Depois de três semanas intensamente
vividas em redor das 4ªs Jornadas Literárias, assentes em mais de 150
iniciativas culturais, previamente definidas e realizadas por todo o concelho
(escolas, salas de aula, polivalentes, Instituto Superior, livrarias,
bibliotecas, museus, multiusos, Teatro-Cinema, Sala Manoel de Oliveira,
jardins, praças e casas apalaçadas de Fafe, salões paroquiais, Juntas de
Freguesia e no meio da natureza magnífica deste pedaço do Minho), foi visível
sentir múltiplas formas de cultura condignamente apresentadas.
O que
aconteceu, mais uma vez, nas Jornadas Literárias de 2013 foi extraordinário.
Foram milhares os que trabalharam com vontade e querer nos inúmeros eventos,
contribuindo, assim, para a imensa produtividade que daí derivou. O passado, o
presente e o futuro mostraram, ao longo destas semanas, a receita acertada que
pode ajudar a engrandecer um povo. A partir das nossas crianças de tenra idade
até a pessoas de muita idade, mas todos agarradas a definições certas e puras
de literatura, cultura, tradição e etnografia, sem terem de apegar-se a frases
feitas, foi evidente notar que a grandeza de um rio não está apenas na sua foz.
Ela também se vislumbra nos afluentes, margens que o definem e nas suas
nascentes.
Ao longo de
toda a dimensão das Jornadas Literárias, uma das suas maiores riquezas foi a
capacidade de pegar nas histórias que têm definido os destinos de Fafe e
construir, a partir daí, outras histórias. Os livros escritos ou apenas
sentidos foram, assim, a literatura das Jornadas. Os poetas e prosadores de
Fafe, as lendas, o sotaque e os contos que salpicam a memória do nosso povo, a
vontade de voltar a escrever o que já havia sido encontrado fizeram com que
caravelas atracassem em Fafe, o comboio regressasse, os emigrantes retornassem
da sua viagem, as palavras construíssem enredos completos, os campos mostrassem
o seu tipicismo, a música e a dança tropeçassem em poesia, os sonhos de terra e
de mar brotassem do interior de muitos livros, fazendo com que o passado se
sentisse na obrigação de perspetivar o futuro. E o mais intenso é o que estaria para
vir, pois muita literatura poderá ser edificada a partir do que aconteceu.
E porque o que acabei de dizer é verdade, amigos leitores, escutem, agora, um quase
crónica, inspirada numa realidade das Jornadas Literárias de Fafe.
Numa das
minhas aulas de Literatura Portuguesa, numa quarta-feira de março, pedi a
atenção aos meus alunos para João Ubaldo Ribeiro, um dos maiores escritores de
Língua Portuguesa, descendente de fafenses, a viver no Brasil, e que em 2013
seria o patrono literário das Jornadas. Falei da sua obra, lemos e analisámos
alguns excertos do seu romance “O Albatroz Azul” e, porque o Dia Mundial do Livro
era uma data para assinalar, lancei o desafio para que em casa partilhassem a
obra deste grande homem das letras com as respetivas famílias. No meu entender,
seria uma forma interessante de levar Ubaldo Ribeiro ao encontro de outros
fafenses. A ideia foi entendida e esta iniciativa das Jornadas ganhou forma e
efeito. O mais interessante foi o que aconteceu a partir daí.
Luísa, um nome fictício, depois de
ter escutado atentamente as minhas palavras, centradas na novidade de os alunos
partilharem literatura com os seus familiares, ao chegar a casa, acomodou a
pasta numa cadeira, disposta num dos cantos da sala e correu, sem fazer barulho,
para o quarto do seu avô. De setenta e três anos, o avô de Luísa estava acamado
há mais de cinco anos e sofria de uma doença incurável. Os médicos já há muito
que lhe tinham definido a sua sina. No entanto, a sua vontade havia-o segurado à
existência e aos afetos da sua neta.
- Avô, Avô,
tenho aqui um presente para ti. Estás a ouvir-me?
Claro que o
avô a estava a ouvir. Nem sempre os olhos cerrados são sinónimo de ausência.
-Diz, minha
pequena. O que me trazes? Mas antes quero um dos teus beijos.
- Está bem,
avô, - despachada, pousou-lhe no rosto um beijo doce e nas mãos “O Albatroz
Azul” de Ubaldo Ribeiro.
- Olha, avô,
comprei este livro e gostaria de te ler alguns excertos, pois sei que gostas
muito de ouvir histórias!
Claro que o
avô adorou a ideia, pois, e mesmo incomodado com as dores habituais e incómodos
da doença, o fascínio dos livros falou mais alto. Recompôs-se na sua postura e
preparou-se para tão solene momento.
-Posso, avô?
Posso? «Sentado na quina da rampa do largo da quitanda, as mãos espalmadas nos
joelhos (…).»
Pelo que me
contou, ainda com as lágrimas nos olhos, a minha aluna, ela demorou mais de
três dias a ler o livro ao seu avô, e nem a mãe a conseguira impedir com os
seus mais que justificados argumentos.
E porque os
leitores desta quase crónica só vão ler mais tarde o romance de Ubaldo Ribeiro,
dando, assim, continuidade à dimensão literária das Jornadas, quero dizer-vos que
o livro de tão insigne escritor conta uma história interessante, onde a morte e
a vida se cruzam. O livro fala de um homem muito velho que, e apesar de possuir
muita sabedoria trazida por todos os seus anos de existência, ainda procurava
apreender sentidos para a vida. Sabendo que a sua morte estava próxima, uma certa
inquietação perturbava-lhe a existência. A dada altura surgiu na sua frente um
albatroz azul, um pássaro que não existe, mas que, e tal qual um anjo, o abordou
e o conduziu para o paraíso.
Para finalizar
esta minha quase crónica, apenas vos digo que o avô da minha aluna Luísa, um
nome fictício, morreu pouco tempo depois de se ter deliciado, no seu sofrimento,
com o carinho da neta e o enredo sentido que João Ubaldo Ribeiro lhe ofereceu. Provavelmente,
o Albatroz Azul que levara no seu voo o velho homem, o protagonista da
narrativa, para o céu, foi o mesmo que abriu as portas do paraíso ao avô da
minha aluna.
Digo-vos, também, e porque a minha
aluna também gosta de escrever histórias, que ela fez o favor de me entregar em
mãos uma linda e emotiva narrativa, e que em breve publicarei, intitulada “O
sorriso azul do meu avô”. Que título curioso!
(Esta foi apenas a primeira história real,
das muitas que tenho necessidade de partilhar com os amigos leitores, inspirada
nas 4ªs Jornadas Literárias de Fafe.)
Carlos Afonso
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