(Este conto baseia-se em factos reais e escrevi-o com o
objetivo de homenagear o espírito heróico e altruísta dos bombeiros que, na sua
luta com o fogo, muitas vezes sacrificam as suas próprias vidas.)
“Por cada soldado romano que caia em
combate, um outro imediatamente de alista. É esta a nossa força”
General romano
Ana Luísa nasceu numa vila de província e em criança idealizara ser bombeira (para poder apagar
fogos – dizia ela), sonho que nunca se efetivou, porque os seus pais não
partilhavam dessa vontade. Os anos foram passando, e agora com vinte e quatro
anos, e estudante bem-sucedida de medicina, a jovem já quase não se lembrava do
que quisera ser no passado. Mas, e porque o destino já tinha sido marcado há
muito, um sonho arrebatador fez com que algo mudasse. Era agosto, do ano de
2013, e a praga dos incêndios massacrava Portugal. (…)
Ana Luísa,
com o caminhar dos anos, e com o sonho de ser bombeira para apagar fogos a
desvanecer-se, foi desenvolvendo toda uma capacidade humana de acordo com o
espírito da solidariedade e entreajuda, e que fazia dela uma rapariga amada por
todos. Gostava de ajudar nos peditórios a favor dos mais desfavorecidos, era
escuteira e, na sua paróquia do Minho interior, era catequista. Nossa Senhora
de Fátima era a sua entidade sagrada mais querida.
Possuidora de um corpo esbelto,
feminino e bem atlético, a natação era um dos seus desportos favoritos. Na
verdade, ela era uma nadadora de excelência, pormenor importante que
contribuiu, há dois anos atrás, para o salvamento de dois irmãos, numa praia de
Vila do Conde, quando, e sem qualquer medo, se lançou às águas e humilhou a
fúria repentina do grande oceano Atlântico. O obrigado comovido da família dos
jovens irmãos salvos e o sorriso de quem por ali estava foram a sua paga. Ela, com
os seus olhos cor de mar, claro está, achou que não fizera mais do que a sua
obrigação.
É nesta cidade, onde o rio Ave se
entrega ao mar, a toda a hora que passa, que Ana Luísa costuma passar as suas
férias de verão. E foi também nesta terra de terra, vento e mar que conheceu o
amor da sua vida, o José Luís, um rapaz de Guimarães e estudante de engenharia.
Os dois viviam uma relação de namorados felizes e amantes de maresia.
Ora bem,
voltando atrás nesta história, e principalmente ao final do primeiro parágrafo,
dizia eu que um sonho inquietante fez com que a vida de Ana Luísa mudasse. Como
também acrescentava que estávamos em agosto, do ano de 2013, e que a praga dos
incêndios massacrava Portugal.
Nessa noite de agosto a jovem até não
se deitara tarde, mas algo de estranho aconteceu. Envolvida num sono profundo,
um sonho soltou-se-lhe da existência e mostrou-lhe uma outra realidade que, por
sinal, não lhe era totalmente estranha. Assim, e sem saber bem porquê, viu-se, na
companhia de um grupo de colegas bombeiros, a digladiarem-se ferozmente contra
um mar de chamas na encosta de uma serra do centro de Portugal. A dada altura,
e porque o vento é um dos inimigos mais inconstantes dos bombeiros, uma mudança
súbita da sua trajetória, fez com que o grupo de bombeiros ficasse cercado e
tomados de um descontrole natural. Parecia mesmo que estavam no reino do fogo. O
fumo era imenso, a fome das labaredas lambiam tudo à sua passagem e, de
repente, Ana Luísa perdeu o contacto com os companheiros. Tomada pelo pânico
ainda tentou gritar, mas a voz não lhe saiu da garganta e tudo ficou da cor do
inferno e da morte. Num último ânimo, lembrou-se de Nossa Senhora e os seus
olhos, como por milagre, abriram-se e… afinal tudo estava bem. Tudo não passara
de um sonho bem do tamanho de um pesadelo. Levantou-se da cama, foi para o
quarto de banho e meteu-se debaixo do chuveiro de água fria, como que para
pagar a angústia que ainda há pouco a queimava em plena serra, rodeado de fogo
e de aflição por todo o lado.
Mas como é que se pode explicar este
sonho da jovem estudante de medicina? Qual será o seu real significado? Uma
coisa é certa, em criança, Ana Rita quisera ser bombeira, mas os pais não lho
permitiram e a ideia havia-se-lhe varrido da lembrança. Porquê agora isto?
Já recomposta do que havia acontecido
durante a noite, as horas seguintes foram mais calmas, mas uma notícia da televisão,
proferida por uma locutora ansiosa, fez com que Ana Luísa se erguesse
repentinamente do sofá e ficasse a tremer como varas verdes.
- «Mais uma morte de um bombeiro.
Desta vez foi na serra do Caramulo. Apanhados por uma mudança súbita do vento,
um grupo de bombeiros viu-se rodeada pelas chamas e uma jovem bombeira da corporação
de Alcabideche perdeu a vida. O seu nome era Ana Rita e…»
- Minha Nossa Senhora de Fátima,
parece igual ao meu sonho. Mas o que é que está a acontecer? E a bombeira
também se chama Ana, tal como eu e tem a minha idade, vinte e quatro anos –
acudiu, em tom de aflição, a jovem estudante de medicina, quase petrificada com
tão absurda coincidência.
Dois dias passaram, e durante a tarde,
no quartel de bombeiros do seu concelho, a Ana Luísa pede licença para entrar,
para quase de seguida perguntar se se pode inscrever como bombeira voluntária. O
senhor que a recebera, um homem com alguma idade que, na altura estava a ouvir com
uma atenção redobrada na rádio a informação do funeral da tal rapariga bombeira
que havia morrido na serra do Caramulo, com um semblante entristecido, perguntou-lhe,
instintivamente:
- Qual o seu nome e qual a sua idade?
- Chamo-me Ana e tenho vinte e
quatro anos.
Meio confuso, o homem olhou para o
rádio donde advinha a notícia do funeral, depois olhou para a candidata a bombeiro,
e depois de repetir os movimentos do seu olhar vezes sem conta, ora para o
rádio ora para a rapariga que estava à sua frente, deu dois passos e abraçou
Ana Luísa. Com as lágrimas a banhar-lhe o rosto, disse de uma forma comovida e
quase feliz:
- Seja bem-vinda, Ana. Este
quartel é seu…
Carlos Afonso
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