Ainda não
eram quatro horas da tarde e já o dia dava indícios de se querer acabar,
circunstância que era fortalecida pelo cinzento carregado que varria o
horizonte em redor. De vez em quando, muitos pingos de chuva faziam-se mostrar,
mas só às vezes, independentemente de serem desejados ou não.
No momento exato em que tudo aconteceu, e na totalidade
da hora que se lhe seguiu, do céu apenas escorregaram uma luz baça e húmida e
um ou outro pássaro meio incomodado.
E eu que até pensava que andava sozinho nesse
meu passeio pela cidade de Fafe!
Muitos são os pormenores, bons ou
maus, que me fazem parar quando ando nestas minhas demandas pela cidade. Na
verdade, gosto de sentir o que me
rodeia, nem que para isso tenha de demorar horas a percorrer centenas de metros
ou ainda menos. São opções, nada mais. Mas que me tornam mais completo e
interventivo. Lá virá o dia em que a idade
ou outro pormenor qualquer me impedirá de ver, ouvir, cheirar, provar e tocar.
Nessa tarde de janeiro, foi a antiga
estação de comboio ou, melhor dizendo, o que resta dela, que me fez parar.
Meu Deus, a que estado ela chegou!
Bem, o edifício principal ainda continua digno, embora noutras funções, mas os
outros acrescentos, que noutros tempos tinham tanta serventia e vida, hoje não
passam de um aglomerado de restos e coisas mortas, em final de linha! E foi
nesse meu visualizar de desgraças, angústias e acentuadas nostalgias, apesar de
não ter o privilégio de ter conhecido esse outrora com comboios cheios de vida,
e agora findo, que um gato me saltou para o entendimento e bem para a frente
dos meus olhos.
Era um gato acinzentado e com uma
fina coleira de onde se dependurava um refinado guiso. Que gato lindo! E que rapidez!
Num ápice, e tal e qual como quem o costuma fazer muitas vezes, o esbelto animal
passou por mim a correr, saltou quase em claro o gradeado, em forma de portão,
que separa o fora do dentro do que resta da antiga estação. Curioso! Não é que o
bendito bicho, trepou ao que sobrava de um carro abandonado, no meio de outros,
e saltou para o chão. Sem querer parar, contornou, sem ignorar, uns amontoados
de pedra de calçada, misturada com terra e areia, e, na sua correria, foi posicionar-se
bem na minha frente como que a desafiar-me não sei bem para quê. Ou sei?
- Raio do gato, lá anda ele outra vez
com as suas maluqueiras! Qualquer dia…
Quem assim dizia era uma velha
senhora, meia despenteada, cosida a um casaco bem castanho e com um guarda-chuva
preto na mão. Era a dona do gato.
- Sabe,
senhor, o meu gato é meio esquisito, de vez em quando, prega-me estas partidas.
Foge de casa e vem para aqui. Não quer o amigo saber que sempre que chego onde
agora estou, ele lá está, precisamente naquela postura. Está ver? Qualquer dia…
- adiantou-me, sem papas na língua, a velha senhora.
Mas o que o
é que ela quereria dizer com tão estranha expressão e sempre incompleta? «Qualquer
dia…»
-Sabe – e sem
que eu lhe perguntasse nada – eu ainda me lembro de como tudo isto era…Gente a
partir, gente a chegar… Este comboio era uma riqueza, uma festa. Agora só há
para aqui restos. Qualquer dia…
- A senhora
mora aqui perto! – Perguntei-lhe eu.
- Moro ali
mais abaixo, mas venho muitas vezes aqui, pois o raio do gato… Sabe, foi neste
comboio de Fafe que conheci o meu “home”. Eu vinha de Guimarães, eu tinha lá
uma irmã… ela já morreu, mas ainda lá tenho dois familiares e… eu acho que era
uma sexta e calhou sentar-me no banco do lado esquerdo… não. Era do direito.
Não interessa. O que eu sei é que ao meu lado estava um rapaz um pouco mais
velho do que eu e… Não desfazendo, era um belo rapaz! A vida tem destas coisas.
Só sei que cinco meses depois eu já era a mulher dele. Coitado, já morreu há dois anos. Morreu ele,
morreu o comboio e qualquer dia morro eu. Não quer você saber que o primeiro
presente que ele me deu foi um gato igualzinho a este. Este malandrete, que
anda sempre “prá`qui” a fugir é descendente desse gato que o meu “home” me deu.
Eu às vezes até tenho medo que…
E mais uma
vez a velha senhora não acabou o que ia a dizer. Pois, e mal o gato correu na
nossa direção e, com certeza voltava para donde viera, ela apressou-se a
segui-lo. Ao longe, ainda consegui escutar de uma forma bem clara, o que já
havia dito e redito:
- Qualquer
dia…
Ora bem! Se
o gato foi para casa e a velha senhora também, na altura, pensei para com os
meus botões que estava na hora de regressar. É que da estação até ao sítio onde
moro ainda era um bom pedaço.
