domingo, 12 de maio de 2013

Pedaços das Jornadas Literárias de Fafe: O ALBATROZ AZUL




Depois de três semanas intensamente vividas em redor das 4ªs Jornadas Literárias, assentes em mais de 150 iniciativas culturais, previamente definidas e realizadas por todo o concelho (escolas, salas de aula, polivalentes, Instituto Superior, livrarias, bibliotecas, museus, multiusos, Teatro-Cinema, Sala Manoel de Oliveira, jardins, praças e casas apalaçadas de Fafe, salões paroquiais, Juntas de Freguesia e no meio da natureza magnífica deste pedaço do Minho), foi visível sentir múltiplas formas de cultura condignamente apresentadas.

            O que aconteceu, mais uma vez, nas Jornadas Literárias de 2013 foi extraordinário. Foram milhares os que trabalharam com vontade e querer nos inúmeros eventos, contribuindo, assim, para a imensa produtividade que daí derivou. O passado, o presente e o futuro mostraram, ao longo destas semanas, a receita acertada que pode ajudar a engrandecer um povo. A partir das nossas crianças de tenra idade até a pessoas de muita idade, mas todos agarradas a definições certas e puras de literatura, cultura, tradição e etnografia, sem terem de apegar-se a frases feitas, foi evidente notar que a grandeza de um rio não está apenas na sua foz. Ela também se vislumbra nos afluentes, margens que o definem e nas suas nascentes.

            Ao longo de toda a dimensão das Jornadas Literárias, uma das suas maiores riquezas foi a capacidade de pegar nas histórias que têm definido os destinos de Fafe e construir, a partir daí, outras histórias. Os livros escritos ou apenas sentidos foram, assim, a literatura das Jornadas. Os poetas e prosadores de Fafe, as lendas, o sotaque e os contos que salpicam a memória do nosso povo, a vontade de voltar a escrever o que já havia sido encontrado fizeram com que caravelas atracassem em Fafe, o comboio regressasse, os emigrantes retornassem da sua viagem, as palavras construíssem enredos completos, os campos mostrassem o seu tipicismo, a música e a dança tropeçassem em poesia, os sonhos de terra e de mar brotassem do interior de muitos livros, fazendo com que o passado se sentisse na obrigação de perspetivar o futuro. E o mais intenso é o que estaria para vir, pois muita literatura  poderá ser edificada a partir do que aconteceu. E porque o que acabei de dizer é verdade, amigos leitores, escutem, agora, um quase crónica, inspirada numa realidade das Jornadas Literárias de Fafe.

            Numa das minhas aulas de Literatura Portuguesa, numa quarta-feira de março, pedi a atenção aos meus alunos para João Ubaldo Ribeiro, um dos maiores escritores de Língua Portuguesa, descendente de fafenses, a viver no Brasil, e que em 2013 seria o patrono literário das Jornadas. Falei da sua obra, lemos e analisámos alguns excertos do seu romance “O Albatroz Azul” e, porque o Dia Mundial do Livro era uma data para assinalar, lancei o desafio para que em casa partilhassem a obra deste grande homem das letras com as respetivas famílias. No meu entender, seria uma forma interessante de levar Ubaldo Ribeiro ao encontro de outros fafenses. A ideia foi entendida e esta iniciativa das Jornadas ganhou forma e efeito. O mais interessante foi o que aconteceu a partir daí.

Luísa, um nome fictício, depois de ter escutado atentamente as minhas palavras, centradas na novidade de os alunos partilharem literatura com os seus familiares, ao chegar a casa, acomodou a pasta numa cadeira, disposta num dos cantos da sala e correu, sem fazer barulho, para o quarto do seu avô. De setenta e três anos, o avô de Luísa estava acamado há mais de cinco anos e sofria de uma doença incurável. Os médicos já há muito que lhe tinham definido a sua sina. No entanto, a sua vontade havia-o segurado à existência e aos afetos da sua neta.

            - Avô, Avô, tenho aqui um presente para ti. Estás a ouvir-me?

            Claro que o avô a estava a ouvir. Nem sempre os olhos cerrados são sinónimo de ausência.

            -Diz, minha pequena. O que me trazes? Mas antes quero um dos teus beijos.

            - Está bem, avô, - despachada, pousou-lhe no rosto um beijo doce e nas mãos “O Albatroz Azul” de Ubaldo Ribeiro.

            - Olha, avô, comprei este livro e gostaria de te ler alguns excertos, pois sei que gostas muito de ouvir histórias!

            Claro que o avô adorou a ideia, pois, e mesmo incomodado com as dores habituais e incómodos da doença, o fascínio dos livros falou mais alto. Recompôs-se na sua postura e preparou-se para tão solene momento.

            -Posso, avô? Posso? «Sentado na quina da rampa do largo da quitanda, as mãos espalmadas nos joelhos (…).»

            Pelo que me contou, ainda com as lágrimas nos olhos, a minha aluna, ela demorou mais de três dias a ler o livro ao seu avô, e nem a mãe a conseguira impedir com os seus mais que justificados argumentos.

            E porque os leitores desta quase crónica só vão ler mais tarde o romance de Ubaldo Ribeiro, dando, assim, continuidade à dimensão literária das Jornadas, quero dizer-vos que o livro de tão insigne escritor conta uma história interessante, onde a morte e a vida se cruzam. O livro fala de um homem muito velho que, e apesar de possuir muita sabedoria trazida por todos os seus anos de existência, ainda procurava apreender sentidos para a vida. Sabendo que a sua morte estava próxima, uma certa inquietação perturbava-lhe a existência. A dada altura surgiu na sua frente um albatroz azul, um pássaro que não existe, mas que, e tal qual um anjo, o abordou e o conduziu para o paraíso.

            Para finalizar esta minha quase crónica, apenas vos digo que o avô da minha aluna Luísa, um nome fictício, morreu pouco tempo depois de se ter deliciado, no seu sofrimento, com o carinho da neta e o enredo sentido que João Ubaldo Ribeiro lhe ofereceu. Provavelmente, o Albatroz Azul que levara no seu voo o velho homem, o protagonista da narrativa, para o céu, foi o mesmo que abriu as portas do paraíso ao avô da minha aluna.

Digo-vos, também, e porque a minha aluna também gosta de escrever histórias,  que ela fez o favor de me entregar em mãos uma linda e emotiva narrativa, e que em breve publicarei, intitulada “O sorriso azul do meu avô”.  Que título curioso!

(Esta foi apenas a primeira história real, das muitas que tenho necessidade de partilhar com os amigos leitores, inspirada nas 4ªs Jornadas Literárias de Fafe.)

Carlos Afonso

Sem comentários:

Enviar um comentário