Amigos
leitores, nesta minha crónica gostava de partilhar com a vossa compreensão um
instante especial que se me apegou à existência e me trouxe à memória a beleza refrescante
das madrugadas. Tudo aconteceu neste mês de Setembro e em Fafe. Não sei como
estas coisas acontecem, mas, às vezes, o que vale a esta vida transitória são
aqueles momentos únicos que, e sem nós dêmos por isso, nos surgem pela frente e
nos mostram que um sonho lindo vale mais do que muitas realidades que magoam.
Era o meu
segundo dia de aulas na Escola Secundária e o trabalho de preparação de aulas e
demais afazeres de professor ainda não absorviam em demasia o meu tempo. No
entanto, neste meu regresso à lida, nem tudo correra pelo melhor. Uma conversa de
circunstância que havia tido nessa manhã na escola, tinha-me deixado incomodado
e um pouco sem jeito. Eu sei que as coisas nem sempre correm como nós queremos
e que a vida está pintada de múltiplas cores. Mas quando nos apercebemos de que
um projecto que definimos como interessantíssimo e em que acreditamos, e que vemos
na sua consecução uma mais-valia para as gentes da nossa terra, não ser
verdadeiramente entendido por certas pessoas, isso chega a doer cá dentro! E
qual a razão deste meu reagir quase instintivo? Apenas porque acho que as razões
de todas as incompreensões são culpa minha. Se calhar não fui capaz de explicar
o que se pretendia e as coisas não se construíram consoante o conveniente, ou
então a minha ingenuidade e impreparação conduziram a um desfecho imperfeito. E
foi imbuído neste estado de espírito algo acinzentado que peguei na minha
vontade e fui caminhar pela cidade.
O céu estava
azul. Na aragem pressentia-se um cheiro longínquo de incêndio e as ruas
insistiam num ruído chato e algo incomodativo. Sem hesitar, subi ao Jardim do
Calvário e sentei-me num dos bancos que por ali se dispunha. Se o meu corpo
encontrou de imediato algum repouso, o meu pensar e sentir ainda mantinham a
inquietude. Nisto, uma voz conhecida dirigiu-se-me numa dimensão bem jovial:
- Olá,
professor, já uns tempos que o não via.
Para
surpresa minha, e que me deixou satisfeito, o meu olhar deu de caras um antigo
aluno. Que surpresa! Ele, agora, já era um homem feito, já acabara um curso
superior há uns anos e já era pai de uma menina de cinco anos, mas o seu
sorriso e a sua boa disposição continuam intocáveis. A nossa conversa foi
prolongada, onde o passado, o presente e o futuro se interligaram. A dada
altura disse-me com uma certa naturalidade que me influenciou:
- Sabe,
professor, neste momento estou desempregado e a minha esposa trabalha num
escritório em Guimarães, mas há dois meses que não lhe pagam.
Muito
preocupado, tentei saber da sua real situação e da sua disposição perante uma
conjuntura tão adversa. A sua resposta foi curiosa:
- Professor,
lembra-se de uma vez eu ter feito uma composição de que o professor gostou
muito e que até obrigou os outros alunos a escrevê-la no caderno? Ela tinha
como título “Nunca nos roubarão o sol”, lembra-se?
Claro que eu
me lembrava. Numa de vida de professor de liceu, há certos instantes e determinados
alunos que nunca se esquecem. A composição que ele fez na altura foi para mim
uma agradável surpresa. Um menino de catorze anos a escrever com aquela ousadia
e certeza fascinaram-me completamente.
- Pois,
professor, a vida, neste momento, não me está a correr muito bem, mas eu não
sou homem de desanimar. Eu tenho um sonho lindo. É verdade, o professor falava
muito em sonhos lindos. Ainda acredita neles?
- Claro que
acredito – respondi de imediato, ao mesmo tempo que um sorriso emocionado me
tocou o rosto.
-Pois,
professor, eu também tenho um sonho lindo e que irá ter uma excelente serventia
para a minha filha. E porque continuo a olhar para si com muita amizade, terei
muito gosto em lho revelar. Eu tenho a certeza de que o vai entender e me vai
dar toda a sua atenção.
Era de facto
um sonho lindo! E que forma acertada ele o apresentou! De certeza que no momento
em que o currículo do meu antigo aluno chegar ao sítio certo, as portas do tão
ansiado emprego se abrirão de par em par, para que a sua vida continue honrada
e a sua filha venha também a acreditar em sonhos lindos.
Antes da despedida,
e isso só aconteceu quase no final da tarde, a nossa conversa também acabou por
abordar o que nessa manhã me tinha acontecido na escola e que me havia
incomodado tanto. E porque não podia ser doutra maneira, ele acrescentou num ar
bem presenteiro:
- Ora, ora… não me preocupe tanto com
o acontecido, pois se alguma coisa não correu bem só é preciso melhorar as
circunstâncias, explicar novamente para quem ainda entendeu e continuar com o seu
sonho lindo, pois a cultura de Fafe e as pessoas que habitam a nossa terra só
têm a ganhar com isso. E sabe que mais, em Abril terei muito gosto em estar do
seu lado no decorrer das Jornadas Literárias. Até lá, temos de nos encontrar
mais vezes.
Depois de mais uns acrescentos de
parte a parte, um forte abraço de despedida fez-nos sorrir em simultâneo. Quase
de seguida, e enquanto começava a descer a escadaria do Jardim do Calvário, ele
ainda teve tempo para me arremessar um punhado palavras que me acertaram em
cheio no peito e me fizeram olhar o céu.
- Adeus,
professor, e não se preocupe, pois por muito que as circunstâncias nos queiram
atrapalhar a vida, nunca nos roubarão o sol.
Carlos Afonso
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