Por muitos que sejam os retratos ou
os espaços ou as circunstâncias que possam apresentar os ingredientes necessários
para serem gravados com sucesso no álbum do nosso entendimento, às vezes
achamos mais interessante pegar em pormenores com um brilho diferente para
construir o quadro acertado que projetamos eternizar. Se assim não fosse, as
pedras mais insignificantes que se estendem nos leitos dos rios nunca teriam
serventia perante o tamanho dos caudais que por elas passam. E porque o que
acabei de dizer tem as linhas todas para tecer o texto que quero escrever,
amigo leitor, agasalhe-se, pois estamos bem no meio do inverno, pegue nas
minhas palavras e siga na direção de Locevh, uma curiosa cidade da Bulgária.
Lovech é uma cidade do centro-norte
da Bulgária, situada nas duas margens do rio Osam, na zona da Cordilheira dos
Balcãs. Este rio de alguma dimensão é atravessado no centro da cidade por
várias pontes, sendo uma delas muito famosa. Trata-se de uma ponte pedonal
totalmente coberta, constantemente espionada por todo um casario bem ao estilo
barroco. No seu interior, inúmeras lojas de souvenires mostram outras paisagens
e realidades para turista mirar e comprar, se assim o desejar.
O que me quereria dizer aquela
rapariga de olhar triste e de lenço escuro pelos ombros, quando, à minha
passagem pela ponte, bem em frente à sua banca de quadros e livros, me estendeu
uns falares que em nada se pareciam com uma qualquer coisa instintiva? Numa outra
altura voltarei a falar desta rapariga.
Situada a cerca de cento e cinquenta
quilómetros da capital Sofia, Lovech é uma cidade com muitos registos de
antigas lutas contra o império turco, assim como detentora de inúmeros parques
que, na primavera, se enchem de tonalidades verdes, enquanto fartos arranjos de
lilases enfeitam o parque Stratesh, o local mais alto da cidade, onde existe um
grande número de plantas da flor lilás, que são facilmente vislumbradas de toda
a cidade e proporcionam um espetáculo magnífico. Por esta razão, Lovech é
conhecida pela cidade dos lilases. No entanto, e porque fui isso que eu vi, nos
dias em que por aqui andei, no mês de janeiro de 2013, o seu encanto distendia-se
da cor de gelo que a tingia logo de manhã para, durante o dia, se acomodar aos
vários semblantes que o sol lhe emprestava.
Provavelmente, o amigo leitor já se
questionou acerca da minha presença neste lugar tão afastado. Na verdade, eu
faço parte de um grupo de pessoas de Fafe que se encontra ligado ao projeto “Comenius
Regio Partnerships”, e que tem como objetivo estreitar relações entre Portugal
e a Bulgária no âmbito da educação pré-escolar e na formação, guiadas pela
máxima “ Educar pela arte”. Como a Associação AtriuMemoria, a que pertenço,
está ligada a este projeto, juntamente com outras instituições de Fafe, tive o
privilégio de partilhar esta interessante e frutífera viagem, rodeada de
múltiplas experiências, com as doutoras Helena Alves, Margarida Carvalho e
Natália Correia da Escola Secundária de Fafe, os senhores José Manuel e Simão
Teixeira do Jardim de Infância de Antime e os doutores José Ribeiro e Daniel
Bastos da Câmara Municipal de Fafe. E foi num dos momentos previamente
definidos, e enquanto palmilhava os recantos culturais de Lovech, que conheci
um homem deveras interessante, um homem que tinha a seu cargo zelar por um
espaço de memórias e tradições, um espaço que guardava na perfeição os pedaços
de um outro tempo ali bem presente. A rua que levava a este museu etnográfico
era de um traço bem medieval, onde as casas que a desenhavam se acolhiam
debaixo de telhados de lousas acinzentados.
A noite já se tinha precipitado na cidade,
quando, num primeiro instante, e depois de subir uma escadaria empedrada, uma
voz vinda do escuro nos deu as boas vindas numa língua que eu entendi, uma vez
que os gestos a que a ela estavam associados, saídos de umas mãos do tamanho da
vontade do homem que as dizia, ajudavam na perfeição o seu verdadeiro sentido.
Já no interior de uma das casas de outra época vestida, e depois de algumas
explicações e informações, consegui olhar de frente o homem que nos recebia. O
seu nome não o entendi e muito menos o conseguiria pronunciar, mesmo que o
quisesse fazer. A sua idade não foi chamada para o caso, mas já era bastante.
Os seus olhos eram profundos, claros e sábios. A boina que lhe cobria a cabeça
condizia com o tipicismo da roupa que vestia. A magreza do seu corpo dava-lhe o
aspeto de um servidor do exército soviético. O cachecol verde que se prendia ao
pescoço anunciava um futuro adiado, embrulhado num passado em que se acreditou.
O bafo que se despendia da boca era incolor e inodoro, mas as palavras que
viria a pronunciar, embaladas por uma melodia da mesma cor dos cravos que um
dia, em abril, floriram em Portugal surpreenderam quem, como eu, fala a língua
de Camões.
Como é surpreendente ouvirmos, sem
contar, os verdadeiros significados que moram nos sentimentos dos homens!
A dada altura, e sem que a guia que
lhe traduzia as frases contasse, da sua boca saiu um verdadeiro cantar
português, que num tempo em que Portugal vivia engaiolado na sua dignidade, o
poeta e cantor Zeca Afonso trouxe à luz do dia:
“Grândola,
vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Dentro
de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena (…)”
As
palmas soltaram-se do nosso espanto. Uma outra lágrima assomou desprevenida e
com algum receio não sei bem de que olhar. Um sorriso de quem sabia o que
estava a fazer despegou-se do rosto do homem de Lovech, e da minha máquina
fotográfica saiu, repentino, um reflexo que se apagou logo a seguir.
Este
homem, numa outra época e em circunstâncias próprias, que o regime comunista
lhe emprestara, conviveu em espírito e sentido com a revolução portuguesa de
1974.
Em
continuidade aos versos acabadinhos de cantar num português quase claro,
seguiu-se uma tradução cantada pelo mesmo homem, num Búlgaro fluente, em que a
melodia empregue serviu de tradutor, para depois nos pedir para passarmos às
restantes divisórias da casa devidamente apetrechadas. Num dos fundos que
enquadrava um quarto de época, descansava de vez um violino que já fora de um
famoso músico da Bulgária.
Só
um pequeno acrescento sem qualquer serventia ou interesse para algumas pessoas,
as unhas da mão direita do homem de Lovech estavam tapadas com uma espécie de
adesivo castanho. Por que seria?
Carlos
Afonso.
O homem de Lovech chama-se Plamen. Conheci-o quando visitei o museu. Tambem eu fui recebida com a cancao "Grandola... " e curiosamente ele vem da mesma aldeia onde eu comprei casa, perto de Lovech.
ResponderEliminarAgradeço as suas palavras. Para nós portugueses foi muito emocionante escutar o que aquele homem nos ofereceu. Abraço amigo
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