Nessa tarde
de Novembro, em plena Avenida 25 de Abril, bem no coração de Fafe, até os
carros, os poucos que se davam ao trabalho de correr para o seu destino,
pareciam mais cabisbaixos e soturnos. As pessoas, essas então, nem diziam sim
nem não, apenas se deixavam levar por alguma conveniência, escondida bem no
fundo das suas vontades.
Aqui para
nós, e em tom de “mea culpa”, eu era um desses macambúzios que caminhava de mão
dada com esta apatia geral. Mas, na verdade, nesta tarde acinzentada, até os
jardins circundantes, e que noutras ocasiões têm dado tanto nas vistas pela sua
perfumada beleza poética, se escondiam, agora, por detrás de um escorregadio e
enfadonho nevoeiro, que envolvia todo aquele passar de horas.
Com as mãos
escondidas dentro dos bolsos e os olhos à procura não sei do quê, os meus
passos lá faziam o favor de me levar pelos passeios desta extensa avenida, que
tem no seu nome, há mais de trinta anos, o rubro vivo da liberdade. E, apesar
deste quadro sem muita graça, o meu pensamento, no momento em que esbarrou na
abrangência dum espaço tão central de uma cidade de província, deixou-se levar
por um leve devaneio, que acabaria por partilhá-lo com a minha disposição.
Sentei-me num dos bancos de pedra, que por ali se dispunha, e errei no memorial
desta terra, por entre ricos brasileiros, poetas caminhantes, viscondes, morgados,
ajustes de contas, e muitos outros momentos da história deste burgo.
Nisto, e no
instante em que ouvia, entusiasmado, o discurso de inauguração da chegada do
comboio a Fafe, em 21 de Julho de 1907, um grito, aparentemente lúcido,
devolveu-me ao meu tempo e a uma tarde que, afinal, e depois de todo um introito
que deixava muito a desejar, valeu a pena viver.
(- Ó Costinha,
sai da minha frente, se não eu desfaço-te.)
De
imediato, os meus olhos, guiados pela estridência do som, colaram-se num vulto
que corria, de uma forma desconjuntada, em frente ao café Bar da Praça, na direção
do autor do grito, que, entretanto se esquivara por entre a indefinição da
obscuridade da tarde.
Para quem
não tem o costume de se entrecruzar por estes sítios, provavelmente, ainda não
entendeu o que se passou. Mas esta ocorrência, e é com mágoa que o digo, até é
bem comum por aqui. Na verdade, a provocação soletrada com malícia e atirada
como uma pedra contra o Costinha, agora vou chamar-lhe assim, mas, mais tarde,
convém que se diga Sr. Célio Costa, foi mais um dos muitos impropérios
lamentáveis, de que este «homem de dom» é vítima. E, ainda antes de mudar de
parágrafo para continuar a narrativa, apenas uma certeza em que acredito: é
mais lúcido este nosso Costinha, que se move numa involuntária e rija inconsciência,
que não o belisca como homem, do que aquele atirador de frases recheadas de uma
injuriosa e douta malignidade, e que faz parte desta seita que contamina os
carreiros do respeito humano.
Aquela figura
de meã estatura, cabelo de um escuro debotado e com um rosto sumido e
encardido, corria, assim, numa desorientação turvada, em direção ao seu
agressor, que, entretanto se sumira. Os seus olhos tingidos, de um castanho
inconsciente, giravam, estonteados, em torno da sua parca parecença e, que de
repente, estacaram na minha atenção, fazendo com que a sua correria parasse.
Após algum tempo, deixou de me focar e mirou um relógio, que se escondia na
manga de um casaco comprido azulado, demorando-se, aí, alguns segundos. (Que horas
seriam no seu bendito relógio?) Depois, ao de leve, ergueu o seu olhar, agora
mais calmo, voltou-o para mim e sorriu, ao mesmo tempo que proferia um
atabalhoado murmúrio, que não percebi. Sem mais, fixou, novamente, o dito
relógio, que continuava escondido no tal casaco cumprido azulado, e desapareceu
no acinzentado da tarde.
Enlevado
com o que acabara de presenciar, olhei o meu relógio, que não estava escondido
debaixo do meu casaco, que não era cumprido nem azulado, e reparei que as horas
tinham passado. E, após um leve refletir, fixei o espaço por onde o Sr. Célio
Costa se havia sumido e sorri também.
Ao longe, o
esvoaçar de uma ave mostrou-me que o nevoeiro se esquivara e que as tardes mais
enfadonhas não duram eternamente.
Carlos
Afonso, 14/11/2009
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