Lembro-me
como se fosse hoje…
Era
sábado.
Os sábados
em Trás-os-Montes, no Inverno, às vezes, têm neve. Naquele sábado, tudo era
neve. Neve a sério. Neve e neve e neve…
Se não
estou enganado, naquela altura, eu não tinha mais de dez anos e estava de
férias na minha aldeia de Parada, concelho de Alfândega da Fé. Digo de férias,
porque, e como é habitual ainda hoje, as crianças estão de férias nas vésperas
de Natal. Eu estudava no seminário de Vinhais…
-Filho,
hoje não saias de casa, ouviste?
Claro que
eu ouvi, mas não obedeci. Quem me avisava de uma forma tão assertiva e
preocupada era a minha madrinha Antoninha.
Sem que
ninguém me visse, saí porta fora, caminhei a custo por ruas cheias de neve,
encostado a todo um casario coberto de neve. E, quando dei por ela, já estava
fora da aldeia com os meus passos enterrados na neve, e quase até aos
joelhos, neve essa que se espalhava com força por todo o caminho dos «Espoios».
Meio
ofuscado pela clareza branca do horizonte que me cercava, enrodilhado em
milhares de farrapinhos frios que esvoaçavam por todo o lado, reparei num remexer
aflito por entre a neve, em tons de morte, encostado a uma parede já velha. E
porque queria perceber o que se estava a passar, aproximei-me.
Coitado! É
um pobre pardal!
Com algum
engenho e cuidado, retirei o pardal do sítio que o escondia por entre a neve, e
que o iria matar, e acolhi-o dentro da minha casaca castanha. Voltei para casa,
outro vez envolto por uma neve que continuava a cair sem descanso. Já no quarto,
vislumbrei uma caixa vazia de sapatos, debaixo da cama, puxei-a a custo, abri-a,
fiz-lhe uns buracos pequenos e coloquei lá o pardal. Depois, desci à adega,
retirei uns grãos de trigo de um saco e ofereci-os ao pequeno pássaro que, sem
se fazer rogado, os debicou e ficou saciado. Na manhã seguinte, o céu já estava
azul, mas cá em baixo, na terra dos homens, tudo continuava pintado de um
branco cor de neve. Coloquei a caixa na varanda, retirei-lhe a tampa e o pardal
voltou a ser um pardal a sério, enquanto o meu coração me dava os parabéns pela
minha atitude de bom menino, apesar de não obedecido às ordens de minha
madrinha.
Eu sei que
os pássaros não pensam. Mas aquele pardal pensava ou, então, tinha um dom
especial que me levava a julgá-lo dessa maneira. Na verdade, o bendito pardal, e
depois do ocorrido, todos os dias, e enquanto as férias duraram, ele vinha
visitar-me. Pousava na varanda, chilreava com alguma sonoridade, como que a
chamar-me, depois saltava para dentro da caixa, que eu lá havia deixado ficar,
assim como um punhado de grãos de trigo, que ele comia com agrado. Passado pouco
tempo, talvez dois minutos, abria as asas, chilreava mais um bocadinho e
voltava para donde viera. Os espaços eram o seu reino.
As aulas recomeçaram
e eu voltei para o Seminário de Vinhais. Não tive tempo de me despedir do
pardal e ninguém me soube dar notícias do mesmo, durante as largas semanas de
estudo que se seguiram.
O Carnaval
chegou e as férias, ainda que pequenas, também.
Mal
cheguei à minha aldeia, cumprimentei os que amavam, corri para a varanda e vi o
que nunca imaginara encontrar.
A caixa de
sapatos, ainda aberta, lá estava e, dentro dela, o que restava da pobre
avezinha!
Depois desse
dia, e ainda hoje, e durante todos estes anos, tenho por hábito, sempre que vou
à minha querida Parada, lá no reino encantado de Trás-os-Montes, o reino onde
os pardais gostam de morar, subir à dita varanda, agora com novo rosto e forma,
olhar o céu e procurar, para além do mundo dos homens, o pardal que encontrara
na neve.
Pode não acreditar,
amigo leitor, mas não só o reencontro como costumo partilhar com ele o seu magnífico
voar.
*(Esta história é dedicada ao meu filho mais
novo, Carlos Manuel, e aos seus colegas de turma, Carolina, Alexandre e José
Nuno, que me inspiraram a escrevê-la, no preciso instante em que me pediram
ajuda quando estudavam as «Memórias», conteúdo obrigatório da disciplina de
Português.)
Carlos
Afonso
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