E porque a
história não podia acabar assim, apenas acrescento que seria de bom agrado que se
olhasse para o que resta da antiga estação e se desse por acabado todo aquele
retrato incompreensível. Está na hora de dar melhores vistas a um espaço que já
foi uma porta de excelência de Fafe. Uma porta que trazia o mundo a Fafe e que levava
Fafe para o mundo.
Por que não implantar naquele lugar tão
emblemático para Fafe uma locomotiva pedagógica ou um museu temático ou algo de
parecido… Vá lá, nem que seja em homenagem ao “home” da velha senhora e ao amor
que um dia o comboio de Fafe ajudou a nascer.
Senão… qualquer dia…
Para finalizar, e juro que não digo
mais nada, amigo leitor, peço uma atenção para um excerto que, num belo dia de
1911, o “Almanaque Ilustrado de Fafe” publicou:
«Como
é bom recordar! Parece que foi hontem e já lá vão três annos! Transcrevemos
para aqui parte do que sobre tão grato motivo dissemos no nº 749 do Desforço de
1907 (…)
A
CHEGADA
Aos
primeiros silvos das locomotivas, tudo rejubila. São duas, conjugadas, que se
denominam «Porto» nº 5 e «Negrellos» nº 2, a rebocarem 17 vehiculos. Ao
apparecimento, na ultima curva, quando os silvos redobram e o penacho de fumo
se torna mais intenso, a alegria é então dilerante, chega ao seu auge o
contentamento!
E’
uma hora e 20 minutos quando o comboio entra nas agulhas da estação por entre
filas de povo. O enthusiasmo, a esta hora feliz para Fafe, é indescritível!
Aquelle
acenar de lenços, aquella animação, aquella vivacidade, aquellas acclamações,
tudo aquillo que se não pôde anotar, oh! Era sublime!!
Sublime,
sim!!
Nós,
que fomos uns pugnadores do caminho de ferro para Fafe, que temos anciado para
o nosso torrão natal esse melhoramento indispensável, ao ver chegar o comboio
inaugural, fomos apossados de tanta alegria, que quasi se nos estonteia o
espírito! Ah! É que víamos triumphar uma das nossa maiores aspirações!
E
as bandas fazendo ouvir os seus sons musicais, vibrantes, pareciam exprimir o
que nos ia n’alma; o dynamite, estralejando nos ares, annunciou ao longe o
nosso enorme contentamento.
No
comboio inaugural vinha um grande numero de convidados, de que os jornaes
diários teem dado nota e que por isso achamos supérfluo aqui reproduzir.
As
locomotivas chegaram adornadas com bandeiras e tropheus, a gosto.
A
da vanguarda, a nº 5, trazia a dirigi-la o engenheiro sr. Francisco Ferreira de
Lima, que trajava de machinista, e o chefe de tracção e officinas sr. Joaquim
Lopes.
Acompanhava
o comboio uma banda de musica.
Na
cauda vinha uma carruagem-salão, em que tomaram logar, alem do pessoal superior
da Companhia e outros cavalheiros, a commissão das festas, que daqui foi a Paçô
fazer a espera.
Ao
apeiaren-se, o sr. Conselheiro Florencio Monteiro foi o que iniciou os vivas,
que proseguiram, correspondidos sempre com ardor.
Em
seguida, no estrado, onde permanecia a câmara, depois de trocados muitos
cumprimentos, discursa o director da Companhia sr. Reis Porto, que, fazendo o
elogio da nossa terra declara aberta á exploração a linha férrea.
Termina
por levantar vivas a Fafe e ao seu povo.
Seguiu-se-lhe
o presidente da câmara sr. Dr. João Leite de Castro, que discursa sobre os
benefícios da linha trazidos a Fafe, melhoramento que há muito todos nós
aspiramos, e attribue esse melhoramento á boa vontade do sr. Conde de Paçô
Vieira e do extinto Soares Velloso, e simultaneamente, á intelligencia e
actividade do sr. Reis Porto. Concluindo, saúda o povo de Fafe.
E’
depois lido o auto inaugural pelo guarda-livros da Companhia sr. Francisco
Garrido Monteiro, que, cavalheiros de Fafe, Guimarães, Porto we Graga,
assignam.
Depois
disto, partiu a comissão das festas, pessoal da Companhia e convidados,
seguidos por duas bandas de musica, para a villa. Os vivas, que tinham sido
levantados no estrado, proseguem – ao sr. Reis Porto, á Companhia do Caminho de
Ferro, engenheiro Lima, aos hospedes de Fafe, e outras individualidades, - que
são correspondidos com indiscrptivel enthusiasmo. Immediatamente marcha a
corporação dos bombeiros com a sua banda, que tinha feito a guarda d’honra.
Muito
povo acompanha»
Às vezes, não entendo progresso! São coisas...
Às vezes, não entendo progresso! São coisas...
Carlos Afonso
Parabens pelo artigo.Lindo e esperamos que proveitoso para aquele espaço junto da estação.Abraço
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