sábado, 8 de setembro de 2012

O último barco


 

 



 

          Neste meu voltar de férias e neste novo regresso ao nosso Povo de Fafe, a quem desejo as melhores felicidades, quero partilhar com todos os leitores uma história quase totalmente real, onde uma das personagens sou eu próprio, ocorrida num final de tarde de Agosto, nas Caxinas, Vila do Conde, bem em frente à igreja do Senhor dos Navegantes. Eu sei que os acontecimentos, às vezes, são fruto do acaso, mas noutras vezes, provavelmente, são devidamente facultados por quem de direito e com poder para isso.

            O final de tarde estava ameno e sem qualquer vestígio daquela nortada tão usual por essas paragens. O mar estava esplêndido e oferecido para os que quisessem dar um derradeiro mergulho. Na marginal, pessoas de todas as idades passeavam-se e saboreavam os últimos raios de luz. No céu, algumas gaivotas mostravam a sua liberdade e desejos inquietos. No muro de granito pousado num amontoado de pedras, e que separa a praia do passeio, em frente à Igreja do Senhor dos Navegantes, estava uma velha senhora de olhar ausente, voltado para o horizonte que absorvia a grandeza do Atlântico. Parado, perante todo este quadro vespertino, a minha presença e curiosidade.

A senhora acima referida, e que mostrava uma atitude estranha perante o que estava ali a fazer, tinha ao seu lado uma pequena quantidade de conchas coloridas, algumas estrelas-do-mar secas, três búzios, variados objectos feitos a partir de materiais marítimos e um pequeno barco. A roupa que lhe cobria o corpo já carcomido pela muita idade era totalmente negra, à exceção de um finíssimo fio de ouro que se lhe pendurava do pescoço. O curioso disto tudo era o facto de esta vendedeira não mostrar qualquer interesse em vender a sua mercadoria. Na verdade, em vez de estar voltada para as pessoas e tentar aliciá-las e fazer negócio, mostrava uma postura oposta. Estava de costas voltadas, a sua atenção era o mar longínquo. Apenas um pormenor, a sua mão direita, onde se podiam ver as unhas algo descuidadas, estava a tocar o pequeno barco exposto, que, de vez em quando, estremecia, talvez movido por um sentimento mais profundo. Perante este cenário, não resisti e dirigi-lhe a palavra:

- Senhora, por favor, quanto custa o barco?

Como não obtive resposta, repeti novamente a pergunta e só à segunda tentativa é que obtive uma desinteressada atenção.

-Desculpe, está a falar comigo?

- Sim. Estou a perguntar-lhe o preço do barco.

Apressadamente, agarrou com força o pequeno barco, ergueu-o e encostou-o ao peito. Depois, olhou-me com determinação e disse-me num tom zangado.

- O preço do barco? Nem pensar. Ele não está à venda. Leve o que quiser que não lhe levo nada por isso, mas o barco é meu.

Meio incrédulo com o que acabara de ouvir, e porque queria perceber o que se estava a passar, teimei mais um pouco.

- Desculpe se a ofendi, eu apenas gostava de saber o preço do barco, pois acho-o muito bonito e pensei que era para vender.

Com alguma dificuldade, a dita vendedeira alterou a sua postura. Virou-se para mim, pousou o barco com cuidado, limpou o rosto com um lenço meio engelhado, levantou-se e confidenciou-me algumas palavras.

- Senhor, perdoe-me, eu às vezes não sei o que digo. Sabe, faz hoje anos que o meu marido morreu e não me sinto de acordo com o seu entendimento.

- Não se preocupe, por favor, volte a sentar-se que eu também me sento.

Já sentados, e depois de dois sorrisos partilhados, a nossa conversa começou de mansinho e, como era de prever, foi logo de encontro ao assunto do barco. Sem qualquer senão, percebi logo o porquê do comportamento da velha senhora. Coitada! A vida, por vezes, é bem madrasta. Mas o que é que havemos de fazer?

Há precisamente vinte e cinco anos o barco do seu marido, num fim de tarde tempestuoso de Agosto, altura em que o mar e o céu se haviam unido na tormenta, naufragou, facto que causou uma grande desgraça nas gentes das Caxinas. E, ao contrário dos outros cinco pescadores que iam na embarcação, e cujos corpos haviam dado à costa já sem vida, o do seu marido perdera-se para todo o sempre nas profundezas do oceano. O barco naufragado tinha o nome «Nas mãos de Deus» e por incrível que pareça a pobre vendedeira ainda esperava que o seu homem regressasse, de uma forma ou outra, pois ele continuava nas mãos de Deus, e o que faltava, e segundo o seu acreditar, era apenas um barco que o trouxesse.

E o que é que o pequeno barco, aquele que estava ali pousado no muro ao lado das conchas e demais material tinham a ver com o que aconteceu com o verdadeiro que conduziu o marido ao naufrágio?

Caro leitor, o pequeno barco era uma imperfeita réplica da embarcação do marido. Ela tinha mandado fazer várias, e aquela era a última. Era o último barco que lhe podia trazer o marido. Na verdade, em todos os aniversários do naufrágio da embarcação do marido, ela tinha por hábito lançar a pequena réplica ao mar para que ela lhe resgatasse o que tanto esperava. Segundo ela me acrescentou, provavelmente porque reparou na minha incredibilidade, só iria fazer mais uma tentativa. Caso o seu homem não voltasse, então iria ela ter com ele.

- Sabe, o Senhor dos Navegantes esta a par de tudo e eu sei que tenho a sua aprovação. Este barco que aqui tenho é o último e se ele não me trouxer o meu marido, então vou eu ter com ele. Compreende? Agora se não se importa, siga o seu caminho, que eu tenho uma sina para cumprir.

Sem que eu quisesse, e ao mesmo tempo em que o relógio da igreja batia compassadamente as horas, percebi que estava na hora de ir. Ao longe, o sol já mergulhara de vez no seu repouso anunciado. Ao perto, senti que a roupa da senhora já não era negra. Meio confuso, aceitei uma pequena concha pintada das cores do mar que a velha vendedeira me colocou nas mãos e segui o meu caminho, sem olhar para trás.

Nos dias que se seguiram, ainda procurei a velha senhora, mas nunca mais a encontrei. De certeza que embarcou no último barco e foi ao encontro do seu homem.

 

                                                                       Carlos Afonso

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