Uma Gota para a Vida
A tarde estava acinzentada e a chuva mostrava-se de vez em quando. Dos lados do rio Ferro erguia-se uma leve neblina, entrecurtada aqui e ali por uma folha esquecida e gasta que, sem forças, se deixava arrastar para o seu fim. Da cheminé da casa do meu vizinho, libertava-se um fumo esbranquiçado, e do meu quintalejo de bairro, o burburinho de duas avezitas, entretidas a debicar um diospiro mais maduro, mostrava-me que não é vergonha nenhuma matar a fome com o que é dos outros.
Depois de ter espalhado a minha atenção pelos espaços em redor e absorver os instantes que se me ofereceram, meti pés ao caminho e dirigi-me para a Escola Secundária de Fafe, onde se desenvolvia uma ocorrência do tamanho do mundo. Fazia-se a recolha de sangue no sentido de se apurar uma eventual compatibilidade de medula para o nosso aluno de 11ºAno e atleta dos Juvenis da Associação Desportiva de Fafe, Alberto Jorge, que precisa urgentemente de um transplante.
Como é difícil entender certos obstáculos que insistem em mostrar-se no início de algumas caminhadas!
A iniciativa promovida pela Escola Secundária de Fafe, e pelo Centro de Hispocompatibilidade do Norte revestia-se dum interesse sem limites e ia de encontro de dois vectores importantíssimos e que enriquecem a existência humana: a solidariedade e o amor.
Apenas uma mágoa se sobrepunha a esse meu querer estar presente nesse Domingo, no meu local de trabalho. Os meus quarenta e oito não permitiam que pudesse ofertar uma gota do meu sangue para, eventualmente, ajudar o nosso aluno a erguer o seu olhar na direcção do sol. Paciência! Se os conhecimentos médicos assim o determinam, não pode o nosso desejo inverter a situação. Mas esse facto de circunstância não me coibiu de estar presente nessa recolha de sangue e comprovar, com os olhos que Deus me deu, como as gentes de Fafe são possuidoras dum coração e duma vontade de ajudar maiores do que a imensidade do mar.
Quem passa, normalmente, aos domingos pela Escola Secundária e desvia o seu olhar para o que se passa entre muros, apenas encontra silêncios ou o esvoaçar das aves ou algumas eventualidades provocadas pelos devaneios do vento. Mas nesse Domingo de 14 de Novembro tudo foi diferente.
Por volta das quinze horas, altura em que entrei na área envolvente da escola, o céu ainda insistia em vestir-se dum acinzentado vivo, pormenor que contrastava com a claridade que advinha do polivalente, donde, num entrar e sair continuado de pessoas, se soltavam sorrisos e insistentes desejos de ser útil e ajudar.
Já dentro do polivalente da escola, vi todo aquele espaço repleto de gente, cada um dispunha-se consoante o momento, mas todos eles com um ar de dever a cumprir. Não vi caras tristes nem sorrisos sem nexo. Bem pelo contrário. Encarei confiança nos rostos e certezas nos gestos. Por lá encontrei pessoas de todas as classes sociais e de todas as fachas etárias. Também colhi algumas desilusões justificadas daqueles, que por um motivo ou outro, e tal qual como eu, não podiam ser dadores. Como foi o caso do Francisco, um aluno do nono ano, que se resignou aos seus quinze anos, com um dúzia de palavras, que escutei claramente:
- Fica para a próxima, pois, infelizmente, estas doenças nunca deixam de nos atrapalhar.
Como estava certo o Francisco! Esta vida nem sempre nos mostra a sua melhor face. Até parece que quer testar as nossas resistências. Mas, e apesar da nossa sina, não podemos deixarmo-nos levar pelas enxurradas e ventos contrários. O importante, no meio disto tudo, é olhar em frente e acreditar que a fé move montanhas e que a vontade e a esperança podem mostrar-nos o que mora para além do indefinido.
Acredito, e porque Deus existe, que o olhar carente da mãe do nosso aluno, que por ali se entrelaçava em busca de firmezas, pode gravar na sua intimidade que o Alberto irá ficar bom e seguir em frente, rumo a um futuro merecido. Não nos podemos que os anjos também habitam a terra.
Durante todo o tempo em que estive no Polivalente constatei como a força de ajudar faz bem e nos enriquece interiormente. Neste país assolado por uma crise agarradiça que teima em soterrar-nos sob o empoeirado da nossa pequenez, este imenso gesto de solidariedade e de amor em torno do Alberto veio mostrar que os bons espíritos ainda vogam em nosso redor. Jamais o descalabro das nossas finanças públicas ou incompetência dos nossos políticos estorvarão os passos dos que querem dar as mãos e partilhar.
Como é bom acreditar nos gestos que nos cercam e nas forças que nos movem!
Para ti, Alberto Jorge, dirijo este meu testemunho. Para ti, solto uma gota da seiva que me percorre a alma, para que a força da vida volte a sorrir dentro do teu querer.
Às veze,s são as adversidades da vida que nos ensinam a olhar mais além…
Carlos Afonso
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