assinalar
a protagonista desta crónica, examinei uma velha senhora que jazia inclinada
bem por cima de uma roseira.
Pé ante pé, aproximei-me da velha
senhora e notei que a sua mão esquerda tentava segurar uma rosa, a que
inicialmente não reconheci a cor, pois só passado algum tempo é que visualizei
que a sua tonalidade era de um avermelhado vivo. Por incrível que pareça, era
precisamente da mesmíssima cor das luvas de malha da dita senhora, pormenor
que, na altura, me sugeriu uma leve simbologia de aproximação de sentimentos.
Já bem perto do quadro que estou a descrever, tive necessidade se suster uma
súbita vontade de tossir. Graças a Deus que o consegui, pois, caso contrário,
teria assustado esta encenação verdadeira e não poderia continuar a usufruir do
momento.
Parado e o olhar o que me deliciava,
notei que a velha senhora acariciava com respeito a rosa, que quieta e bela não
protestava, ao mesmo tempo que ia balbuciando, repetidamente, algumas palavras
que não consegui entender. Só sei, que de vez em quando ela sorria, (ela… a
senhora, claro está) evidência que aconteceu mais do que uma vez. Sem me mexer,
deixei-me ficar quieto no meu exterior, mas demais ágil e apreensivo no meu
íntimo de observador. Como é que vai tudo isto terminar?
Como o tempo não ligasse ao que de
fascinante e mágico estava ali a acontecer, insensível, permitiu que uma
vespertina névoa escurecesse um pouco a tarde, circunstância que levou os
visitantes do jardim a mudarem os seus desígnios e decidirem regressar a suas
casas. As crianças correram apressadas para o portão de jardim, seguidas logo
das suas mães que quase corriam também. O par de namorados, apesar de caminhar
lentamente na direção de outros encontros, os braços continuavam entrelaçados e
aqui e ali um pequeno beijo chamava a atenção do homem de já deixara a ponte e
que já pusera o chapéu na cabeça. As duas senhoras de meia-idade também elas seguiram
o seu rumo, continuando na sua conversa acalorada. Será que ainda falavam do
mesmo assunto?
No jardim apenas ficaram os moradores
habituais e, durante mais algum tempo, a velha senhora que, entretanto já
deixara de afagar a rosa e eu, que continuava quase imóvel. A dada altura, e
porque algo tinha de acontecer ou então a ação não evoluía, a minha companheira
de espaço, que sempre soube da minha presença e da minha intromissão, virou-se
com naturalidade para mim e disse:
- Sempre que o inverno se aproxima,
eu gosto de me despedir da última rosa deste jardim. Faço isto há muitos anos.
Sabe, é a minha forma de acreditar que na próxima primavera eu estarei aqui
para assistir ao começo de um novo ciclo.
Claro que eu sorri e até prometi a
mim mesmo que mal as rosas começassem a florir, eu regressaria ao Jardim de
Calvário para contemplar esse novo ciclo da natureza.
Com todo o cuidado, a velha senhora
recompôs-se na sua determinação e dirigiu-se à escadaria de saída. Já quase a
descer para o primeiro degrau ainda acrescentou:
- A última rosa é mesmo bonita, não
acha?
Carlos Afonso
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