sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A última rosa


 

 
          O mês de dezembro é, por natureza e destino, um mês frio, algo apático, mas, porventura, bastante abençoado, se tivermos em conta o espírito natalício que o veste já na sua reta final. Talvez seja por isso que é neste período de tempo, altura em que nevoeiros enfadonhos se misturam com chuvas fartas e aqueles raios de sol resistentes mas envergonhados, que certas histórias diferentes acontecem e que alguns caminhos insuspeitos se cruzam.

Ora bem! O enredo que hoje quero partilhar com o leitor amigo tem como pano de fundo dezembro, mais precisamente o seu primeiro domingo. O espaço onde tudo aconteceu centra-se bem no coração de Fafe, no Jardim do Calvário, lugar que procuro muitas vezes para me encontrar comigo mesmo e sentir um pouco daquela paz que nos recompõe a existência.

Ainda não eram quatro horas da tarde e por toda a envolvência do jardim apenas se viam não mais de uma dezena de indivíduos com consciência, porque ao sabor das águas do lago, dois cisnes, a quem roubaram a descendência, deslizavam saudosos na sua monotonia. A aragem outonal e a folha persistente de algumas árvores faziam ignorar o parco sol que ainda se desprendia do horizonte. Do longe, escutei o toque estridente de uma ambulância. Quem será o desafortunado ou a desafortunada que ela transporta? Não sei bem porquê, mas passou-me pela cabeça que muito provavelmente devia ser algum homem dos seus quarenta anos que fora colhido por algum AVC.

No parque infantil, do lado esquerdo do Jardim do Calvário, se tivermos em conta a minha orientação, duas crianças brincavam, vigiadas atentamente pelas respetivas mães. Num banco mais encostado ao muro, um par de namorados, entrelaçados numa azáfama ousada, deslocavam-se noutras dimensões. Bem perto de um canteiro, duas senhoras de meia-idade, sentadas e com sobretudos quase da mesma cor, falavam nervosamente e sem preconceitos. Não sei porquê, mas pareceu-me que estavam a relembrar algo que lhes acontecera na feira, mas, se calhar, foi apenas impressão minha. Mais à frente, por cima da pequena ponte, que nunca se cansa da sua intemporal e incómoda postura, um senhor, que me pareceu conhecido, olhava para um tempo que não consegui enxergar, enquanto rodopiava o chapéu nas mãos levemente viradas para a esquerda. Finalmente, e agora preciso de o evidenciar, pois estou a assinalar a protagonista desta crónica, examinei uma velha senhora que jazia inclinada bem por cima de uma roseira.

Pé ante pé, aproximei-me da velha senhora e notei que a sua mão esquerda tentava segurar uma rosa, a que inicialmente não reconheci a cor, pois só passado algum tempo é que visualizei que a sua tonalidade era de um avermelhado vivo. Por incrível que pareça, era precisamente da mesmíssima cor das luvas de malha da dita senhora, pormenor que, na altura, me sugeriu uma leve simbologia de aproximação de sentimentos. Já bem perto do quadro que estou a descrever, tive necessidade se suster uma súbita vontade de tossir. Graças a Deus que o consegui, pois, caso contrário, teria assustado esta encenação verdadeira e não poderia continuar a usufruir do momento.

Parado e o olhar o que me deliciava, notei que a velha senhora acariciava com respeito a rosa, que quieta e bela não protestava, ao mesmo tempo que ia balbuciando, repetidamente, algumas palavras que não consegui entender. Só sei, que de vez em quando ela sorria, (ela… a senhora, claro está) evidência que aconteceu mais do que uma vez. Sem me mexer, deixei-me ficar quieto no meu exterior, mas demais ágil e apreensivo no meu íntimo de observador. Como é que vai tudo isto terminar?

Como o tempo não ligasse ao que de fascinante e mágico estava ali a acontecer, insensível, permitiu que uma vespertina névoa escurecesse um pouco a tarde, circunstância que levou os visitantes do jardim a mudarem os seus desígnios e decidirem regressar a suas casas. As crianças correram apressadas para o portão de jardim, seguidas logo das suas mães que quase corriam também. O par de namorados, apesar de caminhar lentamente na direção de outros encontros, os braços continuavam entrelaçados e aqui e ali um pequeno beijo chamava a atenção do homem de já deixara a ponte e que já pusera o chapéu na cabeça. As duas senhoras de meia-idade também elas seguiram o seu rumo, continuando na sua conversa acalorada. Será que ainda falavam do mesmo assunto?

No jardim apenas ficaram os moradores habituais e, durante mais algum tempo, a velha senhora que, entretanto já deixara de afagar a rosa e eu, que continuava quase imóvel. A dada altura, e porque algo tinha de acontecer ou então a ação não evoluía, a minha companheira de espaço, que sempre soube da minha presença e da minha intromissão, virou-se com naturalidade para mim e disse:

- Sempre que o inverno se aproxima, eu gosto de me despedir da última rosa deste jardim. Faço isto há muitos anos. Sabe, é a minha forma de acreditar que na próxima primavera eu estarei aqui para assistir ao começo de um novo ciclo.

Claro que eu sorri e até prometi a mim mesmo que mal as rosas começassem a florir, eu regressaria ao Jardim de Calvário para contemplar esse novo ciclo da natureza.

Com todo o cuidado, a velha senhora recompôs-se na sua determinação e dirigiu-se à escadaria de saída. Já quase a descer para o primeiro degrau ainda acrescentou:

- A última rosa é mesmo bonita, não acha?

 

Carlos Afonso

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