domingo, 9 de fevereiro de 2014

Um pardal na neve (histórias da minha infância)*



Lembro-me como se fosse hoje…
Era sábado.
Os sábados em Trás-os-Montes, no Inverno, às vezes, têm neve. Naquele sábado, tudo era neve. Neve a sério. Neve e neve e neve…
Se não estou enganado, naquela altura, eu não tinha mais de dez anos e estava de férias na minha aldeia de Parada, concelho de Alfândega da Fé. Digo de férias, porque, e como é habitual ainda hoje, as crianças estão de férias nas vésperas de Natal. Eu estudava no seminário de Vinhais…
-Filho, hoje não saias de casa, ouviste?
Claro que eu ouvi, mas não obedeci. Quem me avisava de uma forma tão assertiva e preocupada era a minha madrinha Antoninha.
Sem que ninguém me visse, saí porta fora, caminhei a custo por ruas cheias de neve, encostado a todo um casario coberto de neve. E, quando dei por ela, já estava fora da aldeia com os meus passos enterrados na neve, e quase até aos joelhos, neve essa que se espalhava com força por todo o caminho dos «Espoios».
Meio ofuscado pela clareza branca do horizonte que me cercava, enrodilhado em milhares de farrapinhos frios que esvoaçavam por todo o lado, reparei num remexer aflito por entre a neve, em tons de morte, encostado a uma parede já velha. E porque queria perceber o que se estava a passar, aproximei-me.
Coitado! É um pobre pardal!
Com algum engenho e cuidado, retirei o pardal do sítio que o escondia por entre a neve, e que o iria matar, e acolhi-o dentro da minha casaca castanha. Voltei para casa, outro vez envolto por uma neve que continuava a cair sem descanso. Já no quarto, vislumbrei uma caixa vazia de sapatos, debaixo da cama, puxei-a a custo, abri-a, fiz-lhe uns buracos pequenos e coloquei lá o pardal. Depois, desci à adega, retirei uns grãos de trigo de um saco e ofereci-os ao pequeno pássaro que, sem se fazer rogado, os debicou e ficou saciado. Na manhã seguinte, o céu já estava azul, mas cá em baixo, na terra dos homens, tudo continuava pintado de um branco cor de neve. Coloquei a caixa na varanda, retirei-lhe a tampa e o pardal voltou a ser um pardal a sério, enquanto o meu coração me dava os parabéns pela minha atitude de bom menino, apesar de não obedecido às ordens de minha madrinha.
Eu sei que os pássaros não pensam. Mas aquele pardal pensava ou, então, tinha um dom especial que me levava a julgá-lo dessa maneira. Na verdade, o bendito pardal, e depois do ocorrido, todos os dias, e enquanto as férias duraram, ele vinha visitar-me. Pousava na varanda, chilreava com alguma sonoridade, como que a chamar-me, depois saltava para dentro da caixa, que eu lá havia deixado ficar, assim como um punhado de grãos de trigo, que ele comia com agrado. Passado pouco tempo, talvez dois minutos, abria as asas, chilreava mais um bocadinho e voltava para donde viera. Os espaços eram o seu reino.
As aulas recomeçaram e eu voltei para o Seminário de Vinhais. Não tive tempo de me despedir do pardal e ninguém me soube dar notícias do mesmo, durante as largas semanas de estudo que se seguiram.
O Carnaval chegou e as férias, ainda que pequenas, também.
Mal cheguei à minha aldeia, cumprimentei os que amavam, corri para a varanda e vi o que nunca imaginara encontrar.
A caixa de sapatos, ainda aberta, lá estava e, dentro dela, o que restava da pobre avezinha!
Depois desse dia, e ainda hoje, e durante todos estes anos, tenho por hábito, sempre que vou à minha querida Parada, lá no reino encantado de Trás-os-Montes, o reino onde os pardais gostam de morar, subir à dita varanda, agora com novo rosto e forma, olhar o céu e procurar, para além do mundo dos homens, o pardal que encontrara na neve.
Pode não acreditar, amigo leitor, mas não só o reencontro como costumo partilhar com ele o seu magnífico voar.

*(Esta história é dedicada ao meu filho mais novo, Carlos Manuel, e aos seus colegas de turma, Carolina, Alexandre e José Nuno, que me inspiraram a escrevê-la, no preciso instante em que me pediram ajuda quando estudavam as «Memórias», conteúdo obrigatório da disciplina de Português.)

Carlos Afonso


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