sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Um milagre ao amanhecer





Eu conheci a Alice há uns anos atrás, numa altura em que a sua mãe, minha aluna à noite, a trouxera à escola para que todos conhecessem a sua princesinha. Nessa época, e ainda com poucos meses de vida, os seus traços definidores já davam a entender que estávamos perante um ser humano adorável e detentor de uma beleza muito própria. Ao longo dos anos, os meus caminhos foram-se cruzando com os de Alice e restante família, ocorrência que muito estimei. O grande problema foi o destino que lhe estava traçado.
Uma das coisas que me custam a entender, e que nos magoam profundamente, é olhar para a beleza de uma rosa e verificar que todo o seu encanto é precedido de uma quantidade de espinhos desnecessários e até inconvenientes. Bem, neste caso, o problema resolve-se com o simples arrancar dos mesmos. Mais grave foi o caso da filha da minha aluna que acabou por sucumbir ao peso dos desmandos da condição humana. Talvez Miguel Torga tenha razão quando afirma que Deus nem sempre é justo.
Nestes últimos meses, Alice já não era a menina de outros tempos. Os seus olhos tingiam-se agora de um azul cansado e os seus cabelos faziam lembrar aquelas manhãs indefinidas, sem se saber ao certo se o sol continuaria a brilhar ou se a chuva estaria para chegar. O rosto esbatido pela má sorte já não tinha a cor de outrora. As suas mãos pareciam ter-se esquecido do tempo em que colhiam as flores silvestres no quintal da sua avó e apanhavam amoras bem maduras nas bordas dos pauis. As suas pernas estavam demasiado distantes da altura em que corriam alegremente no largo da aldeia, e aquela alegria natural que escorria das suas brincadeiras naturais com os colegas deixaram de colorir os dias da velha Alcina. Saliente-se que a relação de Alice com esta idosa quase da idade de um século foi-se cimentando de há uns cinco anos para cá graças aos muitos lanches que esta abençoada senhora gostava de oferecer às crianças lá da rua. Era uma forma de ela esconder a sua acinzentada solidão.
Do tempo em que ainda não lhe tinha sido detectada a doença e o seu sorriso era do tamanho da Primavera pouco restava. Agora só queria saber se a sua cadelinha Rosi já voltara a ter filhotes e se a sua amiga Filipa ainda tirava as melhores notas da escola. Tudo o resto já fora varrido do seu entendimento de menina de nove anos, devorado por uma injusta e atroz doença. Só de vez em quando, e se alguma esperança escorria do seu entendimento sob o efeito da medicação, é que pedia à sua irmã mais velha, quando esta a visitava ao domingo, que lhe lesse uma história do livro de capas cor-de-rosa, com uma borboleta de muitas cores bem ao centro. Por incrível que pareça, as outras histórias não lhe interessavam, nem as desse livro nem as dos outros que se arrumavam na mesinha de cabeceira. Queria sempre a mesma. O seu fascínio só se virava para o livro de capas cor-de-rosa e para aquela história em especial. Quando a irmã acabava, e sem se importar com mais nada, Alice tinha por hábito deixar escapar um obrigado. Depois, apertava o seu urso de peluche contra o peito e deixava que o sono lhe apagasse o sofrimento. E era nestes momentos, depois da leitura que todos os que a rodeavam se apercebiam que no seu sono havia qualquer coisa de especial. Talvez um sonho quase feliz, quem sabe!
Sentada numa cadeira, bem encostado à cama, a mãe de Alice não conseguia esconder a emoção que lhe varria o coração sempre que um ai ou uma lágrima atrapalhavam as palavras e os parcos gestos da filha. Muitas vezes, e sempre movida pela força do momento, apertava nas suas mãos de mulher do campo, crestadas pelo sol e pelos ventos, a um rosário de contas pretas que compara em tempos em Fátima. O que ela pedia a Deus todos nós sabemos.
Infelizmente os minutos e as horas da pobre criança da nossa história, e que eu conheci muito bem, limitavam-se a um quarto de hospital, aos custosos tratamentos e ao carinho insistente de seus familiares, amigos e pessoal médico. Mas um belo dia algo muito incomum aconteceu.
Ainda bem que os lírios do campo são possuidores de um perfume sem rival, caso contrário, o mês de Maio não teria tanto encanto.
Era domingo e tal como era habitual, Alice pediu mais uma vez à irmã que lhe lesse a tal história que englobava o livro de capas cor-de-rosa, e com uma grande borboleta ao centro. Sem demoras, a irmã começava:
«Era uma vez uma linda menina muito pobre que morava numa terra distante, e que já não tinha mãe. Esta menina tinha poucos brinquedos, mas tinha muitos sonhos lindos. Um dos que mais a fazia sorrir e lhe ocupava a imaginação era de um dia ser uma princesa. (…) Uma bela tarde viu pousada numa velha macieira uma grande borboleta pintada de mil cores, (…). Devagarinho subiu para as costas fofinhas da borboleta e deixou-se levar por entre montes e vales, sempre acompanhada pelas brisas mais meigas e o cantar acertado das andorinhas. (…). A borboleta transformou-se numa bela fada e a menina pode finalmente realizar o seu sonho. (…). A pobre menina, a partir desse momento, passou a ser chamada por todos a Princesa das Flores.»
Mal a irmã acabou de ler a história que tinha por título a Princesa das Flores, Alice, e ao contrário do que costumava fazer, sorriu alegremente, chamou pela mãe, que a olhava ansiosa, e disse.
- Mãe, só agora percebi a história que a mana me leu tantas vezes. Eu também vou ser muito feliz, tal qual a pobre menina que se transformou numa princesa. Sabes que mais, amanhã bem cedo podes vir-me buscar, pois eu já vou estar boa. Não te esqueças de me trazer a pasta, pois antes de ir para casa eu tenho de passar na escola para explicar à senhora professora o que se passou comigo. Só mais uma coisa, traz também a minha cadelinha, pois tenho muitas saudades dela, e aquela fita amarela para pôr no cabelo.
Alice, nessa tarde, não parecia a mesma. Falou, falou e o seu quarto de hospital parecia uma sala de convívio. Até sumo de laranja a enfermeira Maria trouxe para animar mais o momento. Terminada a hora da visita, ninguém se lembrou de chorar e uma esperança divina pareceu enfeitar o coração de todos.
Nessa noite Alice adormeceu mais tarde e foi apanhada num sonho encantado. No preciso instante em que colhia um punhado de amoras, viu pousada no cimo de um velho carvalho uma grande borboleta. Alegremente, Alice correu na sua direcção, ofereceu-lhe as amoras que havia colhido e pediu-lhe que a levasse a um sítio onde houvesse muitas flores. Sem demoras, a borboleta mandou-a pular para as suas costas e atendeu ao pedido da menina. Passado pouco tempo, a borboleta desapareceu e Alice viu à sua frente um campo imenso cheio de flores e a um canto, encostado a uma macieira florida, viu um senhor ainda jovem que a chamava. É evidente de Alice logo reconheceu aquele rosto. Convém que se diga, e antes de avançar, que ela tinha uma excelente memória visual. Não admira, por isso, que de Imediato identificou quem estava à sua frente. Era a mesma pessoa que estava pintada naquele santinho que o Senhor padre havia dado num Domingo depois da missa. Era Jesus. Como ela ficou feliz!
Nessa madrugada de segunda-feira, Alice encontrou a paz que precisava, e naquela cama de hospital apenas ficou o que o céu não quis.
Carlos Afonso

Sem comentários:

Enviar um comentário