Eu nunca imaginei que um homem, numa
primeira impressão, me pudesse parecer um pedaço humilhante de gente, principalmente
quando me foi contado pelo próprio que, noutros tempos, já fora o rapaz mais
valente da freguesia. Quanto ao seu nome, não lho perguntei, muito menos a
idade exata que, provavelmente, lhe poderia definir a existência. Apenas lhe
gravei o aspeto, a história que me contou e a forma como se desvaneceu na minha
realidade.
Estávamos
em novembro e as folhas das árvores já tinham pouco préstimo de tão desbotadas
que estavam. Fazia frio! Porque me chamou a atenção um quadro sem graça e
demais descolorido, parei inesperadamente. Aquietei as mãos nos bolsos e olhei
em redor. Pela rua, corriam apressadas algumas pessoas, o mais agasalhadas que
podiam, enquanto na pastelaria da esquina, que distava dali uma centena de
metros, se aglomerava uma mão cheia de clientes, que não consegui destrinçar o
que estavam realmente a fazer. Também não interessa!
De
volta à tela revoltada que se me atravessara no caminho, reparei num pobre
velho, sentado num banco de jardim, quase encostado a um canteiro despido e sem
graça. O seu rosto carcomido, escondido por barbas engrenhadas e sujas, parecia
ter mais de cem anos. Os olhos que estendia na minha direção já não tinham cor
e não lhe focalizei qualquer certeza ou sentimento. A roupa acastanhada que lhe
vestia o corpo perdera há muito a sua utilidade, apenas as suas mãos rugosas e
encolhidas procuravam alguma coisa ou talvez não:
-
Podia dar-me alguma coisa, por favor?
Aflito,
tentei desenvasilhar-me da ocorrência e ainda tentei ignorar o pedido, mas não
fui capaz. Com algum discernimento, procurei uma moeda para dar ao pobre homem.
Mas… só tinha vinte cêntimos, e… mais nada, pois, se calhar, esquecera-me da
carteira em casa. Mas não, não podia ser. Ainda há pouco tempo eu havia
comprado o jornal e tinha a carteira comigo. Como tinha o número do telemóvel
do rapaz meu amigo, onde comprara o jornal, lá lhe liguei, para ver se a tinha
deixado aí, mas nada. Será que perdi a carteira? Onde é que eu a deixei? Será
que me caiu do bolso. E agora? Tinha lá os documentos e algum dinheiro. Sem
querer passar a minha aflição para o pobre homem que, de certeza, estava em
muito piores condições do que eu, peguei na moeda de vinte cêntimos e, com
alguma vergonha, sempre lhe estendi a mão:
-
Desculpe, meu amigo, mas é só o que tenho. Este é o único dinheiro que tenho. Não
sei o que fiz à carteira. Pegue.
Com
algum à-vontade, e depois de me olhar com mais afoiteza, pegou na moeda de
vinte cêntimos, para logo de seguida ma tentar devolver.
-
Desculpe, caro senhor, se essa é a sua última moeda, fique com ela que lhe pode
fazer falta. Quanto a mim, agradeço-lhe, na mesma, o seu gesto e que Deus lhe
pague. Agora vá para casa e não se aflija porque a sua carteira vai aparecer.
Não fique triste.
Claro
que eu não aceitei o dinheiro de volta e nem fui para casa. Sentei-me ao seu
lado e fiquei por ali mais algum tempo, talvez mais de duas horas. O tempo
suficiente para ficar a conhecer a história daquele pobre homem que já fora o
moço mais valente da freguesia, e que os seus pais tinham sido uns agricultores
remediados lá na aldeia onde nascera. O problema foi a doença que lhe tolheu o
futuro e as forças, ainda ele não fizera feito vinte e cinco anos! Contou-me,
também, que ficara órfão de pai e mãe, quando tinha apenas dezassete anos, e
que não tinha irmãos. Como era de prever, a nossa conversa percorreu vários
temas e orientações, facto que me fez esquecer o que tinha acontecido à
carteira. Até me contou, sem que eu lho perguntasse, que mais de uma vez
estivera para casar, mas que o destino não lho permitira, pois as moças de quem
ele gostara, não lhe emprestaram as melhores intenções. Do seu corpo soltava-se
um cheiro esquisito.
A
dada altura, senti fome, pormenor que me trouxe à memória a carteira, e
levantei-me. Mas se eu estava com fome, o pobre velho também devia ter. E
agora?
Como
que entendesse o que me tolhia o coração, o pobre velho, num esforço que me
surpreendeu, ergueu-se a custo do banco de jardim, bateu-me nas costas,
circunstância que me fez acelerar o batimento cardíaco, e pediu-me que fosse à padaria
e, com os vinte cêntimos que lhe havia dado, lhe comprasse alguma coisa. Mas o
que é que se podia comprar com uma simples moeda de vinte cêntimos?
Sem
demoras, peguei novamente naquela que já havia sido a minha última moeda e
corri para a padaria. Lá chegado, a surpresa foi total, principalmente quando
escutei da boca de uma bela jovem de avental azul as seguintes palavras:
-Ó
senhor, não perdeu nada?
Meio
atarantado, sempre respondi:
-
Perdi a carteira, e não sei onde foi.
-
Olhe, é esta? Deixou-a aqui um velhote de roupa castanha e com umas mãos
rugosas e encolhidas.
-
Oh, obrigado! Ainda há gente boa neste mundo! – Acrescentei quase a soluçar.
Claro
que aquela carteira era a minha. Que alívio!
Agradeci,
mais uma vez, o gesto da bela jovem, verifiquei que ninguém mexera no dinheiro
nem nos documentos, e retirei do seu interior dez euros. Depois, comprei um
farto lanche que, obviamente, iria matar a fome do meu amigo que deixara no
outro lado da rua, e saí apressado. Chegado ao sítio onde devia estar o pobre
velho, não vi ninguém. Olhei, tornei a olhar e nada.
Mas
onde está o pobre velho?
Como
resposta, apenas escutei o silêncio da tarde e um leve calafrio no rosto.
Meti
a mão ao bolso das calças, pequei nos vinte cêntimos, que não me pertenciam e
coloquei-os, de mansinho, no mesmo sítio onde estivara sentado o pobre velho.
Bem ao lado da moeda, deixei também o que havia comprado na pastelaria.
Provavelmente,
o meu amigo foi dar uma volta e quando voltar irá encontrará o que era dele por
direito.
No
dia seguinte, a manhã acordara amena e repleta de sol. Apressado, saí de casa com
o único objetivo de encontrar o pobre velho. Dirigi-me ao mesmo sítio onde o
vira na véspera e apenas achei o que os meus olhos me mostraram. Sentado no
banco, que jazia encostado a um canteiro, estava um simpático rapaz, com um
livro numa das mãos e uma pequena moeda na outra, que, de vez em quando,
atirava ao ar para logo de seguida a apanhar. A roupa que lhe cobria o corpo
era de um tom acastanhado vivo e fino. Quando me aproximei, o jovem olhou-me
com clareza e, sorridente, convidou-me para me sentar ao seu lado. Depois, num
tom de voz quase familiar, falou-me:
-
Bom dia! Então sempre encontrou a carteira?
As
suas mãos já não eram rugosas nem encolhidas.
Carlos
Afonso
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