quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

OS OLHOS DOCES DE AMÉLIA

 
        
Numa altura em que a nossa existência é constantemente atingida pelas garras de uma crise enfadonha e sem sentido, que quase nos abafa o acreditar, é muito reconfortante quando encontrarmos bem à nossa frente circunstâncias especiais que nos deixam vislumbrar outra vez as certezas da primavera e os sabores amadurecidos do verão.
 Só lamento a circunstância das estações dos homens divergir do ciclo da natureza e não permitir que as camélias brancas possam florir duas vezes.
Naquela tarde de dezembro, o sol ainda aquecia aquele lugar onde uma mulher, vestida de cor de viúva, jazia ausente da minha realidade e, talvez, mais apostada numa viagem que a levava para um tempo fora de tempo. Ela estava sentada na soleira de uma porta cerrada, agora sem serventia, pertença de uma casa pintada de amarelo debutado e sem sinais de habitabilidade, numa rua de Fafe. Em seu redor, o volver insistente do vento incomodava a poeira da tarde e deixava bem claro que ainda era inverno e que não valia a pena haver ilusão com a luminosidade do dia. Não sei bem porquê, mas aquela figura de uma idade avançada intrigou-me e resolvi perguntar-lhe o que achasse por bem.
Com alguma calma, e depois de conseguir desfazer-me de um aceno de circunstância que atirei a um conhecido, ou talvez não, pois a minha visão de vez enquanto engana-me quando foco a distância, aproximei-me de tão quieto estar, pois nem por nada queria estragar o que quer que fosse que agarrava a atenção daquela mulher. Antes de lhe dirigir a palavra, reparei que a sua postura sofreu momentaneamente uma pequena alteração. A sua mão esquerda sacou instintivamente de um bolso de saia muito escura um pequeno lenço esbranquiçado com que limpou uma lágrima que lhe banhara o rosto. Depois, sem mais, voltou à primeira postura. Só um pormenor, por cimo das costas estendia-se, espectral, um xaile com muito tempo. Será que o herdara da alguma sua familiar? Digo isto porque ainda me lembro que a minha avó, que Deus levou para si há mais de trinta anos, tinha um assim, que tinha sido dado pela sua mãe, minha bisavó, portanto.
Já encostado aquele corpo presente, procurei logo meter conversa a ver se conseguia obter algumas respostas com sentido. Porque a primeira tentativa não surtiu efeito, insisti na determinação e fiquei logo a saber que ela se chamava Amélia, que morava com uma filha solteira que trabalhava em Guimarães e que estava ali a apanhar um pouco de quentura, antes que as sombras viessem, e consigo trouxessem o regresso de todos os dias.
Não me lembro bem do tempo que me dispus por ali, talvez uma meia hora, ou nem tanto, mas foi o tempo necessário para me apegar aquela simpática senhora que, e enquanto esteve a conversar comigo, abdicara do seu passeio interior para comigo conversar e olhar constantemente.
Eu disse olhar?
Claro que disse. E porque o disse, quero neste preciso instante dizer-vos que os olhos desse olhar mostraram uma tão meiga postura que me obrigou a pegar-lhe nas mãos e a falar-lhe de mim.
            Como eram doces os olhos de Amélia!
Ela sorriu-me muitas vezes, disse-me, entre outros dizeres, que conhecia bem Aboim e que durante muitos anos foi à Senhora das Neves. Ah! Também me contou que já fora feirante e que tem muita devoção por Nossa Senhora. Depois a voz da filha que viera acompanhada pela sombra da tarde, fez com que o nosso involuntário encontro ficasse por ali naquele dia. Na verdade, a simpatia da velha senhora também habitava a disposição da sua descendente que, e perante a postura satisfeita da mãe e as palavras que ela proferira a meu respeito, não se importou que acompanhasse Amélia, e a amparasse com alguma paciência, até à porta de sua casa, pois as suas pernas, já bem degastadas naquela idade de oitenta e cinco anos, não tinham o mesmo vigor da altura em que apregoava a sua fruta e os seus legumes na feira semanal da vila.
Outras vezes visitei Amélia, e, outras tantas vezes, partilhei, com ela, instantes e palavras. Digo-vos, até, caros leitores, que a sua memória ainda é o que era, que a sua franqueza é do tamanho do mundo, que a sua sala é forrada por um papel arramalhado verde, e que o bolo de laranja, que no nosso último encontro me ofereceu, uma vez que já frequento a intimidade do seu lar, é da mesmíssima doçura dos seus olhos.
Da próxima vez que visitar minha amiga de certeza que lhe oferecerei um ramo de camélias brancas, pois ela disse-me que gostava, assim como eu, da sua singeleza e encanto!
Até amanhã, Amélia.
Do Longe, o toque insistente de uma ambulância feriu-me de morte o peito.
Meu Deus, quem roubou o encanto das camélias brancas!
 
Carlos Afonso
 
           
 
 

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