sexta-feira, 29 de março de 2013

O ÚLTIMO OLHAR DE JESUS...



 

  

Quase desde o início do mês março que a cidade se cobria com umas enfadonhas e molhadas tardes, indefinindo rostos, apagando flores primaveris, abafando almas, escondendo caminhos e alumiando muitas ausências. Maria era uma das muitas pessoas que habitavam por ali, sem que ninguém lhe tenha dito para ir para outro lado. Para quê? O destino não o permitiria. A não ser que um olhar maior lho consentisse

Maria já não sabia o que fazer. Meia adoentada por uma indisposição qualquer que não sabia definir, os dias pareciam-lhe demasiado tristes e sem sentido! O seu corpo de mulher de vinte e três anos continuava em desacordo com os conceitos gerais de beleza e nenhum olhar de rapaz mais afouto o procurava para lhe descobrir algum sabor. A mãe de setenta e tantos anos continuava acamada e repleta de sofrimento, pois não havia dinheiro para um tratamento a sério. O único irmão, mais velho do que ela, pelo que ouvira dizer desde o dia em que aprendera a ver o mundo, fora levado por um tio para as américas. Quanto ao seu emprego, tudo na mesma. O patrão fechara a fábrica sem dizer nada, há mais duas semanas, sem o mínimo espírito de arrependimento, e sem pagar os ordenados desde janeiro. Pelo que alguém disse, foi-se embora de Portugal no seu jato particular. Pudera, para quem tem mais de um dúzia de empresas na América latina, fechar uma simples fábrica no Minho, não causa qualquer tipo de remorsos.

Desempregada, penso que o nome correto é mesmo este, apesar de segunda a sexta, sem que uma semana passe em claro, tanto ela como as suas colegas de ofício, passem algumas horas no seu ainda local de trabalho, mesmo de portas fechadas e com as máquinas paradas. Algum dinheiro que possa vir a mando dos tribunais viria mesmo a calhar.

Faltavam apenas poucos dias para a Páscoa e era preciso manter a tradição. Uma mesa mais enfeitada com todas as iguarias da época seria o ideal. O problema é que na carteira não havia a quantia necessária para gastos maiores, quanto mais comprar um pão-de-ló e, mais a mais, já há muito que a ridícula reforma da mãe tinha ficado resgatada na farmácia e noutros sítios onde se pagam dívidas.

 E porque a mãe tinha o direito a um dia especial como todos os outros, tinha de fazer alguma coisa. Depois de a cuidar com todo o carinho que lhe é reconhecido, deu-lhe um imenso beijo no rosto, e despediu-se, dizendo que vinha já. Como a mãe já almoçara, Maria pensou que ela não precisaria de o fazer, pois, dessa forma, o jantar já estaria feito. Uma simples maçã e um copo de leite resolveriam o seu problema e nem à mesa se sentou. Deixando a mãe sossegada e com alguma paz, foi para o seu quarto, mas como constatasse que o frasco de perfume já estava vazio, arranjou-se como pode e, dali a pouco tempo, saiu. Era Sexta-feira Santa e a chuva continuava a cair, dando a este dia nomeado as cores exatas com que o mundo cristão o tinge.

Por volta das três horas da tarde, o exato momento em que Maria passava em frente à Igreja de São José, bem no centro da cidade de Fafe, um mau estar sem precedentes fê-la cair sem estrondo no lajedo do passeio. Angustiada e sem forças para se erguer, sentiu a quentura do sangue a afagar-lhe o rosto e uma ou outra voz que a interpelavam. Sem ânimo, fechou os olhos e desistiu. Dentro de si, brotou a leve lembrança de que Jesus Cristo também morrera numa sexta igual àquela e, dessa forma, Maria também aceitou a morte. Quem era ela para escolher outra hora? Não era qualquer um que acabava os seus dias numa data assim.

 A dada altura, e depois de uma imensa negritude jamais vivida, a alma trouxe à sua presença o rosto de um homem rodeado de paz, com um olhar mais brilhante do que o sol, que, em breves palavras, lhe apontou o seu verdadeiro caminho:

- Maria, levanta-te e anda, a tua família e amigos esperam-te…

Sem jeito e surpresa na sua forma de estar, sempre conseguiu dizer:

- Senhor, que olhar tão belo… Eu conheço-vos… Vós… vós… sois Jesus.

E porque assim estava escrito, Maria voltou à vida e, para sua felicidade, em redor da cama do hospital, para onde fora levada depois de ter caído na rua, estava a sua mãe, seu irmão com uns olhos azuis que encantavam e algumas das suas companheiras de trabalho.

 Como tudo aconteceu para que este quadro, impensável ainda há pouco, pudesse acontecer, também eu, narrador, não sei responder. Ou sei?

Lá fora, o sol voltara e um perfume especial inundava os lugares e momentos.

 

Carlos Afonso

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