Quase desde o início do mês março que
a cidade se cobria com umas enfadonhas e molhadas tardes, indefinindo rostos,
apagando flores primaveris, abafando almas, escondendo caminhos e alumiando muitas
ausências. Maria era uma das muitas pessoas que habitavam por ali, sem que
ninguém lhe tenha dito para ir para outro lado. Para quê? O destino não o
permitiria. A não ser que um olhar maior lho consentisse
Maria já não sabia o que fazer. Meia
adoentada por uma indisposição qualquer que não sabia definir, os dias
pareciam-lhe demasiado tristes e sem sentido! O seu corpo de mulher de vinte e
três anos continuava em desacordo com os conceitos gerais de beleza e nenhum
olhar de rapaz mais afouto o procurava para lhe descobrir algum sabor. A mãe de
setenta e tantos anos continuava acamada e repleta de sofrimento, pois não
havia dinheiro para um tratamento a sério. O único irmão, mais velho do que ela,
pelo que ouvira dizer desde o dia em que aprendera a ver o mundo, fora levado
por um tio para as américas. Quanto ao seu emprego, tudo na mesma. O patrão
fechara a fábrica sem dizer nada, há mais duas semanas, sem o mínimo espírito
de arrependimento, e sem pagar os ordenados desde janeiro. Pelo que alguém
disse, foi-se embora de Portugal no seu jato particular. Pudera, para quem tem
mais de um dúzia de empresas na América latina, fechar uma simples fábrica no
Minho, não causa qualquer tipo de remorsos.
Desempregada, penso que o nome correto
é mesmo este, apesar de segunda a sexta, sem que uma semana passe em claro, tanto
ela como as suas colegas de ofício, passem algumas horas no seu ainda local de
trabalho, mesmo de portas fechadas e com as máquinas paradas. Algum dinheiro
que possa vir a mando dos tribunais viria mesmo a calhar.
Faltavam apenas poucos dias para a
Páscoa e era preciso manter a tradição. Uma mesa mais enfeitada com todas as
iguarias da época seria o ideal. O problema é que na carteira não havia a quantia
necessária para gastos maiores, quanto mais comprar um pão-de-ló e, mais a
mais, já há muito que a ridícula reforma da mãe tinha ficado resgatada na
farmácia e noutros sítios onde se pagam dívidas.
E porque a mãe tinha o direito a um dia
especial como todos os outros, tinha de fazer alguma coisa. Depois de a cuidar
com todo o carinho que lhe é reconhecido, deu-lhe um imenso beijo no rosto, e
despediu-se, dizendo que vinha já. Como a mãe já almoçara, Maria pensou que ela
não precisaria de o fazer, pois, dessa forma, o jantar já estaria feito. Uma
simples maçã e um copo de leite resolveriam o seu problema e nem à mesa se
sentou. Deixando a mãe sossegada e com alguma paz, foi para o seu quarto, mas
como constatasse que o frasco de perfume já estava vazio, arranjou-se como pode
e, dali a pouco tempo, saiu. Era Sexta-feira Santa e a chuva continuava a cair,
dando a este dia nomeado as cores exatas com que o mundo cristão o tinge.
Por volta das três horas da tarde, o
exato momento em que Maria passava em frente à Igreja de São José, bem no
centro da cidade de Fafe, um mau estar sem precedentes fê-la cair sem estrondo no
lajedo do passeio. Angustiada e sem forças para se erguer, sentiu a quentura do
sangue a afagar-lhe o rosto e uma ou outra voz que a interpelavam. Sem ânimo, fechou
os olhos e desistiu. Dentro de si, brotou a leve lembrança de que Jesus Cristo
também morrera numa sexta igual àquela e, dessa forma, Maria também aceitou a
morte. Quem era ela para escolher outra hora? Não era qualquer um que acabava
os seus dias numa data assim.
A dada altura, e depois de uma imensa
negritude jamais vivida, a alma trouxe à sua presença o rosto de um homem
rodeado de paz, com um olhar mais brilhante do que o sol, que, em breves
palavras, lhe apontou o seu verdadeiro caminho:
- Maria, levanta-te e anda, a tua
família e amigos esperam-te…
Sem jeito e surpresa na sua forma de
estar, sempre conseguiu dizer:
- Senhor, que olhar tão belo… Eu
conheço-vos… Vós… vós… sois Jesus.
E porque assim estava escrito, Maria
voltou à vida e, para sua felicidade, em redor da cama do hospital, para onde
fora levada depois de ter caído na rua, estava a sua mãe, seu irmão com uns olhos
azuis que encantavam e algumas das suas companheiras de trabalho.
Como tudo aconteceu para que este quadro,
impensável ainda há pouco, pudesse acontecer, também eu, narrador, não sei
responder. Ou sei?
Lá fora, o sol voltara e um perfume
especial inundava os lugares e momentos.
Carlos Afonso
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