O final de
tarde estava ameno e sem qualquer vestígio daquela nortada tão usual por essas
paragens. O mar estava esplêndido e oferecido para os que quisessem dar um
derradeiro mergulho. Na marginal, pessoas de todas as idades passeavam-se e
saboreavam os últimos raios de luz. No céu, algumas gaivotas mostravam a sua
liberdade e desejos inquietos. No muro de granito pousado num amontoado de
pedras, e que separa a praia do passeio, em frente à Igreja do Senhor dos
Navegantes, estava uma velha senhora de olhar ausente, voltado para o horizonte
que absorvia a grandeza do Atlântico. Parado, perante todo este quadro
vespertino, a minha presença e curiosidade.
A senhora acima referida, e que
mostrava uma atitude estranha perante o que estava ali a fazer, tinha ao seu
lado uma pequena quantidade de conchas coloridas, algumas estrelas-do-mar
secas, três búzios, variados objectos feitos a partir de materiais marítimos e
um pequeno barco. A roupa que lhe cobria o corpo já carcomido pela muita idade
era totalmente negra, à exceção de um finíssimo fio de ouro que se lhe
pendurava do pescoço. O curioso disto tudo era o facto de esta vendedeira não
mostrar qualquer interesse em vender a sua mercadoria. Na verdade, em vez de
estar voltada para as pessoas e tentar aliciá-las e fazer negócio, mostrava uma
postura oposta. Estava de costas voltadas, a sua atenção era o mar longínquo.
Apenas um pormenor, a sua mão direita, onde se podiam ver as unhas algo
descuidadas, estava a tocar o pequeno barco exposto, que, de vez em quando,
estremecia, talvez movido por um sentimento mais profundo. Perante este
cenário, não resisti e dirigi-lhe a palavra:
- Senhora, por favor, quanto custa o
barco?
Como não obtive resposta, repeti
novamente a pergunta e só à segunda tentativa é que obtive uma desinteressada
atenção.
-Desculpe, está a falar comigo?
- Sim. Estou a perguntar-lhe o preço
do barco.
Apressadamente, agarrou com força o
pequeno barco, ergueu-o e encostou-o ao peito. Depois, olhou-me com
determinação e disse-me num tom zangado.
- O preço do barco? Nem pensar. Ele
não está à venda. Leve o que quiser que não lhe levo nada por isso, mas o barco
é meu.
Meio incrédulo com o que acabara de
ouvir, e porque queria perceber o que se estava a passar, teimei mais um pouco.
- Desculpe se a ofendi, eu apenas
gostava de saber o preço do barco, pois acho-o muito bonito e pensei que era
para vender.
Com alguma dificuldade, a dita vendedeira
alterou a sua postura. Virou-se para mim, pousou o barco com cuidado, limpou o
rosto com um lenço meio engelhado, levantou-se e confidenciou-me algumas
palavras.
- Senhor, perdoe-me, eu às vezes não
sei o que digo. Sabe, faz hoje anos que o meu marido morreu e não me sinto de
acordo com o seu entendimento.
- Não se preocupe, por favor, volte a
sentar-se que eu também me sento.
Já sentados, e depois de dois
sorrisos partilhados, a nossa conversa começou de mansinho e, como era de
prever, foi logo de encontro ao assunto do barco. Sem qualquer senão, percebi logo
o porquê do comportamento da velha senhora. Coitada! A vida, por vezes, é bem
madrasta. Mas o que é que havemos de fazer?
Há precisamente vinte e cinco anos o
barco do seu marido, num fim de tarde tempestuoso de Agosto, altura em que o
mar e o céu se haviam unido na tormenta, naufragou, facto que causou uma grande
desgraça nas gentes das Caxinas. E, ao contrário dos outros cinco pescadores
que iam na embarcação, e cujos corpos haviam dado à costa já sem vida, o do seu
marido perdera-se para todo o sempre nas profundezas do oceano. O barco
naufragado tinha o nome «Nas mãos de Deus» e por incrível que pareça a pobre
vendedeira ainda esperava que o seu homem regressasse, de uma forma ou outra, pois
ele continuava nas mãos de Deus, e o que faltava, e segundo o seu acreditar,
era apenas um barco que o trouxesse.
E o que é que o pequeno barco, aquele
que estava ali pousado no muro ao lado das conchas e demais material tinham a
ver com o que aconteceu com o verdadeiro que conduziu o marido ao naufrágio?
Caro leitor, o pequeno barco era uma
imperfeita réplica da embarcação do marido. Ela tinha mandado fazer várias, e
aquela era a última. Era o último barco que lhe podia trazer o marido. Na
verdade, em todos os aniversários do naufrágio da embarcação do marido, ela
tinha por hábito lançar a pequena réplica ao mar para que ela lhe resgatasse o
que tanto esperava. Segundo ela me acrescentou, provavelmente porque reparou na
minha incredibilidade, só iria fazer mais uma tentativa. Caso o seu homem não
voltasse, então iria ela ter com ele.
- Sabe, o Senhor dos Navegantes esta
a par de tudo e eu sei que tenho a sua aprovação. Este barco que aqui tenho é o
último e se ele não me trouxer o meu marido, então vou eu ter com ele. Compreende?
Agora se não se importa, siga o seu caminho, que eu tenho uma sina para cumprir.
Sem que eu quisesse, e ao mesmo tempo
em que o relógio da igreja batia compassadamente as horas, percebi que estava
na hora de ir. Ao longe, o sol já mergulhara de vez no seu repouso anunciado.
Ao perto, senti que a roupa da senhora já não era negra. Meio confuso, aceitei
uma pequena concha pintada das cores do mar que a velha vendedeira me colocou
nas mãos e segui o meu caminho, sem olhar para trás.
Nos dias que se seguiram, ainda
procurei a velha senhora, mas nunca mais a encontrei. De certeza que embarcou
no último barco e foi ao encontro do seu homem.
Carlos
Afonso
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